sábado, 20 de novembro de 2010

Leonel Cosme: (Re)pensar Portugal e o Atlântico Sul



Leonel Cosme (n. em 1934, em Guimarães) viveu 30 anos em Angola, incluindo cinco após a independência, como cooperante. Foi o co-organizador das Edições Imbondeiro da antiga Sá da Bandeira (hoje, Lubango), em 1960-65, entre outras actividades culturais e cívicas, como sejam a formação de radialistas ou o comprometimento com o MPLA. Antigo jornalista, e ainda cronista, escritor e investigador, lançou agora o livro que é um testemunho eloquente da sua capacidade de pensar para lá das aparências, dos preconceitos e das verdades falsas (leia-se "afirmações infundamentadas") estabelecidas como dogmas. O título é, já por si, instigante, revelador do conteúdo.
Publica agora um livro fundamental ? Muitas são as Áfricas, Lisboa, Novo Imbondeiro, 240 págs. - para quem quiser compreender sobretudo Angola, noutras facetas, sem preconceitos, mas também alguns aspectos do Brasil, Portugal e Cabo Verde, através da análise da acção e pensamento colonizadores e da acção e pensamento libertadores de portugueses e (ex-)colonizados. Não escreve um tal livro quem quer, mas quem pode, pela sua singular vivência e posição. Um testemunho intelectual de grande qualidade, um "testamento" de saudoso amor à terra e ao povo. Inclui estudos magníficos sobre o lusotropicalismo que não existiu (refutação do que Freyre aplica a Portugal e colónias e, indirectamente, refutação das "crioulidades" angolanas que andam por aí), um sertanejo-intelectual progressista do século XIX (A. F. Nogueira), as relações históricas do Brasil com Angola, a literatura colonial (goste-se ou não da sua perspectiva muito própria), a guerra colonial e outras guerras e a (des)memória dos intervenientes e dos povos, os caminhos que África tem tomado pela mão dos seus dirigentes e intelectuais, o enigmático poeta angolano João-Maria Vilanova, que não queria que se soubesse quem era, para fazer valer a sua obra, acima de toda a biografia, e se suicidou em 2005 em Vila Nova de Gaia, com mais de 70 anos (um texto perspicaz, "psicanalítico", numa homenagem sentida e altamente problematizadora), incluindo um pungente "Quo vadis, África?", analisando o racismo, a xenofobia, a corrupção, a guerra, a fome, com especial incidência em Angola, mas comparando episodicamente com Cabo Verde, Nigéria, África do Sul, Quénia, Estados Unidos, Brasil e Portugal.
Muito historiador, crítico literário, docente de "lusofonia", ideólogo neo-lusotropicalista, terá aqui matéria para evitar julgamentos prévios, generalizações totalitárias, preconceitos arreigados, atitudes de senso duvidoso. Cosme não procura convencer com argumentação armadilhada, antes prefere demonstrar. E mais: tem a elegância, que tanto escasseia, de ser pedagógico, sem rudeza nem achaques de verrina. É dono de um discurso maduro, sereno e substancioso, que esclarece e não amofina, de um verdadeiro sénior, um mais-velho com princípios e convicções antigos ? de escrupulosa e vigilante ética individual e social. Um livro que especialistas, estudantes, políticos e portugueses, só para ficar por aqui, deviam ler com cuidadosa atenção, e verificarem que o grande ensaísmo não reside apenas em José Gil ou Eduardo Lourenço e que não há temas menores, tudo dependendo do arcaboiço de quem aborda o quê. Muitas "gralhas", até na capa, não deslustram o volume, que traz referidos Steiner, Kandjimbo, Inocência Mata, Agostinho Neto, Óscar Ribas, Kapuscinski, Hatzfeld, Waberi, Maathai, Freyre, Andrade Corvo, Laban, Pepetela, Senghor, Jaime Cortesão e tantos outros. É que Cosme tem sido um leitor voraz e um cronista pertinente de cujos textos, publicados em A Página da Educação, está já no prelo uma escolha em livro com o título de Os Portugueses, justificando-se uma natural expectativa acrescentada.
É o autor um homem recto, honrado, rigoroso e bem informado quanto ao fundamental (não embarcando em modas e ouropéis de "intelectualite", que, tantas vezes, disfarçam uma incapacidade de humanismo, pensamento e objectividade), um não académico que preza o pensamento vivificante, estribando-se nos pensadores mundiais ou regionais que o ajudam a ilustrar a sua argumentação dialéctica sem metafísica, limpa de sobrecargas de erudição desnecessária (apenas a exigível), no seu discurso sobejamente claro e sopesado, pela prática do jornalismo esclarecido.
Por vezes, quando fala, com evidente gosto, saber e pedagogia, dos variados interesses em jogo na época colonial (p. ex., sobre a maçonaria, Norton de Matos e José de Macedo, em Angola), parece um português empenhado na vertente colonial, pois não quer passar pelo que não é (angolano). Outras vezes, discute Angola com tanto prazer e objectividade que presta um serviço melhor do que muitos patriotas precipitados e preconceituosos. Quando dá essa ideia de parecer aproximar-se de formulações coloniais (referindo muitos autores portugueses ao serviço nas colónias, não oferecendo de imediato uma crítica a certos conteúdos), afinal, verifica-se tratar-se exclusivamente de apresentar dados disponíveis nem sempre lidos com proficiência (por quem tinha a obrigação profissional e política, e teria de contextualizar factos), de historiografar evidências esquecidas ou escamoteadas (p. ex., o povoamento europeu de Moçâmedes) ou de chamar a atenção para autores desconhecidos ou incrivelmente menosprezados (como A. F. Nogueira). Como não dar importância aos estudos sobre a ideia e, depois, a fundação da Universidade na Huíla (Angola) e sobre a Kuribeka, desfazendo, neste caso, o equívoco corrente de considerá-la o mesmo que a maçonaria? Cosme critica, p. ex., o historiador norte-americano Gerald Bender, por laborar em alguns erros. Dependendo do conceito e grau de cidadania, não se pode simplesmente ignorar certas histórias, secundárias que sejam, mas que confluíram na independência e que o A. pretende arrancadas às sombras do esquecimento ou da distorção. Trata-se de um belíssimo esforço de esclarecimento, que convém aproveitar sem preconceitos.
Sobre Equador, de Miguel Sousa Tavares, diz que é um romance "colonial" (usa aspas) de um autor que não considera obviamente colonialista. Este pormenor serve para mostrar como o A. pensa a contemporaneidade, as ilusões que podem acometer os leitores, de novo fascinados por uma enxurrada de textos exóticos e turísticos, como se não quisessem ou não pudessem ver para lá das aparências da fantasia, como quase sempre ocorreu com os portugueses em relação a África. Daí que ganhe outra importância, face ao surto de novas Áfricas distorcidas, o seu trabalho de resgate de um vulto oitocentista como A. F. Nogueira (investigou sobre a sua origem em Portugal e Brasil, onde viveu e trabalhou o sertanejo, mas persistem lacunas de dados), que soube enxergar a questão africana e a "raça negra" muito além do que racistas como Oliveira Martins conseguiram. Noutro texto, de modo apaixonado e com prolífica fundamentação de escritos machistas, sexistas e dominadores, passa em revista a luta de muitas mulheres, ao longo sobretudo da história ocidental, mas também africana, para o reconhecimento de iguais direitos.
Cosme escreve e pensa a complexidade com elegância e clareza, com palavras justas e comedidas, directas ao coração das grandes questões da "lusofonia" social, política, histórica e cultural, sem se ficar nessa matéria. Com suas diferenças, a maior das quais é o tamanho e abrangência da obra, é comparável, na capacidade de argumentação, na cooptação de provas e na destreza demonstrativa, a ensaístas como Alfredo Margarido, Adolfo Casais Monteiro ou António Sérgio. Este livro vai permanecer como um testemunho, de alguém que sabe, para quem, na Europa, quiser ver África para lá da imediatez dos "exotismos". Os africanos (sem preconceitos) também ficarão a ganhar com a leitura.
Muitas são as Áfricas
Leonel Cosme
Novo Imbondeiro. Lisboa
(http://www.hotfrog.pt/Empresas/Novo-Imbondeiro-Editores-Lda)

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