quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA

ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
Quando, em 1836, a opção africana se impôs na política do Governo português, o ministério de Sá da Bandeira tomou importantes medidas legislativas sobre a abolição da escravatura e a protecção do comércio entre as colónias e Lisboa. As relações internacionais impostas pela complementaridade entre as economias industriais e os fornecedores de matérias-primas determinavam o enfraquecimento do comércio triangular através do Brasil e o reforço da ligação directa à metrópole.
Tais medidas resultaram em grandes perturbações na economia ultramarina e nas relações entre o poder colonial e os poderes africanos.
As autoridades coloniais eram as primeiras a demonstrar incapacidade para executar a nova legislação, visto que a actividade económica se reduzia ao comércio e este, por sua vez, ao tráfico de escravos para a América.
Os grandes comerciantes exportadores, que punham em movimento, a partir da costa, o comércio de longa distância, eram apenas negreiros que não sabiam nem queriam lidar com outro tipo de «mercadoria». A exportação em grandes quantidades do marfim, da cera, da goma copal, da urzela não interessava aos traficantes nem aos seus concessionários, uns e outros habituados aos grandes lucros, com pouco esforço, oferecidos pela escravatura. A inaptidão conduziu ao desespero das burguesias urbanas de Luanda e Benguela, que concentravam nas mãos a ligação ao comércio internacional. Famílias influentes emigraram para o Brasil e com elas os capitais que detinham. É certo que, com a conivência da administração, a exportação de escravos continuaria ainda, por cerca de dez anos. Mas a expectativa da vigilância marítima internacional e as pressões por parte do Governo central faziam prever um fim a médio prazo.
Uma crise profunda instala-se nos centros motores do comércio de longa distância (Luanda e Benguela) e nos entrepostos mais activos (Cassange e Bié). As firmas comerciais ordenam aos seus «aviados» o abandono das feiras e outros estabelecimentos. Em consequência, o fornecimento regular de manufacturas ao mercado africano é suspenso.
No Bié e decerto noutras áreas mais concorridas pelos comerciantes, as populações tinham substituído as quinhangas tradicionais pelos tecidos importados de algodão de fraca qualidade, manufacturados primeiro na índia e depois na Europa, expressamente para o mercado africano. Quando estes faltaram, regressaram rapidamente ao vestuário tradicional.
Tem-se esquecido esta etapa africana de um circuito composto por uma corrente de ida e volta. A pressão exercida pela frente africana e a fragilidade dos meios coloniais revelam-se claramente no facto de a moeda usada pelas autoridades administrativas portuguesas nos pagamentos internos ser de origem africana, «moeda de palha», e ter cotação relativamente à moeda metálica oficial, a macuta. Os libongos, tecidos-moeda de fibra de palmeira e de fabrico africano, constituíam um meio de pagamento em espécie renovável, que correu em Luanda até finais do século XVII e só em 1852 deixou de ser usado pela administração colonial para pagamento aos soldados.
Toda uma gama de soluções terá sido adoptada pelas populações do interior no que respeita a outras mercadorias importadas menos deterioráveis. As contas ou as conchas podiam continuar a servir respectivamente de enfeite ou de moeda, durante muitos anos. As mulheres lunda possuíam colares de execução complexa, compostos por contas de todas as formas, cores e grandezas, «algumas decerto eram de facturas muito antigas, pois o nosso comércio já aí as não leva».
Os responsáveis e participanmtes de uma caravana eram verdadeiros técnicos de transportes; únicos meios de comunicação regular entre o litotal e o interior de África. Neste bilhte postal (fotografia obtida em Benguela) transparece a cosesão do grupo, organizado e armado em volta da figura central o macota, ele próprio acompanhado pelos pombeiros sentados, tendo em frente uma carga acomodada no olomango.
As sociedades africanas, em que estavam inseridos os entrepostos, haviam recebido os agentes administrativos ou comerciais, que aí permaneciam mais ou menos tempo, constituindo famílias luso-africanas. Alguns destes núcleos familiares tiveram origem no século XVIII e sobreviveram, atravessando as crises, como entidades que se diferenciavam, não tanto pela relação com a sociedade local, mas pela capacidade de relacionamento com os elementos da sociedade colonial. É o caso da família Conceição Matos, cujo fundador foi o capitão-mor do Bié, Francisco da Conceição Matos, nomeado em 1791. Português de origem brasileira, tornou-se o fundador e educador de numerosa família, cujos traços originais persistiam ainda no final do século XIX.
A família Coimbra, mais recente, fundada pelo capitão-mor Francisco José Coimbra (1835), apresenta-se como o exemplo de um grupo familiar cujo comportamento não obedecia às regras de nenhuma das duas sociedades. Enquanto a família Conceição Matos constitui um elo de ligação que preza as duas culturas em interacção, o clã Coimbra usa em seu proveito as vantagens do duplo contacto, desrespeitando ambas.
O segundo comportamento tornou-se melhor conhecido, porque os indivíduos que o seguiram usaram de mais violência, sobressaíram pela negativa e deles ficou má memória. Isto, porém, não quer dizer que eles fossem em maior número. Casos e famílias de comportamento semelhante ao primeiro exemplo são menos identificáveis, porque pactuaram, apaziguaram, se aculturaram.
Quando os «aviados» receberam ordem expressa dos seus «armadores» para abandonar as feiras do sertão, deixaram para trás as famílias mestiças. Os filhos jovens rapidamente foram integrados pela linhagem materna. Quando em 1846, Rodrigues Graça chega ao Bié encontra-os «ao desamparo, vestidos à moda gentílica (,..)». Apenas alguns velhos sertanejos, comerciantes por conta própria, resistiram, reforçando a ligação à sociedade africana.
Nos dez anos que decorreram entre 1836 e 1846, a «fronteira flexível» sofreu um refluxo brusco, directamente resultante da desorganização do comercio de longa distância. As culturas africanas recuperaram espaço. Os traços culturais transmitidos pelos núcleos luso-africanos do século XVIII e preservados parcialmente pela convivência com os agentes administrativos e comerciais sofreram um maior desgaste. Mas longe de desaparecerem, foram integrados, tal como os filhos mestiços.

CONTINUA...

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