domingo, 17 de outubro de 2010

Observações sobre a viagem da costa d'Angola à costa de Moçambique - 1788. Relatório da viagem feita ao Rio dos Elefantes - 1854

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Em 1787, o naturalista José Maria de Lacerda integrou a expedição destinada ao reconhecimento do curso do Rio Cunene, chefiada pelo Capitão António José da Costa, que não teve êxito, pois não chegou ao destino. Ele mesmo o diz neste texto endereçado ao Ministro da Marinha e do Ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho, que a seguir se reproduz e em que salienta mais uma vez a necessidade de empreender a comunicação por terra entre Angola e Moçambique. O Ministro não queria outra coisa, até porque esse fora o sonho de seu pai, Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que fora Governador-Geral de Angola, de 1764 a 1772. Por ordem do mesmo Ministro, a expedição foi iniciada a partir de Moçambique em Dezembro de 1797, sob a direcção do Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida, Governador em Moçambique dos Rios da Sena, que veio a falecer de paludismo a 17 ou 18 de Outubro de 1798, no Cazembe. O diário dessa viagem está publicado nos Annaes Marítimos e Coloniaes, série n.º 4, pags. 286-300, 303-314, 334-343, 377-381, 397-408,e na Série n.º 5, pags. 29-26, 63-77, 108-120; depois reproduzido em livro editado pela Imprensa Nacional em 1889, com o título “Diário da viagem de Mossambique para os Rios da Sena feita pelo governador dos mesmos rios o D.or Francisco José de Lacerda e Almeida". A expedição prosseguiu e foi nessa parte narrada pelo Capelão P.e Francisco João Pinto, figurando nos mesmos Annaes na Série n.º 5, pags. 149-164, 199-208, 264-278, 321-337, 364-372, 428-437, 468-481.

Ao entregar o texto da Memória de José Maria de Lacerda aos Annaes para publicação, o Visconde de Sá da Bandeira acrescentou-lhe cinco notas a final, datadas de 2 de Junho de 1844, que têm grande interesse.

Entretanto, José Maria de Lacerda faleceu em Malange, em 1797.




Quanto à foz do Cunene, foi objecto de uma expedição organizada em Novembro de 1854 por Fernando da Costa Leal, Governador do distrito de Moçâmedes de 1854 a 1859 e de 1862 a 1866, cujo relato também aqui se reproduz.


Observações sobre a viagem da costa d' Angola à costa de Moçambique, por José Maria de Lacerda
Documento oferecido à Associação Marítima pelo seu ex-Presidente, o Ex.mo Sr. Visconde de Sá da Bandeira.


Ill.mo e Ex.mo Senhor,


A glória de um descobridor, que não se poupa a fadigas em promover a felicidade dos seus semelhantes, leva certamente manifesta primazia sobre a fama de um conquistador, que mais parece, destinado para flagelo da humanidade: uma vista de olhos sobre a moderna e antiga história, nos desengana convincentemente da verdade deste acerto. E na geral estimação mais gloriosa e mais venerável a memória dos Henriques traçando em Silves as primeiras linhas, e lançando as raízes dos apetecidos descobrimentos da Ásia, que lhes mereceram o delicioso timbre de Talent de bien faire, do que a dos Filipes e Alexandres que forjam em Macedónia, e deitam depois a Grécia os pesados grilhões da escravidão, e finalmente por intrigas, e pelo único direito de mais fortes se arrogam o soberbo título de domadores da mesma Ásia. O espírito, Senhor Excelentíssimo, o espírito que anima a um e outro, é quem pode decidir bem claramente a qual dos dois se devem erigir estátuas no templo da memória, e conservar seu nome nos fautos da imortalidade. Ah! Senhor, e quanto é abominável, quanto horrorosa aos olhos de uma sã filosofia a memória de um homem que, arrebatado por uma desmedida ambição de dominar, busca pretextos especiosos para despojar os seus semelhantes dos sagrados direitos com que a Providencia os criou livres, para os fazer servir aos seus ambiciosos desígnios, e gemer constrangidos debaixo do jugo do um injusto cativeiro! Pelo contrário quanto é amável, quanto preciosa a vista do universo e quanto digna das suas aclamações abençoadas, aquela alma generosa que, não satisfeita com as luzes de que se observa enriquecida, procura difundi-las a maneira do sol benigno que, sem avareza, comunica seus raios criadores a um e a outro hemisfério, procura, digo, difundi-las sobre as trevas da ignorância dos outros seus semelhantes, que trabalha por descobrir; promovendo pela comunicação os interesses das nações desconhecidas e mais remotas, as utilidades do comércio pela importação e exportação dos géneros, a cultura dos povos e terrenos incultos, a polícia da barbaridade, os grandes cómodos da vida social e mais que tudo, se as circunstâncias o permitem, o conhecimento da verdadeira religião e da única e suprema Divindade! Oh este sim, este é quem merece com maior justiça, como Tito, ser aclamado por delícias do universo!

Estas reflexões, Senhor Excelentíssimo, que há muito se revolviam no meu acanhado espírito, agora se avivaram com a noticia, para mim agradável e gostosa, de que Vossa Excelência, animado de um verdadeiro patriotismo, projectara o descobrimento do resto do grande sertão e do país desconhecido de Benguela, e a comunicação por terra das duas costas oriental e ocidental dos vastíssimos domínios do reino de Angola [Veja-se no fim a nota —A—]. Exultei pois dentro de mim mesmo ao lembrar-me das grandes vantagens deste descobrimento, que eu conheço praticamente pela dilatada experiência de largos anos em que habitei e corri estes países. Eu sei que esta empresa já tem sido intentada por diferentes Generais e Governadores, sendo o primeiro a formar este plano e projecto interessante o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, de saudosa memória, cujo governo, pelos seus acertos, prudência, suavidade e inteireza, vive na perpétua lembrança dos Angolistas, que de pais a filhos conservam em gostosa tradição dos perenes monumentos de beneficência com eles tantas vezes praticados, e que servirá sempre de modelo aos que procurarem governar aqueles e outros povos com justiça. E que glória não resulta a Vossa Excelência se executar com felicidade um projecto que mereceu justamente as considerações do seu Ilustríssimo e Excelentíssimo progenitor, e que na verdade se faz digno das sérias atenções de um Ministro que tanto promove e zela o bem da pátria, a glória da nação e os interesses do seu Príncipe? Aqui fala tão somente o coração, nem a vil adulação teve entrada no meu peito, quando a minha pena arrebatada, e movida pela sã verdade, correu ligeira e formou gostosa expressões sinceras que ainda mal indicam os grandes sentimentos da minha alma. Além do que: eu conheço que falo a um Ministro amante da verdade, e que estranhavelmente detesta e abomina os sim agradáveis, mas envenenados perfumes da lisonja.

O bem pois da minha pátria, a glória da minha nação e os interesses do meu Príncipe, eis aqui, Senhor Excelentíssimo, os únicos e poderosos estímulos que também me obrigaram a fazer, e conduzir à presença respeitável de Vossa Excelência algumas reflexões que a experiência e conhecimento do país me tem ministrado, sem mais outro algum intento, ou pretensão que não seja a gostosa complacência de concorrer por este modo, quanto está nas minhas forças, para o feliz e desejado êxito desta empresa. Como verdadeiro patriota dar-me-ei por bem pago e satisfeito se ela chegar a conseguir-se. É por tanto necessário dar uma breve descrição geográfica do sertão, e uma geral noção dos seus habitadores, dos seus costumes, do seu carácter, do seu governo, e dos sentimentos de que se acham animados geralmente a respeito dos brancos, de quem sempre desconfiam; dizer alguma coisa das suas copiosas e excelentes produções, da sua religião, das notáveis consequências e vantagens para o comércio e para a coroa deste descobrimento e ultimamente dos meios práticos e fáceis de ele poder efectuar-se.

Confina o vasto e fértil sertão de Benguela pelo norte com de Angola, e é dividido pelo rio Aço perto do presídio das Pedras de Ponguadongo, e pelo sul limita no país dos Hotentotes muito além do cabo negro. Para leste ele se estende até ao de Moçambique e Rio de Sena, com perto de quinhentas léguas, havendo numa e noutra costa boa porção de terreno conhecido e tratável, de que depois hei-de falar. É imensa a sua povoação, repartida em muitos governos de diferente extensão e autoridade que se vê exercitada por uns certos potentados a que dão o nome de Sovas, e a outros de Sovetas por prestarem aos primeiros uma espécie de vassalagem, e terem deles alguma dependência. São negros fortes e pela maior parte agigantados, o que faz que eles na América sejam mais estimados e de mais valor, que os de Angola. São destros no manejo das armas de fogo, de que fazem na guerra um pronto uso, que nós mesmos lhes temos ensinado: têm delas abundância, e à excepção dos canos, tudo o mais eles consertam e fazem de novo com limpeza e perfeição; e teriam zombado das nossas expedições militares, se não fossem as peças de amiudar, de que têm um grande medo. São aleivosos e muito atraiçoados: a sua amizade para com os brancos é só fundada no interesse pela importação dos géneros, que estes levam, e de que eles já não podem dispensar-se. Nunca perdem ocasião de perpetrarem os mais horrorosos crimes de roubos e homicídio contra os brancos; mas como receiam incorrer nas iras e indignação dos que governam, têm a prevenção de irem cometê-los noutras terras mais distantes, para não serem descobertos; e posto que maquinem enganos e traições, eles contudo se disfarçam muito bem no exterior, e fingem a mais rendida submissão, pronunciando com respeito e humildade a palavra Maneputo, que corresponde à de rei dos brancos. São todos antropófagos, e nas guerras que suscitam continuamente entre si por pretextos os mais frívolos, comem os mortos: barbaridade em que especialmente se distinguem os Ganguelas. Para os comer matam os velhos, que já para eles não têm preço, préstimo, nem valor; e guardam desveladamente os moços para os vender: motivo ordinário das guerras e contendas, por ser o meio de haverem escravos e da sua venda tirarem os interesses desejados.

Todo este vastíssimo país é, como disse, muito povoado destes bárbaros e não se anda mais de uma légua sem se encontrar alguma libata ou povoação maior ou mais pequena. O clima do sertão, dez léguas distantes das praias, é tão benigno e saudável, como o de Portugal; e é tão fértil, que apesar do desprezo e negligência com que o cultivam, chega a dar cento por um. Produz com abundância, e pode também dizer-se com demasia, o milho grosso, milho menor, a que chamam Maçambala, milho-miúdo, a que dão o nome de Luco, e outro quase milho-miúdo, mas compridinho, que é conhecido com o nome de Moçango; e de todos estes milhos fazem eles uma farinha excelente e saborosa. Produz também toda a casta de feijões e em tanta quantidade, que dão doze Guindas (medida que corresponde a dois alqueires nossos) por uma braça de pano zuarte, ervilhas, grãos, lentilhas e excelente trigo, mas somente cultivado por alguns dos sertanejos (são os brancos ou mulatos estabelecidos com casa de negócio no sertão), abóboras de diferentes qualidades e grandeza, melancias, melões, batatas, mandioca, goiabas, laranjas, limões e grandes canas-de-açúcar.

É finalmente o seu terreno susceptível de todas as sementes e capaz de produzir os mais belos frutos se houver agricultura. Sabem extrair o ferro das pedras do país, que todas encerram, e faz pasmar como eles, sem o devido e necessário aparelho de ferramentas proporcionadas, fabricam os ferros das suas zagaias, cadeias e outras obras. Tem igualmente minas de enxofre, que eu mesmo observei, e mais de cobre, de que eles fazem os seus ornatos. Há muitas e diversas madeiras, excelentes para toda a construção, seu comércio consiste principalmente nos escravos, no marfim e na cera imensa, de que abundam, apesar do modo bem destruidor com que os enxames são crestados, porque de ordinário lançam-lhes fogo para extraírem os seus favos.

Estes bárbaros e cegos povos não reconhecem divindade, nem se lhes observam vestígios alguns de religião. Supersticiosos por extremo, apenas se divisa neles um tal ou qual culto, ou veneração, a que pode mal e só dar-se o nome de civil, para com algum dos seus antigos Sovas, que por tradição, ou foram guerreiros eminentes, ou fizeram no seu governo reinar a abundância, o sossego e a justiça, ou se assinalaram em acções extraordinárias. Contudo, alguns são baptizados, mas como se o não foram; porque é inteira a ignorância dos Mistérios e consumado o desprezo dos preceitos. Sim, procuram e fazem diligências pelo Baptismo; porem só a fim de conseguirem a estimação dos brancos, inculcarem-se para com eles como cristãos, e insinuarem-se nos seus ânimos desprevenidos, quando assim fazem a bem dos seus interesses, ficando aliás no mesmo deplorável estado de irreligião, de poligamia, de superstição e de barbaridade.

É tempo de fixarmos as nossas atenções nas grandes vantagens que desta expedição resultam certamente à Coroa, ao comércio e aos mesmos povos. Por este meio estendemos as nossas conquistas e adquirimos novos conhecimentos de povos e terrenos nunca dantes praticados. Abre-se a correspondência de uma e de outra costa, e pode então com facilidade auxiliar-se uma à outra e os habitantes têm assim um refúgio, bem seguro, no caso de alguma delas ser acometida ou debelada. Já os navios da Ásia poderão descarregar em Moçambique e as fazendas serem transportadas a Benguela e outras terras do sertão, sem ser preciso dobrar-se o cabo e haver a grande demora e risco da viagem. Cresce desta sorte a actividade do comércio, produto e rendimento das alfândegas, a indústria dos brancos e dos negros, que para estes transportes, de que tiram grandes lucros, hão-de cuidar na propagação dos camelos [Veja-se no fim a nota — B —], que não têm dificuldade em amansar; os bois-cavalos, de que já fazem bastante uso até para montar e as zebras, que são inumeráveis e que pela semelhança quase inteira com as mulas, à excepção da pinta, são muito acomodadas, ao que parece, para este ministério, se houverem de tentar e procurar a sua mansidão, do mesmo modo que lá fazem aos ditos bois-cavalos. Além de que, enquanto não houver outra providência, milhares de negros se hão-de empregar de boa mente neste serviço por seu lucro, e um negro carrega às costas para levar a muitas léguas um fardo de fazenda importante em cento e vinte mil reis, e o faz por pouco preço. Eis aqui aumentado o comércio da escravatura, do marfim, da cera e de outros géneros até aqui desconhecidos, que vão talvez por este meio a descobrir-se.

Não é para desprezar e parece bem digna das atenções do Ministério a vizinhança dos novos possuidores de Tafelbay [Table-Bay. É junto a esta baía que está a cidade do Cabo, Cape Town, fundada pelos Holandeses em 1650, tomada pelos Ingleses em 1795, a quem se refere o autor; restituída aos Holandeses em 1803 e retomada pelos Ingleses em 1806 que ficaram pela paz geral na posse desta excelente colónia.]. Quem nos pode segurar de que vendo eles o abandono e o desprezo com que tratamos esta importante aquisição, não hajam de alongar as suas conquistas para o norte, com gravíssimo dano de nossos interesses? E quem há-de embaraçar essa conquista e obviar a que pelo tempo adiante se vão vender os escravos do nosso sertão do sul (como vão agora os do norte) aos Ambres e aos outros portos que ficam ao norte de Angola, onde os compram as nações estrangeiras, com diminuição visível do nosso comércio, que ao menos pela terça parte se acha descaído? [Veja-se no fim a nota –C-]

E não é outra a causa deste abatimento: porque os negros não têm dificuldade em andar mais cinquenta léguas para irem vender os seus escravos a quem lhes dá mais e melhor fazenda, o que não podem fazer os nossos negociantes; porque as vendas e os lucros dos escravos em a nossa América não correspondem à quantidade e qualidade da fazenda que os outros dão por eles. Vai portanto este descobrimento opor uma barreira a todas as tentativas que os Ingleses possam idear, para estender a sua nova colónia e aumentar o seu comércio com ruína quase inteira dos nossos interesses, o que certamente lhe não esquece; porque eu sei que eles já têm proposto avultados prémios, a quem descobrir e fizer comunicável este sertão.

Fica também por este meio o Pais todo mais seguro e mais sujeito, vendo-se como entalado: porque conhecendo os povos auxílio, que as armas de Moçambique e do Sena podem prestar às de Angola e de Benguela, e estas àquelas, é muito para esperar que se abstenham dos roubos e maus tratamentos, que fazem muitas vezes aos desamparados Sertanejos, ficando assim o comércio livre e seguras as vidas e as fazendas, que até se podem apoiar ainda melhor com mais alguns presídios, que se hajam de erigir. É inegável que estas fortalezas espalhadas pelo sertão, servem de freio, que reprime os excessos, insultos, e ousadias destes bárbaros, e os fazem conter nos seus deveres.

O ferro, de que eu já disse abundava este sertão, é um artigo não pouco interessante.

A efectuar-se a comunicação das duas costas, será este um ramo de comércio o mais capaz não só de promover as utilidades do Estado e aumento da Fazenda, mas também de fomentar a indústria desses povos, que já o forjam e se servem dele com muita destreza e prontidão. Ele, na bondade e qualidade, não cede ao Sueco e Biscainho, e os negros fabricam várias obras que vendem por preços moderados. Um Libambo, ou corrente que segura e prende doze escravos, se compra por dois panos, que correspondem a mil e duzentos réis; em atenção à sua abundância e qualidade, é que o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho fez judiciosamente construir uma fábrica para o extrair e preparar; mas desgraçadamente não teve o efeito desejado, ou fosse por intriga, ou mais depressa pelo indesculpável capricho, com que quase todos os Generais procuram abater, frustrar e desfazer tudo o que os seus antecessores começaram, por mais útil que pareça, atropelando a verdade, a consciência e os interesses do Estado. Procedimento ordinário, certamente repreensível, e pelo nosso Tito Lívio nas suas Décadas há tanto lamentado! Como o ferro é um dos géneros que os nossos navios carregam para a Ásia, é evidente que extraído e preparado no sertão e conduzido pelo Cunene (a descobrir-se a desembocadura deste rio, e fazer-se navegável, de que logo hei-de tratar) apresenta o ferro, como disse, um ramo de comércio muito atendível e importante: e até os mesmos navios da Ásia, na volta da viagem, bem poderão carregar muitas barras dele, pelos vácuos que não admitem corpos volumosos: e desta sorte vem a sua exportação a ser pronta igualmente para todas as quatro partes do Mundo. Pois se o ferro é tão digno das atenções do Ministério, não menos o deve ser o excelente cobre, de que há minas já descobertas. Os negros o fabricam e fazem dele uso para os seus ornatos e enfeites, como colares, manilhas e as chamadas vergas, com que rodeiam as pernas. Há igualmente enxofre em grande cópia, e eu mesmo vi uma larga mina dele no Dombe da Guinzamba, cinco léguas de Benguela para o Sul e légua e meia da Baía Farta, à beira do mar. As madeiras deste sertão, tem-se visto e experimentado serem as mesmas que as do sertão da Baía, igualmente boas para a construção e demais obras. E haverá ainda quem repute desprezível um manancial tão fecundo de riquezas, que nos pode constituir cada vez mais independentes dos outros povos e Nações, e fazer o nosso comércio muito mais activo?

Devo expor agora aqui a V. Ex.ª uma lembrança que há muito me ocorre, e que a verificar-se, são incalculáveis as vantagens que resultam desta empresa. É bem conhecido o rio Sena pela sua grandeza, pela soberba das suas correntes e pela opulência das suas auríferas areias; mas a sua origem ainda não esta certamente descoberta, e dele apenas sabemos, que descendo do Monomotapa, lá vai desembocar com arrogância na costa de Moçambique onde temos a nossa Quelimane.

É pois agora de saber: que o maior rio e o mais poderoso que se conhece, desde o Zaire até ao Cabo da Boa Esperança, é sem duvida um a que os naturais chamam Cunene, que quer dizer grande na língua do pais. Nasce este rio em Candimbo perto de Caconda Nova, corre para o Sul e, depois de ter engrossado suas correntes com os rios Cobango e Cutado, atravessa os domínios dos Sovas de Lebando e de Luceque, trinta léguas da sua origem; mas já então assaz poderoso, que não dá passagem aos viajantes; e o Sova de Luceque tira bom interesse dos fretes das canoas que aí tem, para os transportes de uma a outra margem; continua a correr, dirigindo-se para Leste e, tendo recebido vários rios, chega ao Humbe ou Monomotapa (cinquenta léguas da sua nascente) já tão arrogante e enriquecido, que tem aí seiscentas toesas de largura; e depois lá prossegue a sua corrente para Leste; e nada mais pode dizer-se com certeza deste famoso e grande rio [A distância de 250 a 300 léguas entre as terras designadas com o nome de Humbe grande e as do Monomotapa, não é favorável à hipótese de que elas são um mesmo país ou estado, como parece que o autor acreditou].

E acaso será ele o mesmo Sena [Veja-se no fim a nota –D-]? Duas razões mo persuadem. Primeiramente, examinados os mapas mais exactos que nos oferecem toda a costa d’África desde o Adamastor para o Norte ate Benguela, e corrido o sertão, como eu fiz para indagar as particularidades deste rio, não se encontra algum outro com foz de tal grandeza, qual promete o rio Cunene que, a cinquenta léguas da sua nascente, se acha com seiscentas toesas de largura. Em segundo lugar, o rio Sena se enobrece com as suas auríferas areias; pois o Cunene certamente lhe não cede nesta áurea prerrogativa: eu mesmo o vi e observei, quando em oitenta e sete fui mandado acompanhar a expedição que ao sertão foi enviada com instruções para se descobrir este mesmo rio até à sua foz, o que infelizmente se não efectuou: uma negra que se apanhou nas terras de Acabona (três léguas distante do Cunene) que limitam com o Monomotapa, trazia na cabeça umas folhetas de oiro do tamanho das lantejoulas ordinárias; estavam furadas; e entrando por elas pequena quantidade de cabelos encrespados, em cima davam nós, que seguravam as tais folhetas. Perguntou-se-lhe, aonde iam tirar aquelas coisas? Respondeu, que a um rio muito grande que estava daí perto; e que disto levava muita quantidade, principalmente quando chovia, mas que ninguém o procurava, porque não tinha estimação.

E qual outro podia ser este rio senão o Cunene? E como ele se encaminha desde o Humbe para a costa de Moçambique, onde se sabe que desemboca o Sena é, quanto a mim, Cunene o mesmo Sena com um nome diferente. E se não falha esta minha conjectura, que riquezas se não devem esperar para Portugal a fazer-se navegável este rio, e a poderem-se conduzir por ele a Benguela todas as fazendas descarregadas em Moçambique pelos navios da Ásia! Ficam certamente Benguela e Moçambique dois Empórios da Ásia, bem capazes de competir e disputar grandezas com as maiores povoações do mundo. Aberta pois que seja a comunicação das duas costas, fica fácil o descobrimento perfeito deste rio; porque se adquirem conhecimentos, que hoje ainda não temos, e amizade do país e do sertão; e deste modo podemos alcançar notícias certas dele, que pela sua grandeza não pode deixar de ter entre aqueles povos boa nomeada. Eles mesmos nos darão guias, e o regresso poderá então fazer-se pelas suas margens sem perigo algum de descaminho. São muitas outras as vantagens que resultam deste descobrimento, e que certamente não escapam à vivacidade e perspicácia de V. Ex.ª. Eu as deixo à sua grave ponderação; e passo, para evitar prolixidade, a tratar do modo e meios de se efectuar tão importante diligência.

Como o fim desta empresa é a comunicação das duas costas, e facilitar por terra o comércio de Benguela e sertão ocidental, com Moçambique e sertão oriental, evitando-se por este meio os perigos e as delongas indispensáveis das marítimas viagens, parecia conveniente e acertado pôr diante dos olhos o terreno conhecido, a fim de se perceber com evidência o que resta para o descobrimento projectado.

Em todo o Nano, que vem a ser todo o país compreendido entre Caconda-Nova para o Norte até ao rio Aço, os Sovas principais são: os de Balundo, de Ambo, de Quiaca, de Quitala e o de Galangue, além de uma infinidade de Sovetas seus subordinados. No sertão inferior e para o Sul, estão os poderosos Sovas de Quilengues, de Quipungo, de Gambos e de Avila, ou o formidável Canina que estende os seus domínios pelo vasto continente dos Cobaes, Mocoanhocas, e Mocorocas, habitantes do Cabo Negro, até aos Hotentotes, que já foram seus vassalos, e que por negligência dos seus Ambas (ou Sovas) sacudiram o jugo do Canina; muitos outros Sovetas e potentados há também neste sertão, sujeitos aos quatro mencionados. De Benguela para o Norte, pelo caminho de Quissangue, atravessando Balundo ate ao rio Aço, contamos oitenta léguas, pouco mais ou menos, de sertão conhecido e vassalo da Coroa Portuguesa. De Benguela para o Sul, pelo caminho de Quilomata, Lombimbe, Quilengues, Bemby, Quipungo e Gambos até ao Humbe, dividido pelo grande Cunene, temos cem léguas seguras, e também Vassalas. De Benguela, atravessando pelo meio destes dois sertões, e andando para Leste pelo caminho de Sápa Janjala, Caconda Nova, Monhembas, Galangue e Obié, país regado todo pelo útil e bem conhecido rio Quanza, temos cem léguas, e deste rio até ao Sova de Levar [Veja-se no fim a nota –E-] há-de haver oitenta léguas de país pacifico e bem trilhado por alguns dos Sertanejos, a quem os habitantes tratam bem e com os quais fazem comércio interessante. É moderna esta descoberta, e devida inteiramente à diligência e ambição dos moradores do sertão, que tiveram talvez adiantado o seu comércio e seu descobrimento, se tivessem sido auxiliados. Temos pois de Benguela para dentro, ou caminhando para Leste, boas cento e oitenta léguas de sertão trilhado e conhecido, e da parte de Moçambique e da costa oriental se acham descobertas cinquenta léguas com pouca diferença; e sendo quinhentas o total, restará apenas duzentas e setenta a descobrir.

É portanto mais fácil, do que talvez se julga, este descobrimento, não só pelo que pertence ao sertão desconhecido, mas também pelo que respeita às despesas e aprestos necessários. Porque alguns instrumentos matemáticos e quem saiba usar deles, para se tomarem as dimensões e alturas da derrota, quatrocentos homens (e talvez menos) resolutos, valentes, sujeitos e bem armados, e duas peças de campanha com as devidas munições de guerra, é quanto basta para se obstar a qualquer intentado insulto. Porque deve ser máxima inalterável destes gloriosos campeões, que o ramo da oliveira é só quem há-de aparecer na sua frente, sem jamais fazerem luzir a espada senão no último extremo e depois de exauridos todos os meios de mansidão, de bom modo, de prudência, de generosidade, de dissimulação e de paciência, em algum encontro menos atencioso ou descortês. A experiência me ensinou, que se lucra mais com estes bárbaros, fazendo-se-lhes alguns presentes, ou mimos diminutos (de que a seu tempo tratarei), sofrendo e disfarçando ao princípio alguns insultos leves, com as mais reiteradas protestações de amizade da parte do Augusto Soberano, que lá os manda a este fim e que bem pudera castigar qualquer atrevimento, do que vindo logo às do cabo, como dizem, rompendo com eles e frustrando assim decerto a empresa começada, e pondo o sertão em desconfiança de conquista e cativeiro; e por conseguinte todo em armas; instruções indispensáveis para quem houver de comandar esta gloriosa expedição.

As mencionadas forças militares com facilidade se podem ajuntar e pôr-se prontas sem dispêndio maior da Real Fazenda e do Estado. É sabido que nos sertões conhecidos de uma e de outra costa há brancos e mulatos com casas de negócio mais ou menos opulentas. E estes, como práticos e endurecidos no país, podem ser convidados para acompanhar a expedição, dando-se-lhes patentes honoríficas e para eles estimáveis de títulos diferentes, como de empacaceiros, atalaias, aventureiros e guerra preta; determinando-se a patente de Capitão de alguns daqueles títulos ao que acompanhar com vinte armas seguras e capazes, e outros tantos homens; a de Sargento-mor ao que aprontar trinta; e assim, à proporção das forças que ajuntarem, se lhes deve dar maior patente. Estes homens, chamados Sertanejos como disse, prezam-se muito destes títulos, e o Estado só despende palavras quando lhos concede. Estes pois com alguns Soldados que se puderem ajuntar e escolher, cheios de honra, e amantes da Pátria e da glória, e que completem o número indicado, e força suficiente.

Deve-se de todo dar de mão aos negros, que em multidão costumam juntar-se às expedições com o sentido só nas presas; e feitas elas desamparam logo o campo e postos. São remissos em atacar e prontíssimos em fugir; ao primeiro tiro viram costas para nunca mais aparecerem; porque o seu único estímulo é o vil interesse das rapinas. Muitas vezes são eles mesmos os que instigam as rebeliões e fomentam as desordens, e quando se procede a procurá-los, apenas se acha o lugar onde estiveram; porque à maneira de relâmpagos desaparecem num instante: além de que diminuiriam grandemente os provimentos necessários para a subsistência da outra gente. São portanto não só inúteis, mas nocivos nesta empresa, à excepção de alguns poucos indispensáveis para a guarda e condução das munições e matalotagem: e eu mesmo na guerra de oitenta e sete no sertão fui testemunha ocular do que assevero; porque dezassete homens, que se tinham adiantado com uma peça de amiudar, derrotaram e puseram em fugida o Sova de Quiaca, que vinha acompanhado de doze mil negros, deixando em nosso poder os escravos, o gado e mais presas, que aos Cobaes haviam ido apreender.

Ainda que porém se devam rejeitar os negros vis, sempre contudo parecia conveniente convidarem-se os Sovas mais vizinhos ao rio Sena, que forem amigos, a fim de que por sua intervenção se possa alcançar conhecimento, amizade e consentimento dos outros Sovas mais remotos, cuidando-se primeiro em presentear a uns e outros; porque os negros imitam nisto os mouros, dos quais para se obter alguma coisa, é preciso antes de tudo brindá-los e atraí-los com alguns mimos. E pode acontecer que, usando-se de meiguice e destreza, algum dos ditos Sovas acompanhe a expedição, ou pelo menos forneça guias, línguas e provimentos que facilitem a mesma diligência.

Para os mimos e presentes, que se houverem de fazer aos Sovas e aos seus macotas ou conselheiros por quem eles se governam, e que são muito interesseiros, basta levar algumas ancoretas de aguardente de cana, alguns fardos pequenos de fazenda própria e da estimação dos negros, e sobretudo coral falso, roncalha, velórios e outras missangas. Levar-se-ão também alguns capotes de pano ordinário agaloados de ouro falso, chapéus grossos, pela mesma forma agaloados, e alguns bastões, ou bengalas com seus castões de cobre dourado: porque um capote destes, um chapéu, uma bengala, duas ancoretas de aguardente e algumas missangas, foi sempre o mimo da maior estimação do Sova mais poderoso destes países.

Para a subsistência desta expedição poder-se-á comprar uma boa porção de gado, de que abundam aquelas terras; e dado que acabe, nunca se pode temer a fome; porque, havendo pólvora, chumbo e bala, há-de haver certamente que comer, por ser o sertão todo muito povoado de imensa e varia caça, como elefantes, rinocerontes, empacaças, zebras, palancas, gamos e veados de diferente grandeza e qualidade. Toda esta carne é excelente; e enquanto a houver, não se padece. Eu me lembro de que na guerra, que desde setenta e quatro até setenta e nove, se fez no rio grande de são Pedro aos Espanhóis e a que eu assisti, em muitos tempos não comeu o Exército outra coisa senão carne, e sempre esteve pronto, nutrido e mui contente.

O tempo próprio para esta expedição é o que vai de Maio até Setembro; tempo em que, podendo ser, ela deve acabar inteiramente, ou pelo menos suspender-se com tal cautela e providência, que os quartéis de inverno, que desde então é muito rigoroso, possam estabelecer-se em sítio tal, onde o exército não fique exposto aos seus rigores, e lhe seja fácil haver as provisões para a sua subsistência. Aquele tempo a que lá chamam o cacimbo, e que corresponde ao nosso verão, é o mais temperado e mais benigno; porque se as chuvas, que naqueles sertões são muito copiosas e muito continuadas, apanham o exército desprevenido, terá ele de invernar aí mesmo onde elas o encontrarem. E que incómodo então, que prejuízo e que destroço não há que recear de semelhante acampamento? É logo da mais séria consideração, importância e consequência, tomarem-se as medidas com tal circunspecção, que esta empresa seja começada e concluída dentro daquele tempo declarado e com as prevenções e cautelas mencionadas.

Parecia também conveniente que esta diligência tivesse o seu princípio antes pelo rio Sena e Moçambique do que por Angola, ou por Benguela. O sertão que vai a descobrir-se está mais chegado à costa oriental, e por conseguinte mais próximo àquele rio e àquela povoação e capital; os negros dessa parte são indubitavelmente mais disciplinados, mais bravos e mais valentes; e havendo algum obstáculo que romper, convém que a gente esteja fresca e vigorosa para resistir e aplanar qualquer dificuldade que da parte deles possa oferecer-se; que não se conseguiria, se a expedição fosse começada pela costa ocidental ou de Benguela. Porque quando chegasse à contra costa, vinha a esse tempo a gente já estropiada, cansada, provavelmente desbastada e bem diminuída, e como tal incapaz de resistir e vencer os embaraços que os negros dessa costa suscitassem.

Passo finalmente a tratar do que me parece mais dificultoso e ao mesmo tempo da maior importância e consequência; de um homem, digo, ou antes de um herói (que por tal deve ser avaliado) no qual concorram as qualidades indispensáveis, que requer o comando e a direcção de uma empresa tão séria e melindrosa, que a não se conseguir a primeira vez que se intentar, ficam certamente impossibilitadas quaisquer outras tentativas que depois se hajam de fazer: porque ficaria o sertão todo prevenido, de má fé e desconfiado; o que junto ao desgosto em que se acha por alguns enganos e violentas usurpações executadas por alguns dos sertanejos e outros brancos, tornaria não só impraticável, mas impossível qualquer outra diligência. Deve pois o comandante ser um homem cheio de probidade, de paciência, de fortaleza e de prudência, saudável e vigoroso, costeado no país e bem instruído nas máximas e costumes destes povos, sóbrio, modesto, sisudo e continente. Porque além da boa fé, da verdade e do pronto pagamento de tudo o que se lhe comprar, é precisa suma vigilância a respeito das mulheres, de que esses bárbaros são zelosos por extremo, e certamente se malograra a expedição se uma só fosse atacada com violência, ou ainda mesmo aliciada; e faz-se muito necessário que o comandante, dando nesta matéria o mais público, notório e constante exemplo, proíba debaixo das penas mais graves e castigue prontamente sem excepção e sem demora, a qualquer que nisto delinquir: para o que se faz preciso que ele seja revestido de grande poder e autoridade para impor e fazer executar as penas graves, que as circunstâncias exigirem. Só assim pode seu lugar fazer-se respeitável como convém, e ele ser prontamente obedecido. E se for circunspecto e prudente, como deve, saberá temperar esta autoridade com os doces atractivos da benevolência, da humanidade e da brandura. Seria bom e conveniente que não tivesse nesta diligência subordinação a governador algum, nem general, e que a estes fossem as mais apertadas e decisivas ordens, para prestarem todo o auxílio que lhes fosse requerido; mas por desgraça, eles sempre encontrarão motivos especiosos para, ou de todo desvanecer, ou pelo menos retardar estas diligências, quando não vão por eles dirigidas.

As primeiras impressões são as que decidem geralmente a respeito do partido que devemos tomar, e os homens de ordinário, se governam e determinam por aqueles objectos que lhes ferem os sentidos exteriores. Pelo que observando aqueles bárbaros povos a boa conduta, a mansidão, a verdade, a candura e moderado comportamento não só do comandante, mas também dos companheiros, inferem logo daqui as boas e pacificas intenções de quem os manda e pela experiência que tenho de tratar com esta gente, posso assegurar por muito fácil, desejado e feliz sucesso desta diligência. Além disto deve ser animado de um verdadeiro patriotismo independente, abastado e que só de glória seja ambicioso. É muito e muito de notar e averiguar esta qualidade: porque é notório e infelizmente experimentado, que o sórdido interesse dos comandantes, é quem de ordinário malogra as melhores expedições d'África. O seu mau exemplo atrai imitadores e tudo se transtorna; porque não é capaz de conter os outros, quem a si mesmo se não pode reprimir. Desta forma, ou por este motivo, se atropelam as instituições mais judiciosas e prudentes, tornam odioso o respeitável nome do Soberano que os envia, conculcam os mais sagrados direitos do decoro, da justiça e da verdade; e por cúmulo da desgraça, sempre acham subterfúgios com que evadir os castigos merecidos.

Como se não trata de ostentação nesta diligência, convém muito, ou antes é preciso diminuir o mais que puder ser, toda a bagagem aparatória e não se admitirem os costumados baús, arcas, mesas, camas, loiças e fardos de fazenda que possam embaraçar uma pronta e seguida marcha. O trem do comandante, se ele for, como deve, soldado verdadeiro, bastará que seja tal que um negro sem estorvo possa conduzi-lo. E se também nisto der exemplo, será imitado e obedecido sem constrangimento, nem violência; porque os súbditos, se observam que o seu maior ou superior se não distingue, nem se forra aos incómodos e contratempos, sofrem também à sua imitação, sujeitam-se calados, não têm ocasião de murmurar e tudo corre como deve, como se deseja e se pretende.

Para prevenir qualquer desastre que possa levar o comandante da presença dos viventes, ou que o impossibilite no exercício do seu emprego, faz-se indispensável a nomeação e companhia de um seu tenente ou vice-comandante, que seja igualmente revestido, e dotado das mesmas qualidades que ele tem de ostentar na falta, ou no impedimento do primeiro.

Estas, Senhor Excelentíssimo, são as reflexões que tenho feito sobre o descobrimento do sertão desconhecido do amplíssimo reino de Angola; e sobre a comunicação por terra das duas costas oriental e ocidental. A experiência e a prática do país as tem suscitado e feito nascer no meu espírito e o zelo do bem da minha pátria, como disse, da glória da minha nação e do interesse do meu príncipe, me obriga a apresentá-las o Vossa Excelência, que, pesando-as na balança fiel da sua perspicaz inteligência e aumentando, diminuindo e mudando o que julgar conveniente, só nos pode dar esperanças de se ver efectuada uma tão importante e gloriosa diligência. Estes os meus votos e os meus únicos desejos, sem mais outro algum intento que não seja a gostosa complacência de haver para ela concorrido, podendo seguramente asseverar como o nosso Horácio na dedicatória dos seus versos:

«Eu desta glória só fico contente

Que a minha terra amei e a minha gente. »

José Maria de Lacerda.


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