domingo, 29 de janeiro de 2012

A especificidade da colonização portuguesa

“Não deixeis que ninguém toque no território nacional – conservar intactos na posse da nação os territórios de além-mar é o vosso principal dever. Não ceder, vender ou trocar ou por qualquer forma alienar a menor parcela de terri­tório, tem de ser sempre o vosso man­damento fundamental.
Se alguém passar ao vosso lado e vos segredar palavras de desânimo, procurando convencer-nos de que não podemos manter tão grande império, expulsai-o do convívio da Nação”
(nota final)
Norton de Matos
Recaem sobre dois aspectos: a terminologia empregue para designar os territórios da expansão; e a especificidade da colonização portuguesa.
Vejamos o primeiro. Uma reflexão sobre a semântica, impõe-se por causa das conotações políticas que os termos “colónias vs províncias” passaram a ter entre nós após o 25 de Abril de 1974.
De facto, do anterior, sempre se encararam naturalmente os termos que foram utilizados ao longo dos séculos para designar os territórios que foram sendo agregados à comunidade nacional, sem embargo de alguma adequação a modismos políticos de determinadas épocas. Os reis de Portugal acrescentavam os seus títulos em função do que a coroa portuguesa tomava posse;
Todas as Constituições portuguesas desde 1822, discriminavam a totali­dade dos territórios como fazendo parte do todo nacional atribuindo-lhes diferentes dignidades e regulamentavam o estatuto social da respectiva população e sua representatividade, face ao grau civilizacional em que se encontravam.
Nos documentos oficiais, na fala do dia a dia, vários foram os termos usados consoante as épocas.
Assim apareceram os termos “praças”, “feitorias” e fortalezas”. De um modo geral os documentos anteriores ao século XIX, referiam-se aos territórios, como “domínios ultramarinos”, ou “conquistas”.
A Índia e, mais tarde, o Brasil e Maranhão, constituíram-se em “Estados”. E o Brasil, em 1815, foi elevado à categoria de “reino”, como era o Algarve desde a sua incorporação em Portugal ao tempo do senhor rei D. Afonso III.
Às grandes circunscrições administrativas chamavam-se “Capitanias Gerais” e atribuía-se amiúde, às feitorias e bases navais o nome de “estabelecimentos”.
A designação de “colónia” encontra-se já no século XVII e XVIII e o termo “província” entrou na linguagem do século XIX por via legislativa. A Constituição de 1822 já fala em “Ultramar” e “Províncias Ultramarinas”.
Não havendo representação ultramarina nas Cortes (antes da 1ª Consti­tuição, nem uma formulação, digamos, jurídica do território), cedo houve preocupação em se estabelecer um órgão estatal para tratar especificamente dos territórios de além-mar. Foi assim que surgiu o Conselho Ultramarino, criado por D. João IV, em 1643, e que se manteve até ao fim do Estado Novo.
Em termos constitucionais a designação “províncias”, perdurou de 1822 a 1911, durante a Monarquia e de 1911 a 1920, na I República e de 1951 a 1974, na II República, num total de 121 anos; enquanto que o termo “colónia” foi empregue durante 6 anos na I República, de 1920 a 1926, e 21 anos no Estado Novo, de 1933 a 1951, num total de 24 anos.
Pode-se pois, concluir que todas estas designações nunca tiveram a ver com regimes ou formas de governo, mas apenas com o interesse nacional. O termo “província” foi usado também por vários autores desde o século XVI. E fosse quais fossem os termos usados, nunca ninguém os entendeu pejorativamente, mas antes tendo em mente o que seria melhor para o desenvolvimento harmonioso das diferentes parcelas de Portugal. De facto, as palavras têm a sua época. Província, tinha a ver com a tradicional tendência da diáspora portuguesa em se manter ligada à mãe Pátria e em considerar a Nação portuguesa como um todo; “colónia” foi a expressão da política autonomista que o regime republicano trouxe no seu programa; com o golpe de estado de 28 de Maio de 1926, deu-se início a um movimento de cariz nacionalista e o termo colónia é ultrapassado, ou englobado no termo “Império”. Após a II Guerra Mundial, deu-se início a uma fortíssima campanha anti‑colonialista, onde os termos “colónia” e “colonialismo” foram diabolizados, tornando-se conveniente abandonar uma terminologia que se prestava a equívocos. E foi essa a razão fundamental para que os termos fossem abandonados na revisão constitucional de 1951, retomando-se os tradicionais “ultramar” e “províncias ultramarinas”.
Afigura-se assim, já ser tempo de se olhar para estes aspectos, através de uma correcta apreciação histórica, desapaixonada e sem intenções malévolas de oportunismo politico-partidário; de ataque à memória de antago­nismos políticos e de personalidades que lhe foram suporte; ou da denegrição abusiva da memória colectiva, antipatriótica e lesiva do interesse nacional.
Esta, a segunda reflexão que vos deixo.
“A acção colonizadora tem um duplo fim, o qual deveria ser exercido no interesse dos povos colonizados e ao mesmo tempo no interesse da comunidade internacional e do seu progresso”
Lord Lugard
Militar e alto funcionário colonial inglês do inicio do século XX, na sua obra “Dual Mandate”.
Considerava a colonização portuguesa “Avant la lettre” e que pendia mais para a segurança político-militar da cristandade e do seu alargamento geográfico.
Para se entender melhor o que se vai dizer a seguir convém-nos tecer algumas considerações sobre as características da colonização portuguesa, que a individualizam muito positivamente no concerto das nações.
Adiantemos, para melhor nos situarmos, uma definição de colonização: “o conjunto de relações entre dois povos, um mais desenvolvido que o outro”. No seu sentido etimológico, “colonizar” vem do latim e significa cultivar, valorizar, fazer render, tornar melhor...
Podemos distinguir três tipos de colonização: na primeira, um grupo de colonizadores chega a um território escassamente povoado cujos indígenas se encontram num estádio de desenvolvimento muito atrasado. Os novos senhores apoderam-se da terra e consideram-na como sua. Os autóctones refugiam-se em locais de difícil acesso tentando a sobrevivência. Mas vão morrendo e desaparecendo aos poucos. Os sobreviventes são agrupados em reservas, chegando os seus descendentes, nos dias de hoje, a serem objecto de curiosidade turística. Durante algum tempo estes novos territórios dependem e estão ligados à mãe pátria. Mas a pouco e pouco, por métodos pacíficos ou pela via revolucionária, ganham a independência. Foi o caso, entre outros, dos EUA, da Austrália e da Nova Zelândia.
No segundo tipo de colonização, um determinado país, através da guerra, de negociações ou de acordos internacionais, consegue introduzir-se e dominar um outro país, cujos habitantes são já numerosos e detêm um grau civilizacional elevado, mas cuja sociedade contém numerosas assimetrias de vária índole. O povo colonizador instala-se, explora a terra e suas riquezas; constitui-se em comunidade à parte, cultivando o seu modo de vida, estendendo-o apenas a pequenas elites autóctones. A sua presença é fundamentalmente económica, visando também objectivos político-estratégicos. À medida que estas elites, na maioria formadas fora da sua terra, começam a ter consciência dos seus conhecimentos e a ter ambições de mando, tentam a autodeterminação, com a expulsão, em maior ou menor escala, do colonizador.
Nos dois casos citados a divisão política e social entre os povos coloni­zados e colonizadores é total, sendo assumida com maior ou menor clareza. De um modo geral, o povo colonizador vê-se como “superior” ao colonizado, não se mistura, nem está muito interessado em qualquer nivelamento, ou em puxar os mais atrasados para um estádio superior. Estas são causas remotas do racismo, cujos contornos se foram desenvolvendo até aos nossos dias. Os povos colonizadores que assim procederam, na sua maioria cristãos, esqueceram os princípios do cristianismo no que concerne ao mandamento de amor pregado por Jesus Cristo.
Ao nível religioso, estes povos “colonizadores”, ofereciam a sua religião, mas fazendo a sua evangelização algo moldada aos evangelizados. A religião assim entendida, assemelhava, mas não igualava; é como que um cristianismo de segunda. O factor nascimento estava sempre presente, a fim de evitar veleidades igualitárias. Ao nível do desenvolvimento, o povo colonizador não nega a sua necessidade aos colonizados e até o fomenta, mas fixa-lhe fronteiras próprias e específicas. É a teoria do desenvolvimento separado e como este se pretendia em paz, inventou-se a coexistência pacífica. Vejamos as exigências sociológicas. Aos povos mais atrasados bastava-lhes a família, evoluindo a seguir para o clã e a tribo dentro duma determinada etnia. Quando se ganha maturidade e organização social e política suficiente, chega-se ao Estado e, mais tarde, à Nação, constituindo uma Pátria. Toda esta evolução carece de acompanhamento e de dádiva.
Nos dois exemplos de colonização apontados, os países que os desenvolveram poderiam respeitar as famílias, os clãs, as tribos e até o estado, mas não iam além disso. Não se davam, não ofereciam, não integravam. Recusavam ou resistiam o mais possível a outorgar o seu estatuto de nacionalidade aos colonizados. Ora, a existência de nações é um desejo natural dos povos. E se o povo colonizador não lhe dá uma nação, serão as populações colonizadas a procurar uma, surgindo desse modo o nacionalismo. Tudo o que se passou no subcontinente indiano, à excepção do Estado Português da Índia, é disto um bom exemplo.
É sabido que não foram estes os caminhos seguidos por Portugal e pelos portugueses. A “maneira portuguesa de estar no mundo” constitui o terceiro exemplo considerado e pode ser descrito em poucas palavras.
Os portugueses tinham um modelo político e estratégico baseado em três pilares: o religioso, o comercial e o militar. O terceiro era suporte imprescindível dos outros dois, mas apenas se aplicava em autodefesa, salvo em relação ao Islão, por este se encontrar em guerra com a cristandade. Este modelo serviu, devidamente adaptado, a todos os povos com os quais os portugueses contactaram: selvagens, semicivilizados e civilizados. E tão diferentes como as quatro partes do mundo onde chegaram. A capacidade de adaptação dos portugueses a todas as situações é, pois, uma constante. Feitos os primeiros contactos, logo começava de imediato a acção evangelizadora. Os portu­gueses não usavam tanto o método das conversões em massa ou à força, mas mais o dom da palavra e a persuasão. Na maioria dos casos, os membros do clero e das ordens religiosas integravam-se nas diferentes comunidades indígenas, estudavam a sua língua, os usos e costumes e, a pouco e pouco, iam passando a doutrina cristã. Não há memória de portugueses entretidos a destruírem povos ou culturas. E nem no auge da Inquisição a acção do Santo Ofício se fez sentir muito fora da parte europeia de Portugal (com alguma excepção para a Inquisição de Goa), dado que se dirigia primeiramente contra o judaísmo. A conversão do rei do Congo, logo a seguir à chegada de Diogo Cão, pode ser considerada paradigma da nossa acção.
O cristianismo que levámos estava, por outro lado, eivado de lusitanidade e oferecia a salvação de todas as pessoas, sem distinção de cor, raça ou nascimento. Todos eram chamados a ser filhos de Deus, desde que fosse esse o seu desejo de ascensão e de resgate. O facto de os portugueses (ao contrário de todos os outros povos europeus, que por razões de segurança não o faziam) terem instalado desde muito cedo arsenais, fundições e estaleiros em pontos avançados nos seus domínios é prova da confiança que tinham nas populações dos locais onde se radicavam, da visão superior em termos estratégicos de que dispunham, da sua autoconfiança e motivação e, ainda, da sua vontade de ficar.
Os portugueses deram-se e misturaram o seu sangue com todas as gentes que contactaram. Se é certo que em muitos casos essas ligações tiveram causa natural ou de volúpia, também é certo que não eram, de um modo geral, renegadas pelos próprios nem o Estado as condenava ou a Igreja as verberava, tentando, outrossim, enquadrá-las no sacramento do casamento. E foi Afonso de Albuquerque, que se saiba, a incentivar os casamentos mistos, já lá vão quinhentos anos. Não se pode dizer que os portugueses tenham acordado para esta realidade tardiamente ou copiado modelos alheios...
Os portugueses não se limitaram, portanto, a “coexistir”. Conviveram, e essa é uma maneira superior de entender as relações entre os povos. O corolário lógico de tudo isto é a oferta e a assimilação da própria orgânica nacional. Ou seja, Portugal ofereceu-se a si próprio a todos os povos com quem contactou, dando-lhes os seus elementos constitutivos mais vitais: sangue, família, sociedade, nação. É este o “segredo” da acção portuguesa no mundo, que muitos teimam em não entender, e do qual os próprios portugueses se deixaram afastar.
Ficamos assim, perante duas correntes definidoras de “colonização”. Para o caso português, “colonização é o conjunto de relações entre dois povos de desigual cultura em que um vai à procura do outro a fim de lhe oferecer tudo quanto tem, integrando desse modo a sua vida familiar, social, económica, política e nacional”.
Para a corrente oposta, colonização “é o conjunto de relações entre dois povos de desigual cultura, baseado no interesse comum das duas comuni­dades, principalmente daquela que foi procurar a outra”.
Os princípios enformadores que os portugueses usaram podem resumir‑se no seguinte:
– Unidade política do todo nacional;
– Adopção do cristianismo templário, até D. João III, e do catolicismo após essa época, como orientadores das relações entre os povos e cimento dessa relação;
– Uso da língua portuguesa como factor unificador e cultural;
– Implementação de modelos de administração pública e judicial decal­cados dos da metrópole;
– Acção baseada no humanismo e universalismo que terão a génese na cultura greco-romana e que aparecem tão bem retratados n’Os Lusíadas de Luís de Camões;
– Por fim, uma mística, uma fé, um espírito de missão, que tantas vezes fez os portugueses ultrapassarem-se a si próprios e que possivelmente levou Zurara a referir a “inclinação das rodas celestes”, como uma das razões que levaram o Infante D. Henrique à empresa dos Descobri­mentos.
Todos estes princípios tiveram uma génese genuinamente portuguesa e começaram a ser aplicados e experimentados na colonização dos arquipé­lagos atlânticos, todos eles encontrados desabitados. Desde o início, moldou‑se um espaço que se pretendia uno e que explica que após o 1º de Dezembro de 1640, todas as praças portuguesas espalhadas pelo mundo aclamassem, de imediato, o rei D. João IV, com excepção de Ceuta, cujo governador era castelhano. Percebe-se a ajuda mútua que os portugueses de todas as latitudes se dispensavam entre si; foi do Brasil que partiu a reconquista da costa ocidental de África tomada pelos holandeses, de Goa partiu auxílio para todo o Oriente e até para a costa africana do Índico; em Moçambique preparou‑se a expedição para libertar Timor no fim da II Guerra Mundial; da metrópole sempre saiu auxílio em maior ou menor escala para todo o lado. É por isso que ainda hoje a vida nos antigos territórios quase pára quando jogam o Benfica ou o Sporting.
Mas teriam os portugueses estado isentos de erros ou pecados durante todos estes séculos? Efectivamente, não estiveram. Mas nunca o pecado perdeu o seu nome para assumir outro qualquer. E as consciências, por vezes obnubiladas, nunca o esqueceram. O mal nunca se arvorou em bem; o pecado nunca teve coragem para se transformar em sistema; a injustiça nunca se confundiu com a equidade e houve sempre quem tivesse coragem nas atitudes e chamasse nomes às coisas e hipocrisia à hipocrisia. E se alguns, no campo individual, assassinaram, maltrataram e roubaram outros seres humanos, nunca a pesada mão da justiça os deixou de perseguir, nem o Estado decretou leis iníquas ou princípios imorais. Há muita documentação escrita, de D. Manuel I ao Marquês de Pombal, do Infante D. Henrique a D. Sebastião, de D. João II ao Marquês de Sá da Bandeira, que prova isso mesmo. Até as presas tomadas aos “infiéis” obedeciam ao especificado nas bulas pontifícias e eram feitas em boa guerra como ensinavam as leis da cavalaria.
Por tudo o que foi dito podemos e devemos considerar que a colonização portuguesa foi inspirada muito mais por factores de ordem espiritual e humanista do que materialista. E sabe-se como os ganhos comerciais e a arquitectura económica e financeira deixaram sempre muito a desejar e ficaram muito aquém das necessidades. Mas, sendo espiritual, não deixava de estar subjacente a uma ideia política. O todo nacional entretanto constituído gerou, porém, um considerável potencial geoestratégico, essencial à sobrevivência política do estado e da nação portuguesa. Este potencial foi sendo, ao longo dos tempos, alvo de ataques continuados de potências poderosas e de organizações diversas que foram desgastando, pilhando e conquistando sucessivas parcelas de territórios pertença de Portugal. Os portugueses sempre resistiram, melhor ou pior, conforme a visão e determinação dos seus governantes e dos meios disponíveis, mas acabaram por soçobrar nos anos setenta deste século, ficando o país praticamente confinado ao que era antes da arrancada para Ceuta. Aquelas terras que eram, simplesmente, Portugal mais longe. E aqui fica a terceira reflexão.


In "A Colonização Portuguesa no Século XIX à Luz da Estratégia", pelo Tenente‑Coronel PilAv João José Brandão Ferreira.  Revista Militar.
Parte de um texto retirado da net que pode ser lido na íntegra, clicando aqui:

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