Elizabete Jambeca
O Cuanhama, como o geral dos territórios para além do Cunene, era absolutamente desconhecido dos europeus antes da segunda metade do século XIX ou, pelo menos, não se conhecem registos dessas paragens austrais, anteriores aquela época. Quando Lopes de Lima publica a sua “Monografia de Angola”, em 1844, os conhecimentos sobre as terras do Sul não passavam além do Humbe.
Só em 1850, os funantes Bernardino J. Brochado e A. F. Nogueira, [Vendedores ambulantes que transportavam a mais variada mercadoria em carros de bois e, por conta própria ou como comissionistas, percorriam os sertões de povoação em povoação, fazendo o seu negócio.] fazem as primeiras visitas documentadas de europeus ao Cuanhama, no tempo do soba Nahmadi, e dão as primeiras notícias sobre os povos Ambós, guerreiros de alguma crueldade – Cuamatos, Evales, Dombondolas, Cafimas e os mais numerosos e temidos a que chamavam Cuanhamas. Segundo o Padre Keiling, em “Quarenta Anos de África”, toda a Ovambolândia fazia parte de um grande lago, do qual nos restou apenas o temporário Etosha, na Namíbia. Depois de seco este grande lago, ficou em seu lugar uma vasta e ligeira depressão de terras salgadas, alagadiças na época das chuvas, para onde convergiram em grande profusão muitas espécies herbívoras, atrás das quais vieram os caçadores que exclamavam: tuende ko nhama – “vamos à carne”, donde, o nome Cuanhama.
A bibliografia internacional costuma atribuir estes primeiros relatos sobre o território e as gentes do sudoeste de Angola a L. Magyar, oficial da marinha austro-húngara, que em finais da década de oitenta passou pela região em viagem de exploração, mas o facto é que o austríaco foi hospede dos dois negociantes portugueses que entretanto, um e outro, tinham fixado residência no Humbe em localizações distintas.
Mas esta apetência pelos largos espaços bordejados de espinheiras e ponteados de acácias e mutiatis, só veio mesmo a colocar-se quanto já decorriam tímidas tentativas de instalação de uma feitoria na Huíla e aportavam a Moçâmedes os primeiros luso-brasileiros vindos da cidade do Recife, Pernambuco. Foi por essa época que, como coisa tenebrosa, surgiu o nome do Cuanhama, o nome de um povo que conseguia colocar mais de vinte mil homens em armas, um exército com quadros e guerreiros altamente treinados e hierarquizados, com que os europeus teriam que se haver se quisessem penetrar aqueles sertões. Povo combativo, com hegemonia sobre os seus vizinhos, exibiam a organização militar mais perfeita de todas as muitas etnias de Angola.
A unidade táctica dos Cuanhamas era a etanga, que agrupava cem homens. Seis etangas juntas constituíam uma guerra , comandada por um lenga, chefe militar e conselheiro do soberano em tempo de paz. Um conjunto de guerras formava uma ohita, que funcionava como que um corpo de exército, viajando sob a protecção do ondiai, homem de virtudes e de magias poderosas. Os seus chefes militares combatiam a cavalo, comandando incursões por todo o Cunene, numa zona tão vasta que abrangia o Humbe, os Gambos, Jau, Chela, Mulongo e Capelongo, chegando mesmo em 1899, durante o reinado de Weyulu, a estender as suas razias até Quipungo e Caconda. Estas hostes regressam aos eumbos, quase sempre, em marchas triunfais e carregando fartos espólios de escravos, gado e mulheres.
(...) A Nahmadi sucedeu Weyulu ya Hedimbi e foi durante o reinado deste grande chefe que nasce, num eumbo perto de Naulila e de uma das famílias da nobreza tradicional, Elizabete Jambeca.
A Weyulu sucedeu Nande, e a este sucedeu Mandune Ndemufayo , senhor dos Cuanhamas, soba dos sobas, hamba de N'Giva, cruel e inteligente, guerreiro bárbaro e corajoso, chefe supremo da Nação Ovambo.
(...) Entretanto, em função das deliberações emanadas da Conferência de Berlim e da indefinição da fronteira Sul que divide Angola do Sudoeste Africano, a Namíbia dos actuais mapas, os Alemães exerciam forte pressão sobre o território dos Ambós, que começavam a fartar-se de serem tratados como intrusos na terra dos seus ancestrais. As posições radicalizaram-se quando os germânicos decidiram instalar as suas hortas em Okahandja, a sudoeste de Omaruru, exactamente onde repousavam, à sombra de frondosas árvores sagradas, os restos mortais dos antigos chefes. Foi então decidida a luta e um ataque cirúrgico aos Alemães, com instruções precisas para que fossem feitas baixas entre os homens, deixando de fora da peleja as mulheres e as crianças, tendo sido colhidos por esta explosão de ódio, cento e vinte e três alemães.
(...) A retaliação não se fez esperar e os germânicos, comandados pelo general Lothar von Trotha, apresentaram-se em força no território, apetrechados de modernas espingardas, metralhadoras e dos terríveis e inovadores canhões Krupp de tiro rápido. Apostados em eliminar qualquer hipótese de futura rebelião, promoveram a razia dos eumbos [povoações de uma família e aparentados], perseguiram fugitivos, mataram e incendiaram tudo à sua passagem e, no fim do pesadelo, von Trotha vangloriava-se de que haviam abatido sessenta e cinco mil “ gentios ”.
Estes incidentes causaram ódios duradouros e indiscriminados contra os invasores europeus, tidos no seu conjunto como uma só etnia antagónica, independentemente de serem eles Portugueses, Alemães, Ingleses ou Bóeres, e foi nesta onda de ânimos incendiados que dois funantes foram assassinados, causando grande consternação e muitos protestos entre a comunidade portuguesa. Logo se levantaram exaltados clamores de vingança contra os Cuanhamas e os seus malditos hábitos de rapina, numa precipitada análise e absoluta falta de conhecimento concreto dos factos ocorridos, pois a responsabilidade daquelas mortes era dos Cuamato.
Contra a corrente de indignação geral dos seus compatriotas, é ainda Gomes da Costa, ainda chefe do conselho do Humbe, que apresenta uma versão muito despachada e pitoresca dos acontecimentos, bem na linha do seu temperamento e capacidade de análise das ocorrências. No que respeita a um dos casos, relata para ao governador de Moçâmedes o seguinte: “ É facto que houve há tempos o assassínio dum branco, mas nem foi no Cuanhama, nem para o roubar; este negociante, não se reputando satisfeito com o gado que os pretos lhe deram em troca das fazendas vendidas, foi-se ao curral do chefe da povoação e tentou tirar de lá o gado que lhe pareceu; os pretos, irritados, saltaram-lhe em cima e mataram-no (...). O que os pretos neste caso fizeram ao branco faria qualquer saloio dos arredores de Lisboa em idênticas circunstâncias, e ainda ninguém por isso se lembrou de declarar guerra ao soba da Porcalhota ou ao lenga de Loures. ”
Por altura destes acontecimentos, e totalmente alheia a estas indacas [questões, conflitos, “ makas ”]papas de farinha de milho, massango ou massambala (noutras regiões denominada pirão ou, se de farinha de mandioca, pirão)], a vida de Elizabete Jambeca corria simples e plena de felicidade. Cumprindo as obrigações inerentes a uma criança no início da adolescência, depois de comido o matete [matinal, deixava a embala na companhia da sua mãe e tias a caminho do arimo familiar [lavra ou horta de milho, massango ( Pennisetum spicatum ) e/ou massambala ( Andropogos sorghum ), feijão frade ( Vigna unguiculata ), batata doce também conhecida por cará ( Ipomea batatas ), mandioca ( Monihot utilissima ), abóboras, amendoim ( Arachis hypogea ) e outras culturas de auto-subsistência alimentar] Falava o seu dialecto e inglês.
Elizabete Jambeca continuou a viver na sua embala, no Cuanhama. Quando os seus dias chegaram ao fim, os seus parentes cuanhamas pretenderam realizar o seu funeral seguindo os ritos do seu povo.
O ritual funerário dos Cuanhamas tem o envolvimento de seitas secretas na sua gestão: tudo é realizado num secretismo absoluto e participam somente homens: quimbandas (m.q. médicos), feiticeiros e mágicos e ainda elementos da própria corte do defunto. É sacrificado um boi soba, de cor branca, considerado sagrado. Duas crianças eram enterradas vivas, uma de cada lado do soberano. No caso de Elizabete Jambeca, soberana. (Posteriormente, adoptou-se o costume de, em vez das crianças, se sacrificarem dois escravos, elementos de outra tribo, capturados em combate, e escolhidos para esse efeito.)
O soberano é envolto na pele do boi, ainda ensanguentada, na posição sentado, virado para Nascente, como se se mantivesse no seu trono, perpetuando a reinação! (Esta palavra tem duas vertentes: a política e a circense. Dentro dos contornos da própria negritude, tocam-se e completam-se.) As duas crianças ou os dois escravos iluminam o caminho... a promessa de renascer todos os dias!
O soberano é envolto na pele do boi, ainda ensanguentada, na posição sentado, virado para Nascente, como se se mantivesse no seu trono, perpetuando a reinação! (Esta palavra tem duas vertentes: a política e a circense. Dentro dos contornos da própria negritude, tocam-se e completam-se.) As duas crianças ou os dois escravos iluminam o caminho... a promessa de renascer todos os dias!
A sua filha, porém, não concordou que se sacrificassem as crianças e contactou as autoridades portuguesas. Consequentemente, o seu funeral realizou-se segundo os costumes portugueses e teve honras militares. Elizabete Jambeca foi sepultada com a espada e Grande Cruz de Guerra que lhe tinha sido concedida pelo governo português, pelos serviços prestados na campanha do Sul de Angola.
No dia seguinte, porém, as duas crianças apareceram afogadas, num pequeno charco de água... Dizia-se que, afinal, elas não poderiam ter sobrevivido porque o seu destino já tinha sido traçado...
Uma bela história, dirão uns... estranha, pelos seus ritos, dirão outros... não tão estranha se nos recordarmos de costumes idênticos de outros povos, os do Egipto, por exemplo...
Num ponto, todavia, todos concordaremos: Elizabete Jambeca é indubitavelmente uma figura de Angola. Ela lutou e contribuiu para que as fronteiras do seu país se mantivessem intactas.
FONTE:
http://www.carlosduarte.ecn.br/mulheresdeangola.htm
Parabéns pela postagem....
ResponderEliminarabraços