quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A lógica da consolidação da economia de mercado em Angola, 1930-74

           Análise Social, vol. XXI (85), 1985-1.°, 83-110  Eduardo de Sousa Ferreira
             A lógica da consolidação da economia de mercado em Angola, 1930-74
 


                                                          INTRODUÇÃO
Tem sido comummente defendida a tese de que a economia de Angola, nos últimos quarenta anos da sua existência como economia colonial, não evoluiu segundo um processo lógico, mas sim devido a um encadeamento de factos mais ou menos aleatórios, essencialmente porque a economia e a política colonial portuguesa, pela sua fraqueza e dependência, não estavam em condições de seguir um modelo de exploração colonial.

Uma certa distância que permita abarcar toda a evolução do período nos seus traços essenciais — evitando assim possíveis distorções derivadas duma visão de processo «por dentro» na sua parcialidade — e uma análise dos dados socieconómicos disponíveis, se bem que insuficientes, parecem con-
tradizer uma tal tese.

A uma fase de integração crescente da mão-de-obra numa economia de mercado sucedeu, a partir dos anos 50, um grau crescente, porque mais racional, de exploração. Estas fases representam a penetração e consolidação em Angola dum modo de produção baseado na economia de mercado e orientado segundo os interesses da economia metropolitana, onde — ao contrário do que geralmente é afirmado — se encontravam os principais centros de decisão. A partir da década de 60 assiste-se à expansão deste modo de produção, com a passagem da exploração colonial através do comércio para a exploração através da penetração de capital e do aumento de possibilidades de acumulação local, com o respectivo reforço duma burguesia local fraca, mas já existente.

Patenteia-se em Angola um processo de desenvolvimento da economia que, não sendo «clássico», se mantém dentro das margens dos modelos de exploração colonial geral implantados pelas outras metrópoles. Na realidade, o baixo grau relativo de desenvolvimento da economia portuguesa irá conceder uma certa «especificidade» ao processo, derivada do facto de o capital português conseguir manter uma posição dominante na definição da política económica colonial e este capital se encontrar numa fase de «empi-
rismo», em que ainda carece da renovação dos conceitos e mentalidades, do planeamento e da organização científica do trabalho. Por outro lado, a necessidade de encontrar apoio à política seguida e a fraqueza relativa do capital industrial português levam-no a não poder, na fase final, prescindir da penetração do capital estrangeiro, tanto nas colónias como na metrópole, passando o centro de decisão da metrópole a ser partilhado com outros centros.

Mas esta «especificidade» não ultrapassa a margem de variação dum modelo colonial passível de várias combinações dum número limitado de componentes e vai conduzir objectivamente — função do próprio mecanismo das leis económicas, mas também função de decisões — à consolidação e expansão da economia de mercado em termos tais que o domínio político directo se torna cada vez menos necessário e o caminho vai ficando aberto para uma solução neocolonial. A crescente autonomia administrativa atribuída
a Angola na fase final do colonialismo não pode ser considerada uma diminuição da sua dependência em relação à metrópole: a transformação das relações Angola/Portugal, assim como o surgimento de novas relações, implicam, sim, uma dependência cada vez maior da colónia nos campos económico, monetário, financeiro e tecnológico. Esta dependência foi perdendo o carácter de controlo político directo e foi-se transformando no sentido de um controlo económico, o que representa a promoção das possibilidades de
desenvolvimento da economia metropolitana e da sua associação à Europa desenvolvida, pretendendo preparar-se assim o caminho para a participação de Portugal numa exploração de tipo neocolonialista. A solução federalista de Spínola antes do 25 de Abril é disso testemunho. Por parte do capital internacional, o grau de penetração da economia de mercado atingido em Angola na fase final revelava-se suficiente para garantir a continuidade do modo de produção, tornando-se assim supérfluo o domínio político directo e mesmo vantajosa a eliminação do intermediário até aí obrigatório que era Portugal, em contradição com as pretensões do capital português.

Conclui-se, pois, que obstáculos postos à independência de Angola não derivavam da inexistência de um desenvolvimento tipo colonial, como nas outras colónias tornadas independentes em termos neocoloniais. Para as potências «candidatas» à neocolonização de Angola (incluindo Portugal), o impedimento residia no facto de não ter sido possível criar condições que garantissem a tomada do poder por uma burguesia local correia de transmissão de um capitalismo dependente, dado que essa burguesia não conseguiu ser integrada na formação social devido à clivagem gerada por um racismo económica e socialmente necessário como defesa duma população branca pouco qualificada1; para Portugal, o impedimento derivava, além disso, especificamente, de dois factores: por um lado, o desenvolvimento do capital indus- trial português era relativamente recente e quanto mais tempo «fosse ganho» até à independência, tanto maior seria o grau de participação da economia portuguesa numa futura exploração neocolonial internacional; por outro
lado, a concessão de independência às colónias, e a Angola especialmente, iria pôr em causa todo o sistema político implantado na metrópole, e uma transição teria de ser extremamente cuidadosa e, por isso, morosa.

A verificação de que Angola foi explorada segundo uma lógica inerente a um dos modelos de exploração colonial não é contradita pelo facto de o desfecho do processo de descolonização ter sido diferente dos outros modelos de descolonização devido precisamente ao carácter «específico» da colonização portuguesa. Na realidade, se a descolonização foi essencialmente determinada tanto pela existência de forças nacionalistas não articuladas pela burguesia local, e que não aceitavam um capitalismo dependente, como pelo carácter que assumiu a revolução do 25 de Abril na metrópole, ela foi também determinada pela incapacidade da economia portuguesa de se implantar

O aspecto da tese inicialmente exposta e referente aos reflexos do desenvolvimento da economia portuguesa na política colonial cremos ter sido por nós já devidamente refutado numa análise fundada da perspectiva neocolonialista da economia portuguesa2.  O objectivo do presente trabalho é apresentar pontualmente alguns dados que permitam contribuir para a refutação do corpo da tese que cremos errada. Numa análise do período de 1930 a 1974, se bem que baseada na precariedade dos dados existentes e na impossibilidade de sintetizar pesquisas também existentes, mas ainda iniciais, pretender-se-á caracterizar a penetra-
ção e consolidação da economia de mercado em Angola, demonstrando, por um lado, que o processo de desenvolvimento teve a sua lógica, que era a de permitir uma exploração colonial racional e preparar o caminho para a neocolonização, e, por outro lado, que certos factos «aleatórios» são expressão
duma especificidade do modelo colonial adoptado que o não fazem transbordar, no essencial, para além das fronteiras dos modelos impostos pelas outras potências coloniais. O ensaio limita-se assim à análise do processo económico interno de Angola e suas ligações directas com a política económica da potência colonial, excluindo, mas sem poder de forma alguma pretender subestimar, os efeitos da conjuntura da economia mundial sobre a actividade económica em Angola, que, sendo um factor relevante a tomar em consideração, excede o âmbito da presente análise.


I. A ESTRUTURA DA ECONOMIA COLONIAL ATÉ À DÉCADA DE 60

Nas décadas de 30 até 50, o factor essencial de produção dinamizador da economia angolana foi o factor trabalho, pilar tradicional do sistema de exploração colonial. O factor capital, se bem que se tivesse vindo a reforçar principalmente a partir dos anos 203, era ainda débil em termos de acumulação local e afluía
de forma ténue da metrópole à época fracamente industrializada; por outro lado, ao capital estrangeiro deparava-se certa dificuldade de penetração devido à política proteccionista do Estado Novo, que insistia em dar preferência ao capital português4.

O sistema fiscal e o regulamento do trabalho, baseado no Código do Trabalho do Indígena, de 1928, constituíam o enquadramento institucional destinado a limitar a possibilidade de o trabalhador angolano reduzir a sua actividade à cultura de subsistência, libertando mão-de-obra a ser inserida no circuito de economia monetária, seja através da sua introdução na «rede de comercialização» pela cultura autónoma de produtos de exportação, seja através da exploração directa da mão-de-obra pelo assalariamento. Preten-
dia-se criar condições para a existência e utilização de mão-de-obra em termos favoráveis a uma economia de mercado. O método utilizado era assim duplo. Um indirecto, através do sistema de impostos, que coagia à obtenção de rendimentos monetários, sendo a aplicação das leis fiscais «utilizada  pelos funcionários da Administração para garantir a mão-de-obra necessária às plantações europeias de cacau, café ou sisal, ou a empresas como as minas de diamantes»5; o outro método era directo, através do trabalho forçado
sob variadas formas. O Decreto n.° 16 199 (Código do Trabalho do Indígena) permitia o trabalho compelido para fins de interesse público, embora a titulo excepcional (artigo 294, § único). Contudo, «na prática, como não havia afluência espontânea de mão-de-obra em número suficiente, eram as autoridades administrativas que recrutavam os trabalhadores para as obras públicas em curso»6. Também a proibição do trabalho compelido em empresas privadas era ignorada pela Administração, servindo, por exemplo, o cultivo obrigatório do algodão de pretexto para este tipo de trabalho nas plantações europeias que possuíam concessões do Governo7. «Em Angola, o Estado actua aberta e deliberadamente como agente recrutador e distribuidor do trabalho em benefício dos colonos.»8 A Convenção do Trabalho Forçado, de 1930, foi ratificada por Portugal somente em 1956 e subterfúgios legais permitiam continuar a violar a Convenção9.
O trabalho forçado, pelo impacte que provocava no trabalhador africano, tinha ainda o efeito de induzir a aceitação de salários baixos junto dos empregadores particulares, sendo assim errado assumir que estes trabalhadores, ao aceitarem contratos a baixo nível salarial, respondiam a incentivos
económicos normais10.

Em 1941, os salários médios mensais eram de 27$ para os trabalhadores agrícolas residentes na região do local de trabalho e de 36$ para a mão-de-obra migrante, acrescidos de alimentação e vestuário n. O pagamento feito aos trabalhadores autónomos situava-se igualmente a um nível extremamente baixo, sob um regime de preços fixados por lei. Em meados de 40, o preço do milho de Angola foi fixado em 1$, enquanto o dos Estados Unidos ficava a 2$05 e o da Argentina a 2$81. Daquele escudo, ao cultivador africano eram
pagos $0,5812.

Este sistema de produção, baseado quase exclusivamente no factor tra- balho e nestas condições, não podia induzir uma economia dinâmica. Na base de uma população que em 1930 pouco ultrapassa os 3 milhões e em 1950 os 4 milhões, os fracos salários distribuídos e os baixos preços pagos ao cultivador africano não permitem o desenvolvimento de um mercado interno activo de consumo, mesmo que algumas camadas sociais estivessem interessadas na sua expansão. A procura de bens de consumo encontra uma base
fraca de alargamento quase exclusivamente no poder de compra dos colo- nos, que, contudo, eram em número de 30 000 em 1930 e em 1950 não ultrapassavam os 75 000. Em 1930-31, do valor da exportação, 15°/o têm origem na produção de agricultores africanos autónomos, 20% na de contratadores
e somente 5% na produção directa de europeus. Da produção agrícola em 1942, apenas 28,9% eram de origem europeiaI3

CONTINUA...
 Ver aqui: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223476582X5dGR7qk4Lo82EL4.pdf.




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