Capa de António Lino (1914-1996).
Reis Ventura (1910-1988), Engrenagens Malditas (1964; o cólofon indica que acabou de se imprimir em Fevereiro de 1965).
Com este romance, Reis Ventura inicia um percurso que se afasta da literatura com espaços narrativos exclusivamente centrados em África e em Angola, característica da sua produção do final da década anterior e do início da década de 1960.
Primeira obra ficcional do autor publicada depois do início da guerra colonial, procura traduzir uma reflexão sobre as engrenagens que levaram ao estabelecimento de uma nova ordem mundial, e a um reequilíbrio de poderes, após a II Guerra Mundial.
O próprio texto introdutório da obra reconhece ser esta uma obra de viragem no percurso do autor, ao afirmar – "Reis Ventura inicia, com este romance, uma nova incidência da sua actividade literária."
É de facto uma nova incidência, que marca uma ruptura com a anterior homogeneidade e qualidade literária da sua obra.
Ao lançar como protagonista do romance um jornalista angolano que relata as suas deslocações pelo mundo e regista as suas reflexões sobre as engrenagens malditas da política e da sociedade, que poderão estar na origem das sublevações em Angola, e no mundo, Reis Ventura perde-se num romance que aspira colocar demasiadas questões.
Do mesmo modo perde também a espontaneidade e harmonia de outras obras anteriores, prefigurando o exemplo do romance de antecipação Um Homem de Outro Mundo, também ele um livro onde o talento anteriormente demonstrado pelo autor se dispersa e perde.
Transcreve-se de seguida um pequeno excerto do romance:
"Nos escritórios da grande cadeia de jornais, instalados num décimo-quinto andar, não muito longe do Palácio de Vidro, o "ovo cósmico", como todos chamávamos ao nosso espertíssimo e calvíssimo administrador-delegado, desceu os pés da borda da secretária, estendeu-me apressadamente a mão bem tratada e convidou-me a entrar para o compartimento imediato, que era a sala das sessões. Na sala das sessões estavam todos os restantes membros do conselho de administração, menos o Presidente, que andava de visita à Alemanha Ocidental.
Era um grupo notável. Incluía o gordo Stevens, que tinha poços de petróleo no Texas, o magríssimo Harold, considerado o melhor causídico de Nova Iorque, o melífluo Vaganou, de origem francesa, e o tonitroante Vaterplatz, nascido de emigrantes prussianos e agora dono da mais moderna aciaria do Ohio.
– Então a coisa começou em Angola? – disparou Stevens sem mais preâmbulos. – Conte-nos os factos.
– Há pouco para contar – respondi, surpreendido com a seriedade daquela conferência. E em meia dúzia de palavras, relatei-lhes o assalto de 4 de Fevereiro e o motim do Cemitério Novo.
– Muita tropa, em Luanda? – fez Vaganou displicentemente, enquanto acendia um dos seus caros charutos.
– Quase nenhuma. E a pequena guarnição de Luanda é constituída quase só por nativos.
– Hé! hé! hé!... – gargalhou ruidosamente Vaterplatz. – Os seus compatriotas são um pouco inconscientes, não são?...
– Os portugueses não se assustam com pouco – retorquiu [sic] serenamente. – Estão em África há vários séculos...
– Respeito o seu brio nacional – sussurrou Harold, com aquele ar tímido com que gostava de iniciar as suas grandes tiradas forenses. – Mas receio que os portugueses não estejam por muito mais tempo em Angola... Julgo até que muitos deles já o compreenderam. Parece que há pânico em Luanda...
– Não há pânico em Luanda e ninguém pensa em abandonar Angola! – afirmei, vincando bem as palavras. – Os últimos acontecimentos são destituídos de qualquer importância e não afectaram o moral das populações."
In
© Blog da Rua Nove
Sem comentários:
Enviar um comentário