sábado, 19 de março de 2011

BRANCOS E PRETOS EM ANGOLA Waldir Freitas Oliveira do Sector de Estudos Geográficos do C. E. A. 0.

Angola, a mais extensa "província ultramarina" portuguêsa, possui um território de 1.246.700 km2 e uma população de quase 5 milhões de habitantes. Luanda., sua Capital, terceira cidade do mundo português, ultrapassada apenas por Lisboa e Pôrto, possui cêrca de 200.000 pesso,as. Outras cidades importantes ali existentes são Lobito, Benguela, Nova Lisboa e Sá da Bandeira. Em julho do ano último, durante cêrca de uma semana, a convite do govêrno português, visitei as cidades de Luanda, Lobito, Benguela, Nova Lisboa e o Colonato da Cela. Estive, pois,em contacto com as principais cidades de Angola e com a maior parte dos homens brancos de lá. Porque a população brmca da colônia portuguêsa, calculada em cêrca de 120.000 pessoas, ou seja aproximadamente, 2% da população total do país, encontrase concentrada nos principais centros urbanos locais (1).

Assim, em Luanda encontram-se de 37 a 38 mil brancos, no Lobito, cêrca de 7.000, em Benguela, pouco mais de 5.000, em Nova Lisboa:, pouco mais de 6.000 e em Sá da Bandeira, aproximadamente 9.000, perfazendo estas cifras um total de cêrca de 65.000 brancos, apenas nas quatro mais importantes cidades de Angola. O que equivale a mais de 50% da população branca ali existente. Se acrescentarmos, porém, ao total referido os números relativos às populações brancas de Malanje, Silva Pôrto e Moçâmedes, respectivamente, de 2.300, 2.000 e 4.800 pessoas, o resultado apresentado ultrapassará a cifra da 74.000, represemtando agora mais de 60% da população branca de Angola. Acrescentando, ainda, população branca a população mestiça das oito cidades referidas, cêrca de 16.000 pessoas, teremos então 90.000 pessoas, entre brancos e mestiços, em contraposição ao total de 230.000 negros delas habitantes.

Apenas 230.000 negros, pois, dentre 4.850.000 existentes em Angola, habitam os centros urbamos mais importantes, ou seja, menos de 5% da popu1.ação nativa local. E baseados na desproporção entre as populações brancas e negras nas cidades angolanas, poderemos afirmar que ali as cidades constituem o mundo branco e o Interior, o mundo do nativo. E' verdade que em todas as principais cidades de Angola a população negra é maior que a população branca. Assim em Luanda existem cêrca de 150.000 negros contra 37.500 brancos, em Nova Lisboa, cêrca de 33.000 negros contra 6.300 brancos, em Benguela,, cêrca de 10.500 negros contra 5.300 brancos, no Lobito, cêrca de 27.000 negros contra 7.000 brancos; apenas em Sá da Bandeira a quantidade de brancos sendo superior a de negros, existindo ali cêrca de 9.000 brancos contra 5.500 negros. Mas percorrendo as ruas de Luanda, Lobito, Benguela e Nova Lisboa, pude verificar a completa distinção existente cmtre
os elementos das duas raças. Os negros são invariàvelmente os ocupantes dos mais insignificantes postos e oficios, e mesmo as suas habitações estão agrupa-las em bairros específicos, situados
na periferia das cidades. Não há negros angolanos ricos nem ocupando posições importantes quer na administração quer no comércio local. Se bem que haja% mestiços, geralmente não originais de Angola, ocupando uma posição bem melhor que a dos negros. Mas é preciso notar que a proporção de mestiços na população de Ango1a é insignificante, representando apenas 6% da população de Luanda e cêrca de 5% do total da população das oito principais cidades da colônia, pràticamente não existindo mestiços no meio rural.

Volto a insistir no fato de ser a civilização urbana em Angola um privilégio dos brancos, representando os negros habitantes das cidades apenas a mão-de-obra necessária para os serviços domésticos das famílias brancas e para as indústrias ali existentes. Dêste modo o próprio crescimento das populações
negras urbanas passa a ser uma simples decorrência do aumento da população branca das mesmas, a criar para si novas e mais variadas necessidades. Mas será preciso fazer notar mais um fato - é de que vindo a popu1ação branca aumentando por uma crescente imigração originária da Metrópole, a situação dos nativos tende a piorar já que não possuem êles capacidade, por falta de preparo técnico
ou profissional, para competir com os brancos recém-chegados que passam a substitui-los nas ocupações disponíveis, deixando-lhes apenas as mais inferiores e lògicamente as menos rendosas.

Tal fato já fora notado por Ilídio do Amaral, em livro publicado em 1962 (2), ao afirmar que os nativos dirigem-se para as cidades pelos mais variados motivos, na maior parte das vêzes na esperança de encontrarem melhores salários, mas acabam por engrossar a massa dos desempregados pondo em risco as certezas de trabalho que poderiam existir para os já fixados nas cidades,. E qumdo afirmara, em trabalho anterior, publicado em 1960 (3), que aapenas uma percentagem mínima da população
rural saída de Portugal para Angola emtra no mesmo meio, nas novas terras; procur,ando antes ficar nas cidades, em especial em Luanda,, competindo com os naturais em profissões que antigamente
lhes pertenciam: criadas de mesa em cafés e restaurantes, vendedores de loterias e jornais, carregadores nos armazens do pôrto, porteiros, criados e lavadeiras, etc,. Pude comprovar tal fato durante a minha visita. Nos hotéis onde estive, o número de empregados brancos é muitaas vêzes
superior ao de empregados negros e no comércio local também os empregados brancos preponderam sôbre os negros na função de simples caixeiros. Nos própirios bairros negros de Luanda, Lobito e Nova Lisboa que percorri, demoradamente, vi casas de pequeno comércio pertencentes, invariàvelmente, a elementos brancos; não havendo emcontrado uma só cujo proprietário
fôsse um negro. Evidentemente os brancos em Angola comandam e os negros obedecem. No pôrto de Lobito, entre dezenas e dezenas de trabalhadores não tive a oportunidade de ver um único branco a
carregar fardos, havendo encontrado porém elementos brancos a trabalharem nos escritórios ou na fiscalização dos trabalhos dos negros sôbre o cais. E em Benguela, ao indagar sôbre a composição
das tripulações dos barcos de pesca, recebi a resposta de que cada tripul.ação se compunha de vinte e quatro negros apara os trabalhos pesados, e quatro brancos.

Não há, pois, como negar-se que o elemento negro em Angola vive terrivelmente inferiorizado em relação ao branco este constitui a classe privilegiada, possui a riqueza e o comando da vida econômica, política e administrativa da colônia. E' terrivelmente chocante, por exemplo, compararmos os bairros residenciais dos brancos com os habitados pelos nativos em qualquer das suas grandes cidades. Habitam os primeiros em majestosas residências, construidas dentro dos mais modermos moldes arquitetônicos, em ruas asfaltadas e amplamente iluminadas. Habitam os negros em miseráveis choupanas de paredes de terra e cobertas de palha, onde não existe luz nem água encanada, em ruas
sem calçamento e sem iluminação. Isto eu vi em Luanda, no Lobito e em Nova Lisboa. E assim pude verificar que o autor português aniteriormente citado não exagerara quando definira os bairros negros como averdadeiras estrumeiras sem esgotos, água ou iluminação e sem ru,as pavimentadas, e as habitações ali existentes, as miseráveis cubatas, desprovidas dos mais pequenos confortos higiênicos. Não poderei esquecer que vi bairros inteiros sendo construidos pelas administrações locais para substituírem tais bairros citados, tanto em Luanda como no Lobito.

O govêrno português faz evidentemente um grande esforço no sentido de solucionar, um tanto tardiamente embora, os problemas gerados pela sua falta de interêsse pela sorte da população nativ.a e pela certeza, já não existente, de que jamais seria por isso responsabilizado.

Na minha opinião, porém, medidas como esta, se darão à população nativa d,as cidades melhores condições de vida, não lhe permitirá a ascensão social e a competição livre com os elementos
brancos. E' que constatei a presença de elementos brancos nos próprios bairros negros, já a construirem ali residências distintas das habitações dos negros. Parece pois que à medida que a
«cidade branca» cresça, a «cidade negra, irá sendo impelida para cada vez mais distante da zona periférica dos centros urbanos.

E diante de tal fato,, difícil será conjecturar sôbre se os bairros populares que agora estão sendo construídos, chegarão a ser realmente utilizados pelos negros angolanos . Nos liceus locais pude perceber não existir qualquer discriminação racial, mas pude verificar também que a proporção de
alunos brancos é bem superior à de alunos negros. E' que os liceus foram construidos visando proporcionar aos filhos dos brancos educação similar ao que teriam na Metrópole. São tais
liceus da melhor qualidade, tanto no que diz respeito à construção como no que se refere à aparelhagem didática. As crianças negras têm acesso aos mesmos mas não foi evidentemente com
os olhos voltados para as necessidades dos nativos que tais liceus foram construídos.

Confesso ter tido dificuldade, em Luanda, de sentir-me em Africa, ao sul do Saara, tal a quantidade de brancos que vi por toda a parte. No Lobito, encontrei a maior parte dos negros a trabalharem nos serviços do pôrto, mas não nas ruas da cidade. Em Benguela, onde o contraste entre as habitações de brancos e de negros é excepcionalmente chocante, foi onde vi maior quantidade de negros circulando nas ruas e praças locais. E ainda no Lobito, visitando as livrarias e tendo a agradável surprêsa de
encontrar grande número de livros brasileiros Li. venda, não tive a oportunidade de ver fregueses negros sendo atendidos. O fato é que apesar de ser a população negra das cidades angolanas
maior do que a população branca os brancos são sempre mais visíveis nas ruas principais das mesmas.
Atentemos agora no fato de ser a população negra de Angola na sua maior parte analfabeta. Examinando os dados estatísticos relativos ao ano de 1950, iremos encontrar entre cêrca de 70.000 brancos com mais de 6 anos de idade, apenas 8.000 analfabetos, o que equivale a cêrca de 90% de alfabetizados nessa população. De relação à população negra, porém, a proporção se inverte e então iremos encontrar uma percentagem superior a 90% de iletrados entre os negros angolanos. Em 1950
existiam em Angola apenas 30.000 negros alfabetizados numa população nativa superior a quatro e meio milhões.

Se a discriminação racial não existe e não pude encontrar dela sinais que a evidenciassem como ostensiva, ela aparece acobertada pelas diferenças sociais e culturais que opõem entre os brancos e negros naquele pais africano.Tentam os portuguêses de Angola «domesticar, é o têrmo, os negros angolanos visando transformá-los em indivíduos convertidos ao pensamento e aos costumes europeus. Deverão êles possuir elementos da cultura branca suficientes para serem disciplinados e dóceis, mas não bastantes para virem a tomar iniciativas e competir com os elementos brancos. Pude notar isto
em duas ocasiões diversas: - a primeira, quando certo funcionário, em Luanda, homem de um espírito excepcional de combate, mostrou-me, exultante de entusiasmo, uma fotografia onde apareciam nativas africanas, vestidas à moda do Minho, com pandeiros nas mãos, em passos de uma dança tipicamente peninsular; e ao tentar-me convencer da grande obra do colonizador português que havia conseguido de ,aquelas pobres moças o abandono dos seus costumes tradicionais em troca dos costumes portugueses. E a outra vez, em Nova Lisboa, quando determinado professor primário, após haver elogiado durante muito tempo os elementos nativos, exaltando-lhes as qualidades, confessou-me
que às vêzes, ao tomar conhecimento do mau procedimento de alguns dos seus ex-alunos nativos, tornados homens feitos, chamava-os ao seu gabinete, aplicava-lhes uma surra e que tal espírito
de justiça possuíam êles que após o castigo não saíam sem lhe agradecer o benefícioo das lições. E não foi poucas vêzes que ouvi em Angola que os brancos não poderiam descer ao nível dos negros, evidenciando tal observação o desprêzo por parte da maioria dos brancos de Angola pelos valores culturais das populações nativas.

Fora das cidades pude notar no Colonato da Cela a presença de elementos brancos. Mas por uma ironia toda singular, o Colonato da Cela é destinado exclusivamente a colonos brancos. Os negros que ali existem são empregados dos brancos, muito embora tal situação seja proibida legalmente. Não sei se mo outro grande colonato de Angola, o de Matala, as cousas se passam da mesma maneira. Mas anotemos alguns fatos para melhor analisar a importância da presença de agricultores brancos em Angola. Nas fazendas de café, principal produto agrícola de Angola, trabalham mais de 30.000 indígenas; na cultura do algodão, cêrca de 60.000, não existindo fora dos colonatos da Cela e de
Matala, senão cêrca de 3.000 agricultores brancos. E' principalmente pois nos trabalhos agrícolas que se encontram ocupados os negros de Angola. Fora das cidades, em condições de vida as mais precárias, é que a maior parte dêles existe. Mas quando se pensou em modernizar .a agricultura local, em têrmos de assistência técnica aos agricultores, através da instituição dos colonatos, foi com o pensamento nos elementos brancos que foram êles construidos. Os negros que continuassem a trabalhar para os brancos nos algodoais e nos cafèzais dos brancos. E' difícil, pois, prever-se o futuro de Angola. Não conseguiram os portuguêses ali realizar, ou não o desejaram, a grandiosa obra de colonização que realizaram no Brasil. O primeiro fato que mos denuncia tal cousa é a ausência da miscigenação racial. Em proporção cada vez menor verifica-se o cruzamento entre brancos e negros, e um dos administradores da Companhia de Diamantes de Angola, o Comte. Ernesto de Vilhena, chega mesmo a colocar-se frontalmente contra a necessidade de tal miscigenação, considerando-a nociva, ao responder às críticas feitas à Companhia que dirige, por Gilberto Freyre, no seu Avem
e Rotina (4). E em segundo lugar. pela dificuldade que tiveram os negros de Angola, até o momento atual, de ascender na escala social, de modo a virem ocupar postos importantes na
vida do país.

A impressão que me deixou Angola, pois, é a de um imenso território em reserva para os excedentes da população metropolitana e de sustentáculo, através dos seus produtos de exportação, da economia portuguêsa. Incapaz de sustentar todos os seus filhos sobre o seu território, nação subdesenvolvida e falta de recursos que é, Portugal prende-se a Angola, como a Moçambique ou a Guiné, por uma razão de sobrevivência. Cheguei a ouvir opiniões em Angola de que a sede do Govêrno português deveria para ali ser transferida. A terra é rica e vasta, a mãode- obra numerosa e barata, os brancos ocupam os postos de mando - Angola representa pois a salvação de Portugal. Não pensam, porém, do mesmo modo os nativos que conseguiram escapar ao cêrco cultural que lhes foi impôsto pelo colonizador.
Desejam êles uma Angola onde negros e brancos possam juntos gozar das vantagens hoje apenas reservadas aos brancos. Querem justiça e reivindicam a posse da terra tomada aos seus antepassados. O choque, ao meu ver, será bem difícil de evitar. E a desproporção entre as forças em luta prenuncia, sem dúvida a vitória dos negros uma vez revoltados.

A análise sumária que fizemos das populações urbanas de Angola bem demonstra que mão conseguiu Portugal ali realizar uma obra estável. Vivem as cidades de Angola dissociadas do resto do território, existindo entre o mundo rural e o mundo urbano um abismo profundo, a separar o branco colonizador do negro coloniizado . Nenhuma má vontade possuo para com o povo português, ao qual me acho fortemente ligado. Lamento, porém, que em Angola tenha o colonizador português fracassado; por não haver conseguido construir a sociedade multi-racial existente hoje no Brasil.

Preocupa-me, porém, o futuro de Portugal em Africa. Creio ainda na possibilidade de vir a ser evitado o choque racial que se evidenciou possível desde a eclosão dos movimentos armados e que se prenuncia capaz de.um ressurgimento pelo apoio franco dos novos países independentes da África às facções revoltadas. Brancos e negros têm, na minha opinião, igual direito ao pais, uma vez que aos dois grupos sejam concedidos direitos e oportunidades iguais. Não sei se Portugal realmente deseja favorecer a ascensão das populações nativas de Angola ao nível social dos brancos. A orientação que vem dando o govêrno português ao problema não me permite acreditar neste propósito. Mas se o deseja não sei se conseguirá realizar num prazo que dia a dia se tornará mais curto, o que não soube ou não quis realizar, por mais de quatro séculos de presença sobre as terras da Africa.

NOTAS
(1) - Não foram incluidos no total da população branca de Angola,
os números relativos Irs tropas enviadas pela Metrópole para o
combate aos terroristas do Norte, em vista do carhter transitório
da sua presença na colbnia.
(2) - Ensaio de um estudo .geográfico da &de urbana de Angola -
Junta de Investigação do Ultramar - Lisboa - 1962.
(3) - Aspectos do povoamento branco de Angola - Junta de Investigação
do Ultramar - Lisboa - 1960.
(4) - Aventura e Rotina - Crítica de uma crítica - Luanda - 1954.

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