terça-feira, 9 de novembro de 2010

Adriano Moreira, prémio de Cultura Pe. Manuel Antunes

É um actor principal da História Contemporânea de Portugal. Recebe esta sexta-feira o Prémio de Cultura Árvore da Vida Pe. Manuel Antunes, por um percurso de cidadania e contributo político e académico que recorda em entrevista à Ecclesia.


Agência ECCLESIA (AE) - No seu livro «Espuma do Tempo» afirma: "A arte de esquecer a inutilidade em que se traduz a maior parte das inquietações que consomem o nosso tempo, reduz as recordações a tão pouco que, muitas vezes, se contam num gesto, e sem palavra". Que gesto recordaria o seu contributo para a sociedade portuguesa ao longo destes anos?
Adriano Moreira (AM) - Não me considero um exemplo dessa capacidade de resumir tudo num gesto. No entanto, tenho a convicção de que - isso corresponde à verdade - aquilo que sempre sublinhou a minha intervenção foi a convicção do papel da Universidade na vida portuguesa. Para que tal acontecesse tive de praticar alguns gestos e, certamente, não foram todos agradáveis. Tivemos dificuldades grandes no percurso, mas acho que está suficientemente recompensado.
AE - Investiu muito dos seus recursos e esforços nesse projecto. ( SOM)
AM - A Universidade é um compromisso de vida. A Escola Superior Colonial - onde comecei a minha vida - estava organizada como escola de quadros. Depois de ter ganho alguma experiência nesta área e no panorama universitário português pareceu-me que tínhamos chegado a um momento em que já não era uma escola de quadros que poderia corresponder às exigências da conjuntura que tínhamos entrado. Era necessário transformá-la, realmente, numa instituição universitária que obedecesse aos princípios, à ética, aos objectivos e à relação da Universidade com a comunidade. Os factos, infelizmente, confirmaram que a conjuntura se agravaria. Naquele tempo, se averiguarmos a relação do Ensino Superior com problema fundamental que era o Ultramar, verificamos que o ensino era muito limitado: as Faculdades de Direito tinham uma cadeira - em geral era de um semestre - sobre administração colonial; a Agronomia tinha também uma cadeira sobre a agricultura tropical e nas escolas de Economia não era muito vasto o leque de matérias sobre esta área.
AE - Essa paixão pela transformação da escola teve consequências negativas aos olhos daquele tempo?
AM - Não digo que foram negativas, mas foram difíceis. Naturalmente que outras pessoas mantinham outra concepção e estavam envolvidas no passado feito com devoção naquele sentido. Aqui tratava-se - com maior ou menor acerto - entender que a conjuntura era completamente diferente e que a alteração tinha que ser feita. A Escola passou por dificuldades muito grandes - designadamente suspensão de cursos -, mas foram vencidas. Hoje, acho que ela desempenha um papel suficiente dentro da Universidade Técnica.
AE - Para além da educação, a questão colonial foi também uma das suas paixões. A sua tese foi sobre as questões prisionais no Ultramar.
AM - Há uma espécie de queda no mundo, que suponho se traduziu em duas quedas. Em primeiro lugar, a minha formação foi na Faculdade de Direito de Lisboa. Era uma ocupação muito relacionada com o Direito Positivo. A certa altura, o Almirante Sarmento Rodrigues - era Ministro do Ultramar - que tinha como subsecretário o Raul Ventura - uma das inteligências mais brilhantes da sua geração - pediu-me para estudar uma reforma do sistema prisional do Ultramar. Algo que não conhecia, ou melhor só conhecia de livros. Fiz uma visita a todos os territórios de África que mudou completamente a minha atitude. Verifiquei que o plano normativo português, incluindo os grandes princípios constitucionais, não tinham uma aplicação muito rigorosa nesses territórios.
AE - Nessa altura África entrou-lhe no sangue.
AM - Comecei a derivar para o estudo das questões sociais e menos para a capacidade da legislação ser o instrumento orientador. Indispensável sim, mas na vigência da época bastante afastado dos factos. Daí resulta todo o trajecto de reforma da Escola, modificação de currículos e o chamamento de jovens para o professorado - muitos deles enviados para o estrangeiro para obterem os títulos académicos - para combater um pouco o sistema arquipelágico em que se vivia.
Depois tenho outra queda no mundo que foi a ida na delegação de Portugal às Nações Unidas. Aí, acentuou-se a ideia que a mudança da Ordem Internacional não podia deixar de afectar o país severamente. Foi preciso acrescentar, às inquietações anteriores, o estudo dos desafios internacionais que não têm deixado de crescer em relação ao estatuto real do país na Ordem Internacional. Neste momento - como todos sabem - está numa crise enorme. Estas duas quedas implicaram uma mudança na minha vida.

MINISTRO DE SALAZAR
AE - Mudanças radicais até ao convite, em 1960, para Subsecretário de Estado do Ultramar e, posteriormente, para Ministro do Ultramar.
AM - Este chamamento foi um pouco surpreendente. Tinha estado nas Nações Unidas e escrito relatórios [para o Ministério do Ultramar] sobre o que lá se passava porque a Escola - durante bastante tempo - dependia, administrativamente, do Ministério do Ultramar por causa dos orçamentos. Fui chamado porque num dos relatórios tinha escrito que Portugal tinha evitado a condenação das Nações Unidas porque tinha conseguido manter o terço de segurança que impede a condenação, mas que entre 1960/61 a questão passaria para o terreno. Tudo indicava que deixaria de ser um debate puramente parlamentar. E isso aconteceu... Fui chamado para me questionarem como tinha previsto isso. Dei uma explicação simples. Não foi uma grande ciência porque vi o programa de entrada de novos países e, nessa data e com a entrada desses países, perderíamos o terço. Portanto, a condenação viria aí. E com esta, a legitimidade da reacção poderia ser armada de acordo com a experiência que já tínhamos do mundo.
AE - Entra no «mundo do poder» sem pertencer à Mocidade Portuguesa nem à União Nacional? ( SOM)
AM - Nunca. A explicação que me deram foi surpreendente. Quem me disse que o Presidente do Conselho queria falar comigo foi o próprio Ministro do Ultramar, Almirante Lopes Alves, uma pessoa de alta categoria intelectual e moral. Era meu amigo porque dependia dele no ponto de vista administrativo na escola. Ele estava seriamente doente e com um problema próprio de um oficial. Entendia que, apesar do seu estado de saúde, tinha que ir a Angola. Tinha sido governador e não queria dar a impressão que era o facto de aparecer aquela crise que o estava a afastar. Toda a gente compreendeu isso. No fundo, fui ajudá-lo nesse período de transição que ele fez com grande galhardia. Saiu passados poucos meses. Fui nomeado ministro pelas informações - o fundamento é curioso - que o Presidente do Conselho tinha sobre as minhas criticas muito severas ao processo administrativo e político que estava em vigor para o Ultramar. Como tive sempre o hábito de escrever as lições, as críticas não eram secretas. Convidou-me para executar «essas coisas que anda a dizer».
AE - Estava em sintonia com o Estado Novo?
AM - O que houve foi um julgamento sobre a crise que, subitamente, desafiou toda a estrutura. Aquilo que me pediam para fazer era uma ruptura que foi feita, em muitos aspectos, sem grande continuidade. Não existia, nas instâncias dessa altura, a noção de que o racismo estava a ser o dinamizador - mais importante talvez - da revolta contra os poderes coloniais. Na primeira definição do Estatuto dos Indígenas havia a debilidade de começar a identificá-los por serem da raça negra. Revogar o Estatuto dos Indígenas era fundamental...

REFORMAS QUE ABALARAM O PODER
AE - «Revogar o Estatuto dos Indígenas» e a «abolição das culturas obrigatórias» foram medidas tomadas enquanto foi Ministro do Ultramar.
AM - Sim, mas não foi fácil. Se revogamos o estatuto dos indígenas estamos a dizer que todas as etnias e culturas subordinadas ao Estado Português têm um traço que é este: a cidadania é igual para todos. Se é igual para todos, não é compatível com culturas obrigatórias. Destas, a do algodão era a mais importante. Por outro lado, foi necessário fazer um Código de Trabalho. Foi das intervenções que achei mais gratificantes porque as instâncias internacionais duvidaram disso. Nesse tempo, o BIT era uma instância de alta autoridade e organizou uma comissão para verificar se essa lei estava a ser aplicada com autenticidade. Há um relatório dos membros do BIT onde se afirma que estava a ser feita com autenticidade.
Outra coisa fundamental passava pela salvaguarda das terras. Há um regime relativo às terras para salvaguardá-las dessas comunidades. Ter uma cidadania igual com um complexo de culturas diferenciadas é um trabalho que exige muita autenticidade. Mas a revolta e as circunstâncias agravaram-se. Há uma questão nas reformas que é muito séria, sobretudo em regimes de autoridade: a defesa da sede do poder é um travão, muitas vezes, à evolução. Realmente, essas reformas coincidiram - não digo que fossem a causa directa - num abalo muito sério da sede do poder.
AE - Estas reformas levaram à sua demissão em 1963. Sentia oposição de alguns sectores na aplicação dessas remodelações?
AM - Isso é natural. Não era isso que me afligia por desagradável que tenha sido (risos...). Tenho a impressão que em Portugal a única instituição política duradoura que atravessou todos os regimes é o parlamento dos murmúrios. Nesse parlamento quem se mete em reformas tem de estar pronto para os murmúrios. Quando as reformas abalam a sede do poder, a sede reage e esse foi o caso. O Presidente do Conselho disse-me «que nunca colocou qualquer objecção às reformas - foi para isso que o convidei -, mas, neste momento, tenho que reconhecer que está a abalar a minha capacidade de continuar a controlar o governo. Portanto, temos que mudar de política». E respondi-lhe: «acaba de mudar de ministro». Eu não poderia mudar de atitude e desconhecer o entendimento que tinha da evolução que estava em curso.
AE - Até esse momento ia sentindo que o progressivo envolvimento das suas propostas poderiam dar-lhe, a curto prazo, outras responsabilidades, como ser o sucessor de António de Oliveira Salazar?
AM - Não. Aquilo que verificava é que o exercício não ia durar muito tempo.
AE - Nunca se considerou «delfim» do Presidente do Conselho?
AM - Não. Sempre fui protegido pela lucidez.
AE - Mas foi apontado....
AM - Isso é a opinião pública, mas não posso ignorar.
AE - Foram estas reformas que levaram a isso....
AM - Sobretudo nos territórios ultramarinos. Não posso ignorar esses comentários, alguns foram escritos. No entanto digo que nunca me considerei com experiência e habilitação para tomar essa responsabilidade.
AE - Mas sentia que tinha experiência para mudar o estado das coisas na altura?
AM - Aproximávamo-nos daquilo que se chama o pensamento complexo, mas neste momento é muito mais evidente.
AE - Mesmo para a mudança de regime como aconteceu em 1974?
AM - Julgo que poderia ser diferente, mas sempre com a tal reserva. Julgo que há uma interpretação um pouco exagerada de supor que as tropas foram para África convencidas que iam ganhar a guerra. Nós tínhamos e continuamos a ter uma inteligência nas Forças Armadas que é sólida. Tínhamos oficiais que sabiam perfeitamente o que se estava a passar no mundo. Eles sabiam que essas guerras não se ganham... O compromisso foi de que eles iam ganhar o tempo necessário para que uma solução política pudesse ser estruturada e eficaz. Eles deram o tempo, mas a situação política tornou-se inviável e cada vez mais difícil à medida que a conjuntura internacional se agravava e modificava. ( SOM)
Em 1974, o que aconteceu foi - em primeiro lugar - decidir acabar a guerra. O plano de descolonização foi construído depois. Isso é talvez responsável pelo passivo que teve a descolonização. Parece não ter ocorrido a ninguém que era necessário ter feito intervir as Nações Unidas porque o conflito que havia era com as Nações Unidas, elas é que tinham a experiência, responsabilidade e a autoridade. Provavelmente - nunca podemos passar desses juízos - se isso tivesse sido feito, o passivo do que foi a descolonização não teria sido tão pesado. Repare-se que a nossa guerra de Angola durou 13 anos e a guerra civil deles durou 18 anos. Aconteceu o mesmo em Moçambique. Portanto, alguém esteve interessado em manter a guerra. Diria que a luta pelas influências e supremacias imediatamente se desenvolveu para além do ponto final posto na guerra.
AE - Quem estava interessado em manter essas guerras?
AM - As grandes potências. Passados poucos meses desembarcaram os soldados que vinham de Cuba. Desembarcaram trazidos por aviões da União Soviética. Não é difícil imaginar do que se tratava... Devemos ter em conta que aquela ordem mundial que tinha o seu assento no conselho de segurança nunca vigorou. A ordem que vigorou foi a dos pactos militares durante 50 anos.
AE - Acredita que se o seu plano de reformas para África tivesse sido aplicado, actualmente existiria outra estabilidade naquele continente?
AM - É um juízo que não vale muito a pena fazer. Estava nos projectos. É impossível - não é útil sequer - imaginarmos como a vida seria diferente.
AE - No entanto sabemos que o que foi feito não resultou? ( SOM)
AM - África foi grande sacrificada com tudo isto. Mas não foi somente nos territórios portugueses. Veja-se o caso da Argélia, Sudão e corno de África. Ainda hoje, a inquietação é muito grande em África. Está a pagar o preço duríssimo com alguns aspectos inquietantes. Não se consegue acabar com o comércio das armas ligeiras. A Comissão Nacional Justiça e Paz insiste nisso todos os anos. Quando se vê as fotografias daqueles desastres - alguns são genocídios -, os soldados têm sempre armas modernas que o país dele não produz. Essas armas são todas produzidas em sociedades avançadas.
Continua...
Continua...
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=73273

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