Sul de Angola - O Gado Sagrado entre os Nhanecas-Humbes (1) O cortejo
."O grupo étnico que apelidamos de Nhaneca-Humbe constitui um grande agregado populacional no Sudoeste de Angola. Possui uma unidade étnica bastante bem definida e a sua coesão linguística é facilmente observável para quem se dedica a estudos desta natureza.
Inclui os seguintes povos: Muílas, Gambos, Humbes, Donguenas, Hingas, Cuâncuas, Handas, Quipungos e Quilengues.
Com excepção da região de Quilengues e parte da área da Bibala, podemos dizer que estes povos ocupam a terra planáltica do Sul de Angola.
Esta área atinge o seu ponto mais elevado no planalto do Bimbe, perto da Humpata (cerca de 2300 metros), descaindo gradualmente até ao vale do Cunene.
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Não se pode falar na vida pastoril destes povos sem mencionar a existência do gado sagrado (machos ou fêmeas bovinos).
Regra geral, os animais sagrados são herdados ou recebidos como presente do pai, de um tio materno ou de um irmão. Referindo-se a um deles no singular, chamam-lhe otyi-panga, que quer dizer "o animal amigo".
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O espírito do benfeitor falecido parece protegê-los ou, mesmo, residir neles. Os espíritos comunicam por seu intermédio com os vivos. São como que a protecção da família: todo o bem que a esta sucede é facilmente atribuído à sua interferência. Por isso se lhes presta culto e se lhes dispensam cuidados muito especiais.
Tudo o que esteja relacionado com estes animais reveste um carácter sagrado - o leite, os excrementos, o vaso da ordenha, o lugar onde o leite é distribuído.
Nunca podem ser alienados e, se forem roubados, constitui tal facto um grande desastre para o dono e para a família deste.
Todo o nhaneca que se respeita deve possuir pelo menos dois bois (ou vacas) sagrados: um recebido do pai e o outro herdado do tio materno. Os mais ricos têm quatro ou cinco.
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É entre os Nhanecas que se encontram talvez mais variedades de animais sagrados. Conhecem eles pelo menos seis classes de "bois" sagrados:
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1 - Onaluhonge, que quer dizer: "aquele da vara". - Pode ser um macho que o filho recebe de seu pai. Trata-se, porém, geralmente, de uma vitela. Assim que tiver a primeira cria, o leite só poderá ser utilizado pelo proprietário ou pelos companheiros de circuncisão. Os mesmos, e só eles, podem comer a carne desta vaca, quando ela morrer de doença ou de velhice.
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2 - Ondyila-ombe - É uma vaca oferecida ao filho do falecido dono do gado. O leite pertence exclusivamente ao órfão e a seus filhos, se os tiver. Enquanto pequenos, alimentar-se-ão do leite desta vaca; uma vez crescidos, abster-se-ão de o fazer, por respeito.
De vez em quando conduzem todas as vacas ao cemitério - todas, mesmo as profanas. Vão acompanhadas dos seus vitelos, a um dos quais se racha então uma orelha ao meio. O sangue, derramado sobre as campas, é oferecido como sacrifício aos mortos aí enterrados. Se o vitelo vingar e for fêmea, ficará automaticamente sagrado como otyi-panga. Um animal destes não pode ser alienado.
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3 - Onumatwa, "a mordida", por causa da orelha fendida. Esta vaca pouco difere da precedente. Para a consagrar, porém, não é necessário ir fazer a cerimónia ao cemitério. O animal foi recebido por um sobrinho, por ocasião da morte de um tio: é como o seu memorial. O leite pertence ao dono e aos seus filhos. A descendência desta vaca pode no entanto ser vendida.
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.4 - Onamphinga, "a do herdeiro". - É um boi geralmente abatido por ocasião da morte do dono. Os herdeiros só podem comer da carne do peito, que é imediatamente separada do resto, logo depois de a rês ter sido abatida. A esta carne especial têm também direito os parentes próximos paternos.
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5 - Ondilisa, "faz chorar", por alusão aos prantos fúnebres. É o boi morto por ocasião do passamento do proprietário. Mas não se lhe come a carne, a qual é lançada aos cães. O couro pertence aos herdeiros.
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6 - Onamulilo, "o do fogo". Temos aqui um boi macho muito respeitado e ao qual se não podem dar maus tratos. O dono, depois de o ter escolhido, manda um dia ministrar-lhe umas drogas por um quimbanda, o que o torna imune aos ataques do leão. Com efeito, declarou-me um velho da região da Quihita: Como poderá ele ser atacado pelo leão, se tem fogo no seu corpo?!
Quando morrer, unicamente mulheres e raparigas lhe podem comer a carne." (*)
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(*) - Adaptado de: Padre Carlos Estermann - Etnografia do Sudoeste de Angola - Vol. 2 - Grupo Étnico Nhaneca-Humbe - Junta de Investigações do Ultramar - Lisboa - Portugal - 1960.
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"A manifestação mais espectacular, respeitante ao gado sagrado, é o chamado "cortejo do boi sagrado", rito que hoje em dia só é praticado entre os Nhanecas.
A festa consiste essencialmente num cortejo solene, que leva o boi sagrado do régulo através do sobado inteiro, com todas as honras que são devidas a um animal no qual as almas dos antigos reis parecem ter estabelecido o seu habitáculo.
O boi, que é de cor branca e preta, tem ao seu serviço um séquito de altos dignitários, entre os quais se destacam o mwene-hambo, que é o chefe dos pastores do gado do soba, e o nthoma, que faz as vezes de arauto, anunciando por toda a parte a passagem do boi.
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Antes da saída do cortejo, o soba faz as recomendações seguintes:
Percorrei a terra, fazei a festa. Se o cortejo encontrar um cabrito no caminho, matai-o; se for um boi, comei-o; se for uma criança, prendei-a e que a família pague um boi para a resgatar!
Toda a pessoa adulta deve venerar o boi à sua passagem. Se houver alguém que assim não proceda, tirai-lhe tudo quanto tem. Se resistir, matai-o. Que não se chore o morto. É um tempo de regozijo!
Que tudo seja permitido! No entanto, não se devem maltratar as mulheres. Não deve haver nem questões nem querelas. Não pode haver lamentações, mesmo que alguém morra. O povo quer a festa. Se eu a não permitisse, o povo ficaria descontente. Ide, pois!
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Feita esta proclamação, procede-se à cerimónia seguinte: a primeira mulher do soba apanha um pouco do pó das pegadas do chefe dos pastores, ao mesmo tempo que uma pequena porção da bosta do boi sagrado, e leva estes produtos para o quarto de dormir, colocando-os debaixo do travesseiro de madeira. Não podendo tomar parte no cortejo, ficar-lhe-á desta maneira pelo menos indirectamente unida. Durante o cortejo, ela e o régulo têm a obrigação de guardar continência, tal como o chefe dos pastores.
A procissão do boi sagrado dura mais ou menos três semanas. Em todas as quintas por onde ele passa são-lhe prestadas todas as honras e, no decorrer da viagem festiva, junta-se-lhe muito gado para acompanhar o cortejo.
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De regresso à residência do soba, este e a mulher principal, mais uma rapariga virgem, apresentam ao animal uma bebida peculiar. O boi sagrado lambe-a com sofreguidão, o que é um motivo de alegria para todos os circunstantes e um óptimo augúrio para toda a tribo. Nesta ordem de ideias, o chefe dos pastores promete prosperidade e uma protecção especial dos espíritos dos antigos sobas para todo o povo." (*)
(*) Adaptado de: Padre Carlos Estermann - Etnografia do Sudoeste de Angola - Vol. 2 - Grupo Étnico Nhaneca-Humbe - Junta de Investigações do Ultramar - Lisboa - Portugal - 1960.
Caro colega: Estou a trabalhar na pesquisa para um documentário da Margarida Cardoso que reflecte sobre a história de Portugal e Angola desde os tempos da luta anti-fascista, dos movimentos de libertação até ao pós-Independência, através do retrato da geração de 60 que viveu intensamente este período. O filme pretende acima de tudo ser uma reflexão emocional e pessoal sobre um tempo de grandes e importantes mudanças Históricas.
ResponderEliminarSe tiver imagens de Angola dos anos 60/70 ou informações a partilhar connosco por favor faça-nos saber.
cumprimentos, marta rodrigues
Caro colega: Estou a trabalhar na pesquisa para um documentário da Margarida Cardoso que reflecte sobre a história de Portugal e Angola desde os tempos da luta anti-fascista, dos movimentos de libertação até ao pós-Independência, através do retrato da geração de 60 que viveu intensamente este período. O filme pretende acima de tudo ser uma reflexão emocional e pessoal sobre um tempo de grandes e importantes mudanças Históricas.
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cumprimentos, marta rodrigues