sexta-feira, 15 de outubro de 2010

OS BOERS NO PLANALTO DA HUÍLA




























Os  meus agradecimentos ao meu amigo António Trabulo que me enviou este  texto e também algumas das fotografias da sua colecção particular.

Os  bóeres são descendentes dos colonos holandeses que se fixaram no Sul da  África, nos meados do século XVII, e dos huguenotes franceses fugidos  às guerras religiosas da Europa, que se lhes juntaram, vinte e cinco  anos depois.


Criaram  raízes na terra. Pretendiam ficar. No entanto, quase século e meio  antes da eclosão dos movimentos nacionalistas africanos, já a História  os colhera na sua rede. Em 1815, a Holanda viu-se forçada a ceder a  Colónia do Cabo à Inglaterra.

Fartos dos ingleses, a partir de 1835 os bóeres começaram a emigrar para Norte. Foi a grande marcha, o Trek.  Fundaram sucessivamente o Estado Livre de Orange, o Natal e a República  do Transvaal. Os britânicos não lhes deram sossego e obrigaram-nos a  lutar pela liberdade. Os africânderes, como também eram chamados,  bateram-se bem, mas foram vencidos.

Em 1876 terminou a guerra do Transvaal.

Seiscentas  famílias bóeres penetraram no deserto do Calaari, procurando novo local  para se instalarem, longe da bandeira inglesa. Viajaram em grandes  caravanas que se organizavam, nas paragens, em posições defensivas. Os  carrões bóeres eram parecidos com que se vêem nos filmes de cobóis. A  estrutura dos veículos era simples: uma caixa grande de madeira  assentava em dois eixos. As rodas de trás, maiores, eram fixas. As  dianteiras, um pouco mais pequenas, giravam à vontade do condutor. Um  bom sistema de travagem tornava seguras as descidas íngremes. O tecto,  de lona esticado sobre arcadas de madeira, isolava o interior da chuva  e, até certo ponto, do calor, do pó e dos mosquitos. Havia muitas peças  móveis que se adaptavam às necessidades. As arcas de arrumação serviam  também de assentos. Eram puxados por seis a oito bois, por vezes por  mais.

Ao longo do Trek,  os bóeres passaram fome e sede. Sofreram com a seca e com as febres,  nas estações das chuvas. Perderam gente, gado e haveres e foram  dispersando.

Uns  tantos desistiram e voltaram para trás. Outros prosseguiram até ao Sul  de Angola e percorreram as margens dos grandes rios Cubango e Cunene.  Acabaram por estabelecer contactos com as autoridades portuguesas e  obtiveram do Governo de Lisboa a concessão de três mil hectares de terra  para se instalarem.

Vale  a pena citar uma cláusula do contrato estabelecido entre os  representantes do nosso governo e os líderes da comunidade bóer: Terreno cultivado pelo gentio é propriedade deles e não pode ser dado aos colonos que, portanto, não podem tirar-lhes o mesmo. O documento assinado garantia também, aos que chegavam, total liberdade de culto religioso.

Em  Janeiro de 1881, oitenta famílias bóeres vieram estabelecer-se nas  terras altas da Humpata. Além do gado de tracção traziam rebanhos  soltos. Eram também caçadores. Jacobus Botha chefiava o grupo. Era o  patriarca, à maneira bíblica: chefe religioso, político e militar,  experimentado em guerras e sofrimento. Vira mesmo um dos seus criados  ser devorado por um crocodilo, quando atravessava o rio Cunene, agarrado  à cauda dum cavalo.

Os  bóeres chegaram e construíram um canal de irrigação de seis quilómetros  de comprimento, com uma levada de água para cada casal.

Nessa  época, estavam fixados naquela área apenas dois portugueses. Artur de  Paiva, jovem alferes, serviu como intérprete de língua inglesa e ficou a  comandar o destacamento militar que se estabeleceu no local. Casou com  uma das filhas de Jacobus Botha. Boa parte do sucesso de Artur de Paiva  nas campanhas de ocupação do Sul de Angola ficaria a dever-se à ajuda  prestada pelos cavaleiros bóeres.

Em 1883, foram enviadas para a Humpata seis famílias da falhada colónia Júlio de Vilhena, em Pungo Andongo. No ano seguinte, fixou-se na região um grupo de colonos madeirenses.

Os  africânderes não gostaram da companhia. Acharam os novos vizinhos  atrasados. Multiplicaram-se pequenos conflitos, resultantes da  delimitação das propriedades e da distribuição da água de rega. Muitos  bóeres venderam os seus terrenos e mudaram-se para a Palanca, a sete  quilómetros de distância. Passados poucos anos, mais famílias  abandonaram a Humpata e foram à procura de outras terras nos distritos  do Huambo e do Bié. Uns tantos ficaram.

Existia,  no papel, o Esquadrão Irregular de Cavalaria da Humpata, composto por  praças de Caçadores 4. Em 1891, apenas três soldados sabiam montar.  Quando eram necessários cavaleiros, contratavam-se bóeres. Traziam armas  e montada, eram destemidos e conheciam o terreno. Faziam-se pagar bem.

Os  bóeres ao serviço de Artur de Paiva raramente terão ultrapassado a meia  centena. Foram determinantes na ocupação de Cassinga e na expedição ao  Bié, em 1890, após o suicídio do sertanejo Serpa Pinto. Foi então  aprisionado o soba Dunduma e estabelecido o domínio português na região.  Algum tempo depois, os cavaleiros contratados colaboraram na campanha  do Humbe, após o massacre do pelotão comandado pelo tenente Conde de  Almoster.

A  segunda guerra dos bóeres, travada com a Grã-Bretanha entre 1898 e 1902  não parece ter influenciado a situação dos africânderes residentes na  região.

Em  1927 a África do Sul, pretendendo contrariar a influência eleitoral  alemã na árida Damaralândia, desenvolveu uma campanha destinada  convencer os bóeres fixados no Planalto da Huíla a regressarem à terra  mãe. A iniciativa teve êxito. Em 1928, quase todos os bóeres se mudaram  para o território do Sudoeste Africano. Foi um novo Trek.

Quatro  famílias apenas ficaram na Humpata. As outras, uma a uma, carregaram  novamente os seus carrões. Carrão após carrão rolou terra abaixo pela  bem conhecida carreteira que conduz ao vale do Cunene, perto do Chitado.  Na margem esquerda do rio, ao avistarem a bandeira sul-africana,  reuniram-se todos para cantarem hinos de acção de graças. A pequena  colónia constituída por 270 pessoas de raça branca que tinha viajado  para o Norte até à Humpata em 1880 cresceu muito, contando agora perto  de 2.000 almas.

Referências:

Estermann, Charles, Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro). Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983.

Gama, António, Uma história de vida. Blogue Memórias e Raízes, 2009.
Trabulo, António, Os Colonos. Esfera do Caos, Lisboa, 2007.


Fotografias: colecção do autor.

Retirado de Africandar

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