Este blog visa apenas dar visibilidade a textos de autores considerados de interesse para a compreensão da História Colonial de Angola. Por abarcar os mais diversas abordagens, é um blog dedicado aos de espirito aberto, que gostam de avaliar assuntos, levantar questões e tirar por si próprios suas conclusões. É natural que alguns assuntos venham a causar desagrado, e até reacções da parte daqueles cujas perspectivas estejam firmemente cristalizadas.
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
DE BENGUELLA Á CONTRA-COSTA. Reinos africanos antigos. Jornada a Ngola.--O Sova Chimbarandongo
Jornada a Ngola.--O Sova Chimbarandongo
CAPITULO IV.
POR TERRAS AVASSALLADAS.
Jornada a Ngola.--O Sova Chimbarandongo.--Belleza do caminho.--Chegada a Caconda--José d'Anchieta.--Nada de correspondencia.--Chegada do Chefe.--Vamos aos carregadores.--Ivens vai ao Cunene e eu vou ao Cunene.--Volta de casa do Bandeira.--Falham os carregadores.--O meu juizo.
No dia 1o de Janeiro de 1878, deixámos Quillengues, tendo ali feito provisão de vìveres, e comprado bastante gado para matar, bois e carneiros. O chefe, Tenente Roza, acompanhou-nos uns 7 kilòmetros, e voltou á sua residencia, seguindo nós sempre a S.E., até ás faldas da serra de Quillengues, onde acampámos junto á povoação do Secúlo Unguri. Tìnhamos um companheiro de viagem, que em Quillengues nos tinha pedido, o deixàssemos ir até ao Bihé em nossa companhia. Era elle Verìssimo Gonçalves, filho de um conhêcido sertanejo do Bihé, môrto havia pouco, que em Quillengues era empregado de um ex-criado de seu pai. Este rapaz, mulato e de mesquinha educação, como era de côrpo acanhado, cheio de vicios, dos proprios a tal gente, tinha alguma cousa de bom, e era intelligente.
Tem de figurar no correr d'esta narrativa, e por isso o menciono mais particularmente.Era acanhado e tìmido, mas não covarde, e debaixo de uma apparencia fraca, possuia uma forte organização e mùsculos de ferro. Sabía apenas ler e escrever, mas era um soffrivel atirador de segunda ordem, e manhoso caçador.Durante a demora em Quillengues, consegui domesticar dois dos jumentos, que n'esta nôva jornada já me servíram de cavalgaduras.
No seguinte dia, logo á saída, começámos a ascensão da serra de Quillengues, que n'esse ponto se chama Serra Quissècua. A subida foi difficìlima, e durante três horas lutámos com as agruras da montanha, elevando-nos a 1740 metros do nivel do mar, ou 836 acima do planalto que termina em Quillengues.
Em um desfiladeiro da serra passámos um pequeno ribeiro, que os indìgenas chamam Ob a b a - t e n d a, o que quer dizer àgua fria, fomos acampar na margem de outro chamado Cuverai, affluente do Cúe. Estes
dois ribeiros sam permanentes, e sam àguas que correm ao Cunene. O terreno continúa granìtico, mas a vegetação muda completamente de aspecto--de certo devido isto á altitude. O baobab desappareceu, e já se encontram fetos á sombra das innùmeras e variadas acacias que povôam as matas. A flôra apresenta riqueza maior em plantas herbàceas, e nas gramìneas sôbre tudo nota-se uma fôrça de vegetação vigorosissima.
Notei que atravessámos regiões onde se não encontra uma só ave, e de repente entra-se em zonas onde
milhares de passarinhos fazem uma chiada enorme. Caça vi ali pouca, mas os rastos anunciam havel-a.
Na noite do seguinte dia aconteceu-nos uma aventura curiosa. Estàvamos acampados junto do ribeiro Quicúe, que corre a S.E., em leito granìtico, e vai, provavelmente, engrossar o Cúe; quando sentímos a cadella do Capello ladrando e arremettendo furiosa, contra alguma cousa que se aproximava da barraca.Ao mesmo tempo sentìamos um forte ruminar perto de nós; o que nos fez suppor, que os jumentos se tinham soltado e pastavam dentro do campo, que era cercado de abatises espinhosas. Falámos á cadella e adormecémos. Ao alvorescer ouvímos grande rumor no campo, e saindo logo, soubémos, que os prêtos, que ao principio tinham julgado, como nós, que os burros andavam á sôlta, percebêram depois que se enganavam, e que um animal estranho se tinha introduzido no campo. Fôra effectiva menta um bùfalo enorme que nos dera a honra da sua companhia durante a noite. O caso era notavel e de explicação difficil, a não serem os repetidos rugidos dos leões que se tinham ouvido; fazendo com que o bùfalo viesse buscar guarida entre nós. No seguinte dia fomos acampar pròximo da povoação de Ngóla, e eu fiz logo annunciar a minha visita ao Sova. Depois do almôço, fui á libata procural-o. Fiz-me acompanhar dos meus muleques, levando uma cadeira para mim, e dois guardasóes.
O Sova appareceu-me logo, armado de dois cacetes e uma azagaia.Trajava tanga comprida de panno da costa, e sôbre ella uma pelle de leopardo. Tinha o peito nú pendendo-lhedo pescôço um sem-nùmero de amuletos. Recebeu-me fôra da sua barraca, por um sol abrasador; e eu offereci-lhe um guardasol, que levava para isso, de panninho encarnado; favor a que elle se mostrou muito grato.
Disse-lhe o que andava por ali a fazer, cousa que elle não percebeu muito bem; comprehendendo com-tudo perfeitamente, que lhe offerecia um pequeno barril de pòlvora, 50 pederneiras e uma duzia de guizos de latão, sem nada lhe pedir em troca--o que sôbre modo o espantou. Convidei-o a vir ao nosso campo ver os meus companheiros; e elle accedeu a isso acompanhando-me; coisa muito de notar, que os chefes indìgenas sam desconfiados. Dizendo-lhe, que mandasse uma vasilha em que eu lhe podesse dar àgua-ardente, foi elle buscar uma botija de litro. Mostrei-me admirado de que um chefe quizesse tão pouco, e convidei-o a procurar vasilha maior. Mandou então buscar uma cabaça que levaria o duplo da botija, e eu pedi-lhe que juntasse outra igual. O Règulo não podia dissimular a sua admiração pêla minha generosidade. Partímos a pé, acompanhados por três das mulhéres, as filhas, e muito pôvo, tôdos sem armas, para me mostrarem a confiança que eu lhes havia inspirado. Chegámos ao campo quando Capello fazia observações meteorològicas, e o Sova ficou admirado diante dos thermòmetros e dos baròmetros. O Ivens veio logo para junto de nós, e depois de grandes comprimentos, mostrámos ao Règulo as armas de Snider e de Winchester, que lhe causáram verdadeiro assombro. Este Chimbarandongo, que tal é o nome do sova de Ngóla, é intelligente, e sabe viver com o seu pôvo.
Offereceu-nos um boi, e tendo eu pedido licença para o matar, por haver necessidade de provisões, consentio n'isso, pedindo-me para lhe atirar eu. O boi estava estranho, e fugio para o mato, a uns oitenta metros de nós. Indiquei ao Sova o sitio em que o ia ferir, e disparei. O boi cahio. Chimbarandongo foi ver o animal, e attentando na ferida, da qual corria o sangue, aberta entre os olhos, no sitio que eu indicava, ficou tão maravilhado, que me deu repetidos abraços no meio do seu enthusiasmo. Pêlas 4 horas, formou-se sôbre nós tempestade violenta, que se desfez em raios e copiosa chuva, durando atéás 6 horas.
O Sova e as mulhéres recolhéram-se á nossa barraca, assim como alguns dos macotas. Chimbarandongo fez um discurso aos seus macotas, tendente a provar-lhes, que nós tìnhamos trazido a chuva, e com ella um grande beneficio ao paiz, ressequido pêlos calores do estío.
Tentámos explicar-lhe, que não tìnhamos tão grandes poderes, e que só Deus governava nos grandes phenòmenos da natureza; levando o Ivens a questão a ponto de lhe explicar como e porque chovía. Ouvindo isto, fez o Sova sair os seus macotas e mais pôvo que escutava a lição meteorològica.
Depois d'isso, tendo-se de novo reunido o pôvo, elle disse, que se deixasse de chover, indagaria qual dos seus sùbditos tirara a chuva, e o castigaria de morte. Nôvo discurso da nossa parte contra a pena capital; e nôva ordem de despejo da parte d'elle, que, a pesar do meio embriagado, tinha tino bastante para não comprehender que as nossas theorías não quadravam ao seu systema governativo.
Ao anoitecer retirou-se do modo o mais còmico, indo acavallo em um dos seus conselheiros, que levava as mãos nos hombros de outro; e como estivessem tôdos embriagados, a cada passo perdiam o equilibrio, ameaçando com a queda partir a cabêça ao seu soberano.
Este règulo é sensato e homem de bom juizo. Não acredita em feitiços; nem acreditava que nós lhe tivessemos trazido a chuva; mas convem-lhe apparentar que o crê, para não perder o prestigio entre os seus, que só assim querem ser governados.
No seguinte dia, vindo elle despedir-se de nós, me disse, que a sua polìtica era ser amigo dos brancos; pois que das bôas relações com elles provinha a roupa com que se cobria, e as armas e a pòlvora com que continha em respeito os seus inimigos.
"Sem os brancos," me disse elle, "nós somos mais pobres que os animaes; porque a elles temos de tirar as
pelles para nos cobrirmos; e sam bem loucos os prêtos que não cultivam a amizade dos filhos do Puto."
A libata ou povoação de Ngóla é fortemente defendida por uma dupla palissada feita com arte, que tem até uma das faces dentada para cruzamento de fogos. É tão vasta que pôde conter tôda a povoação do paiz, que ali se recolhe, em caso de guerra, com seus rebanhos. O ribeiro Cutóta corre dentro d'ella, fazendo que possa resistir a longo assedio sem receiar a sêde.
Deixando Ngóla, caminhámos por duas horas a N.E., e encontrámos o Cúe, o maior dos rios, que corre entre Quillengues e Caconda. No sitio em que tentámos a passagem tinha elle 15 metros de largo por 3 a 4 de fundo, não dando por isso vao. A chuva torrencial da vèspera, augmentando-lhe o volume d'àgua, tinha tornado impetuosa a corrente. Uma ponte de finos troncos de arbustos, offerecia uma perigosa difficil passagem aos homens carregados... Continua...
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COMO EU ATRAVESSEI ÀFRICA DO ATLANTICO AO MAR INDICO, DE BENGUELLA Á CONTRA-COSTA, A-TRAVÈS REGIÕES DESCONHECIDAS . Por SERPA PINTO
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