A descolonização portuguesa
Pedro Pezarat Correia *
A impropriamente chamada "descolonização das colónias portuguesas posterior ao 25 de Abril" mais não é do que o epílogo da experiência imperial portuguesa que teve o seu início nos finais do século XV. Esta experiência histórica compreende três períodos bem distintos, a que podemos chamar os "três ciclos do império" e é identificável uma lógica coerente, nos planos interno e externo, nas formas que cada ciclo assumiu, quer no quadro da expansão quer no da retracção do império.
Destes ciclos excluo as feitorias do Norte de África, por onde aliás se iniciou a expansão, mas onde nunca se chegou a estabelecer um império e não se procedeu a uma colonização. Por isso não houve também aí descolonização, vindo a retirada portuguesa a verificar-se em resultado de confrontos militares, de doação, negociação ou mero abandono.
O Ciclo do Oriente
O objectivo inicial da expansão portuguesa era o Oriente longínquo, o que exigia a ocupação de feitorias e praças militares na costa africana, de apoio à navegação. O ciclo do Oriente, iniciado nos alvores do século XVI, não corresponde a um império no sentido rigoroso da expressão, porque lhe faltava continuidade e extensão territorial, ocupação humana de colonos deslocados da metrópole, e porque ainda nem sequer se adivinhava a Revolução Industrial que geraria o modelo de exploração colonial europeu. Tratou-se de um império de feitorias dispersas, para apoio a uma política de comércio e transporte e de praças fortes para protecção das feitorias e da liberdade de navegação no oceano Índico.
O encerramento deste ciclo ocorreu em meados do século XVII, quando a metrópole atravessava uma crise prolongada, sob o domínio da coroa espanhola. Portugal perdia, para as novas potências marítimas emergentes, Holanda e Inglaterra, a quase totalidade das suas possessões do Oriente, apenas salvando os territórios residuais de Goa, Damão, Diu, Macau e Timor.
O Ciclo brasileiro
Encerrado o ciclo do Oriente, Portugal investe no continente americano. No Brasil tem lugar a colonização de um verdadeiro império, de grande extensão e continuidade territorial, com a fixação de elevado número de colonos que se lançaram na penetração do interior e instalaram estruturas de uma economia colonial com base na exploração do trabalho escravo.
O ciclo brasileiro do império encerrar-se-ia, também, no quadro de uma conjuntura, interna e externa, bem caracterizadora do início do século XIX. Portugal enfrentava uma profunda crise, que se iniciara com as invasões napoleónicas e a consequente retirada da Casa Real para o Brasil, substituída pelo humilhante consulado britânico de Beresford, a que se seguiu a convulsão da Revolução Liberal de 1820. No continente americano, a exemplo da independência dos Estados Unidos ocorrida em 1776, as primeiras décadas do século XIX eram marcadas pelo fim dos impérios coloniais espanhol e português.
O encerramento do ciclo brasileiro do império correspondeu ao modelo da descolonização norte-americana, que marcou aquela época. Desencadeado pelos colonos europeus fixados ou seus descendentes já ali nascidos, e contando com o apoio dos estratos crioulos, que constituíam uma classe intermédia, não introduziu alterações nas relações sociais dominantes, mantendo à margem as populações indígena e escrava, esta produto de um processo violento de emigração forçada a partir de África. Constituiu como que uma antecipação, adaptada às condições de então, do sistema de apartheid imposto à África Austral no século XX, mas correspondeu à realidade histórica daquela época, em que a dinâmica revolucionária, inspirada nos ideais da Revolução Francesa, foi assumida pela minoria burguesa contra os privilégios de uma outra minoria, a aristocracia.
O Ciclo africano
Uma vez fechado o ciclo americano, as potências coloniais europeias descobriram no continente africano o novo palco da luta pelas suas ambições hegemónicas e pela busca das matérias-primas que a Revolução Industrial requeria. Portugal, reclamando interesses que queria preservar, abre assim o ciclo africano do império, ainda que, durante o ciclo do Oriente, tivesse procedido, por antecipação, à colonização dos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Com as campanhas de penetração e ocupação do interior do continente, em resposta às exigências da Conferência de Berlim, de 1885, que procedeu à partilha de África pelas potências europeias, começa a colonização africana, a qual, apesar das nuances dos vários modelos coloniais, do de "sujeição" ao de "autonomia", passando pelo de "assimilação", se vai caracterizar por grandes linhas comuns.
Depois da Guerra Mundial de 1914-1918, com a abertura de uma nova era em que os valores da autodeterminação e dos direitos humanos ganham espaço de afirmação, os Movimentos Pan-Africano e Pan-Negro iniciam a campanha pela descolonização da África, que vai receber uma nova dinâmica depois da segunda Guerra Mundial de 1939-1945, quando aqueles valores se alargam a todo o espaço planetário. Este movimento atinge as colónias portuguesas e é então que, verdadeiramente, se inicia a descolonização do ciclo africano do império português. Mais uma vez se desenvolve em sintonia com o fenómeno que alastrava pelos restantes impérios e que viria a terminar com o reconhecimento das independências proclamadas pelos povos colonizados.
A natureza ditatorial repressiva do Estado Português procurou ignorar a marcha da história, obrigando a luta de libertação das colónias a ascender ao patamar da luta armada, que se traduziu numa guerra colonial de 13 anos e em três teatros de operações distintos e distantes. Guerra colonial que introduziria condicionamentos acrescidos, que reduziram a capacidade negocial portuguesa quando, com o 25 de Abril de 1974, Portugal entrou, finalmente, no processo de descolonização, para negociar a transferência do poder. O maior condicionamento resultou da necessidade de, antes de tudo, negociar a paz, o que obrigou a antecipar algumas cedências, sem as quais os movimentos de libertação não cessariam a guerra. Mais uma vez, à semelhança do que se passara com os ciclos do Oriente e americano, o ciclo africano do império encerrava-se quando Portugal enfrentava uma grave crise institucional interna, resultante do derrube da ditadura e da emergência de um regime de liberdade, fragilizado pela sua natureza transitória e pela aguda luta pelo poder que se ia instalando.
Contexto internacional
As independências das colónias portuguesas de África, nomeadamente de Angola e Moçambique, foram profundamente afectadas pela situação internacional então dominante. A nível global, estava-se no auge da Guerra Fria e as duas superpotências, EUA e URSS, entraram numa disputa aberta pelo alargamento das suas zonas de influência àquela região, prejudicando os esforços de Portugal para uma transição pacífica e alimentando mesmo as guerras civis e as intervenções armadas externas. No quadro regional, a África do Sul, na desesperada tentativa de sobrevivência do apartheid, lançou-se no que chamou a "Estratégia Nacional Total", que passou pela desestabilização militar nos países vizinhos mais hostis. Mas a marcha da história não parou e foi o apartheid que acabou por sucumbir.
A marca mais assinalável do fim do ciclo africano do império português, para além das independências das próprias colónias, terá sido o contributo para a abreviação das independências do Zimbabwe e da Namíbia e do termo do apartheid na África do Sul, fenómenos que alteraram, radicalmente, todo o panorama geopolítico da África Austral. O que se vulgarizou chamar descolonização depois de 1974 é, então, apenas a fase da transferência do poder no fim do ciclo africano do império, mas que em Portugal se tende a confundir com a descolonização, por ser a única fase em que a potência colonial nela participou pela positiva.
Marcos decisivos
Três momentos decisivos assinalam a entrada de Portugal na fase da transferência do poder. O primeiro é o 25 de Abril de 1974 e a divulgação do Programa do MFA. Ainda que diminuído no seu alcance quanto à questão colonial, por alterações de última hora impostas por Spínola, o seu projecto libertador e de pôr fim à guerra, abria a porta da descolonização a Portugal. Mas o novo poder, condicionado pelo papel do presidente Spínola, agarrado às teses federalistas do seu livro "Portugal e o futuro" chocava-se com as posições dos movimentos de libertação, que ameaçavam agudizar a guerra se não vissem reconhecido o direito à independência. Estava-se num círculo vicioso. Portugal exigia o cessar-fogo, como condição prévia para negociar o futuro estatuto de cada colónia, os movimentos exigiam o reconhecimento do direito à independência, como condição para negociarem o cessar-fogo.
O segundo momento foi a promulgação da Lei 7/74 de 27 de Julho: Portugal reconhecia o direito das colónias à independência, rompendo aquele círculo vicioso. O terceiro momento foi o do Comunicado Conjunto ONU/Governo Português, de 4 de Agosto de 74, na sequência da visita do secretário-geral Kurt Waldheim a Lisboa. Reafirmava o direito à independência e reconhecia a legitimidade dos movimentos de libertação para negociarem com Portugal.
Iniciar-se-ia, então, o período frenético das negociações para a transferência do poder, em que a estratégia portuguesa enfrentou poderosos condicionamentos, como a prévia necessidade de obter paz, as resoluções da ONU e a conjuntura interna resultante da ruptura revolucionária do 25 de Abril. Portugal definiu como objectivos fundamentais o respeito pelo direito à independência, a recusa de abandono ou de soluções neo-coloniais e a defesa dos interesses nacionais. E estabeleceu tarefas globais, definição do quadro legal e constitucional, negociações de cessar-fogo, legitimação dos interlocutores para negociar as transferências do poder e preparação de relações frutuosas de cooperação futura. Além destas tarefas globais houve que definir tarefas particulares para cada colónia, de acordo com as suas especificidades, nomeadamente para Angola, em que foi necessário aproximar três movimentos que se combatiam e assegurar a integridade territorial.
A apreciação a posteriori da forma como cumpriu o que lhe coube na transferência do poder, permite concluir que Portugal respeitou os princípios fundamentais e que os objectivos foram globalmente atingidos. No que respeita à defesa dos interesses nacionais o mais conseguido foi a salvaguarda das condições para uma eficaz cooperação futura e o menos conseguido foi a permanência, após a independência, de muitos portugueses que o desejavam e para tal, à partida, parecia reunirem condições. Este último relaciona-se com outra conclusão: a transferência do poder, ou a fase pós-independência, só assumiram dimensões trágicas onde se verificaram intervenções externas armadas e guerras civis por elas apoiadas, às quais Portugal, enquanto presente, não teve capacidade para se opor eficazmente.
Informação Complementar
A viragem geopolítica na África Subsariana
O norte-americano Saul Cohen deu conta do alcance que a independência das colónias portuguesas teve no quadro geopolítíco africano. Em meados da década de 60, no seu livro “Geografia e Política Num Mundo Dividido", avançava a tese do mundo dividido em Regiões Geo-estratégicas, Regiões Geopolíticas e numa terceira categoria espacial a que chamou Cinturas Fragmentadas. A África Subsariana era a única zona do globo que Cohen, intencionalmente, excluía de qualquer destas grandes divisões e mesmo do direito a uma classificação específica. Mas, na reedição do livro, em 1980, quando a única alteração significativa, residia nos novos países que tinham sido colónias portuguesas, revê o seu mapa, reconhecendo que
“ (...) a África ao sul do Sara se tenha convertido numa Cintura Fragmentada (...) ”, ao nível das outras duas, que eram o Médio Oriente e o Sudeste Asiático.
A África Negra, da década de 60 para o início da de 80, tinha entrado no mapa. Ganhara importância geopolítica.
As colónias do extremo Oriente
Os territórios residuais do ciclo do império do oriente tinham em comum a sua reduzida dimensão, encravados em grandes potências regionais, Índia, China e Indonésia, influentes no bloco dos não-alinhados. Nenhum passou por um processo típico de descolonização.
O problema de Goa, Damão e Diu estava resolvido, de facto, desde 1961, com a anexação violenta pela Índia. Depois do 25 de Abril apenas se formalizou o facto consumado.
Macau, na sequência das negociações Portugal-China regressará a 20 de Dezembro de 1999 à soberania chinesa, com o estatuto de Região Administrativa Especial, assente no princípioo "um país, dois sistemas".
Timor, sujeito a brutal invasão armada em 7 de Dezembro de 1975, quando Portugal negociava a independência com os partidos timorenses, foi posteriormente anexado pela Indonésia, apesar da repetida condenação na ONU. Regrediu à fase da luta armada de libertação, já não contra a antiga potência colonial, mas contra a nova potência ocupante.* Pedro Pezarat Correia
Oficial general reformado. Professor convidado do Curso de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
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