segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Alcora: O acordo secreto do colonialismo português com o apartheid

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A aliança de Marcelo Caetano com os racistas sul-africanos e rodesianos para impedir as independências de Angola e Moçambique.
Nicole Guardiola, revista África 21



No inicio de 1974, Portugal estava à beira de perder o controlo da guerra em Angola e Moçambique e preparava-se para transferir para a África do Sul a capacidade de dirigir e orientar o uso das forças militares para «erradicar o terrorismo da África Austral».
É o que se depreende da análise dos documentos oficiais recentemente descobertos e relativos a uma aliança secreta estabelecida em 1970 entre os Governos de Portugal, África do Sul e Rodésia. Aliança que ficou escondida de todos ou quase todos os que participaram na guerra, mas que projecta uma luz diferente – e assustadora – sobre os acontecimentos que antecederam a Revolução portuguesa de Abril de 1974, as independências de Moçambique e Angola, e sobre os conflitos que dilaceraram estes dois países até à queda do regime racista sul-africano.
Trinta e cinco anos depois do fim da guerra colonial e quando se julgava que tudo tinha sido dito sobre um conflito que marcou as memórias de toda uma geração, e dos filhos e netos dos que nele participaram, eis que a abertura dos arquivos veio revelar dados substanciais e totalmente desconhecidos que vêm iluminar os factos que todos conheciam.
Dois investigadores portugueses, os coronéis Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, já autores de uma história da guerra colonial, publicada há 12 anos, tiveram esta «surpresa» ao meter ombro à tarefa de rever os acontecimentos à luz dos arquivos entretanto abertos (Arquivos Histórico Militar e do Secretariado-Geral da Defesa Nacional).
As opções político-militares da ditadura portuguesa face ao eclodir da luta armada nas suas colónias africanas e as alianças estratégicas estabelecidas por Salazar e Marcelo Caetano foram e estão ainda embrulhadas em tamanho mistério, que têm dado azo às interpretações mais fantasiosas acerca da situação militar em Angola, Guiné e Moçambique em vésperas do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, e a violentos ataques contra os «militares de Abril», acusados de terem entregue Angola e Moçambique aos «comunistas» quando a guerra estava «praticamente ganha».

Artigo publicado na edição de junho da revista África 21
É esta visão heróica do pequeno e pobre Portugal, «orgulhosamente só», que teria mudado a história de África e dos seus povos se não tivesse sido abandonado pelas grandes potências, que cobiçavam as riquezas do continente, e traído por um punhado de jovens oficiais cansados e manipulados, que os documentos agora tornados públicos e aos quais África 21 teve acesso, destrói irremediavelmente.
A realidade, ignorada então e ainda agora pela maioria dos portugueses, é bem diferente. Quando Marcelo Caetano sucede a Oliveira Salazar na chefia do Governo, em 1968, o esforço realizado desde 1961 para mobilizar e enviar para África dezenas de milhares de soldados está a tornar-se demasiado pesado, e os sectores mais lúcidos do regime já tinham compreendido que se não se acabava rapidamente com a guerra, seria o seu fim, e foi esta preocupação que norteou acção do Governo de Lisboa, sob a batuta de Andrade e Silva, ministro do Ultramar, e de Sá Viana Rebelo, ministro da Defesa, de 1968 a
1973.
Segundo Aniceto Afonso, a alegada indecisão de Marcelo Caetano em relação à questão colonial nunca existiu. A opção escolhida foi a militar.
Foi esta procura da vitória «a todo o custo» que levou Portugal a aceitar uma aliança com a África do Sul, única potência capaz de fornecer o apoio suficiente para inclinar a balança das armas a seu favor, e que oferecia ao mesmo tempo um «modelo» de saída política susceptível de conquistar apoios no chamado «mundo livre»: a necessidade de construir um bastião branco na África Austral para impedir o continente de cair na órbita do poder soviético, em plena fase de expansão.
Uma aliança secreta
A aproximação entre Lisboa e Pretória tinha começado antes, com o apoio de Salazar à independência auto-proclamada da Rodésia. Ian Smith, eleito primeiro-ministro em 1964, tinha-se reunido com Salazar em Lisboa antes de tomar a decisão de romper com o Reino Unido, e Portugal e a África do Sul, sem se atreverem a desafiar frontalmente a condenação e o embargo decretado pela ONU, actuaram concertadamente para impedir a asfixia económica do «Estado pária».
A partir de 1968, a
força aérea sul-africana prestava apoio logístico e de transporte às tropas portuguesas em Angola (operação Bombaim) e participou em acções de combate no Leste: as operações Luambi e Nova Fase realizadas a partir do Cuito Canavale por comandos portugueses transportados e apoiados por helicópteros sul-africanos.
A transformação deste apoio táctico numa aliança formal começou a ser esboçada a 4 de Março de 1970, quando delegações militares portuguesas e sul-africanas de alto nível se reuniram em Pretória para analisar a situação em Angola e Moçambique.
O tenente-general C. A. Frazier, que chefiava a delegação sul-africana, fez um balanço pormenorizado das operações realizadas pela SAAF (Força Aérea Sul-africana) desde Junho de 1968 e do seu custo. A conclusão era que os escassos resultados de tamanho investimento impunham uma revisão geral das condições de cooperação, e Frazier propôs submeter aos respectivos Governos «um plano de defesa para a África Austral que estabeleça as normas de utilização das tropas disponíveis de forma coordenada e planeada, para fazer face a um inimigo comum». Foi dado a este plano o nome de código de «Exercício Alcora».
Marcelo Caetano e Balthazar Vorster tiveram a oportunidade de conversar sobre o assunto a 5 de Junho, durante a visita a Lisboa do primeiro-ministro sul-africano (em que se tratou também da construção da barragem de Cahora Bassa, adjudicada meses antes ao consórcio Zamco).
Os territórios do Alcora
O acordo de base do Exercício Alcora foi assinado a 14 de Outubro de 1970, pelo coronel Rocha Simões, director da Quinta Divisão da Secretaria Geral da Defesa Nacional de Portugal, e pelo brigadeiro Greyvenstein, chefe do Planeamento Estratégico do Ministério da Defesa da África do Sul. A Rodésia juntar-se-ia formalmente à Aliança na reunião seguinte de alto nível, a 30 de Março de 1971, em que se aprova o esboço do projecto estratégico de defesa militar dos «territórios Alcora», actualmente repartidos entre cinco estados: África do Sul, Angola, Moçambique, Namíbia e Zimbabwe.
As actas das reuniões «reencontradas» pelos investigadores portugueses (sete no total, à razão de duas por ano, alternadamente em Lisboa e Pretoria) dão conta da progressiva intensificação da cooperação entre os três regimes, que ultrapassa, claramente, o âmbito estritamente militar, e do cuidado de Lisboa em manter secreta esta aliança, de forma a preservar a sua «liberdade de acção política» em relação a Pretória e Salisbúria.
As razões desta «prudência» portuguesa são múltiplas. No plano internacional, Portugal não quer indispor a NATO (de que é membro fundador) aliando-se abertamente com dois regimes que os outros membros da Aliança Atlântica votaram ao ostracismo. Internamente, este repentino alinhamento com os regimes racistas de Pretória e Salisbúria poderia suscitar reacções hostis nos meios mais conservadores do regime, ao entrar em contradição flagrante com a doutrina do Estado Novo, de um Portugal uno, do Minho a Timor, pluricontinental e multirracial.
Dezenas de milhares de portugueses que tinham sido enviados para a guerra, para defender este Império universalista, e não racista, não iriam sentir-se ludibriados, reforçando as dúvidas que muitos jovens oficiais começavam a sentir acerca da justeza da causa que defendiam?
A necessidade de não desperdiçar o único auxílio susceptível de lhe garantir a vitória militar falou mais alto e, passo a passo, Portugal foi cedendo às pressões cada vez mais insistentes dos seus «parceiros» da África Austral, preocupados com a deterioração da situação militar, sobretudo em Moçambique, que atribuíam à fraca motivação das tropas «metropolitanas» portuguesas e à incompetência dos seus chefes.
Em Novembro de 1972, em Lisboa, é finalmente definido o conceito estratégico da aliança tripartida, que aponta como ameaças comuns «o comunismo e o nacionalismo africano, em que o segundo é o instrumento escolhido pelo primeiro para alcançar os seus objectivos mais profundos», e como meta «assegurar a inviolabilidade individual dos territórios Alcora pela eliminação da subversão».
Para o efeito deverão «organizar uma força estratégica constituída por meios aéreos de ataque e forças terrestres altamente móveis (...) que sirvam de dissuasor contra todo o ataque externo e que assegure uma intervenção oportuna e eficiente», e levar a cabo uma intensa campanha para «convencer as nações africanas e o mundo livre de que a sua própria sobrevivência está sendo ameaçada na África Austral».
África do Sul toma a liderança
Apesar da insistência de Pretória que vê «os governos africanos superar os seus diferendos e progredir nos seus esforços contra nós», o que faz prever um aumento dos apoios às «organizações terroristas», o acordo entre os ministros da Defesa de Portugal e da África do Sul para a criação de uma «Organização Permanente de Planeamento Alcora» (PAPO em inglês) só será assinado em Outubro de 1973, ainda a tempo de permitir que na sexta reunião de alto nível do Alcora que teve lugar em Salisbúria em Novembro se avançasse no sentido de um Exército comum, com a criação de um Quartel-General, sedeado em Pretória, em instalações próprias, sob o comando do major-general sul-africano Clifton, primeiro director-geral da PAPO.
Este QG devia entrar em funções em Janeiro de 1974, mas a Rodésia e sobretudo Portugal não procederam atempadamente à nomeação dos seus representantes para todos os cargos que lhes eram destinados, o que provocou um ligeiro atraso.
A África do Sul assume claramente a iniciativa e a maior parte dos encargos com a aliança. Prontifica-se para mobilizar «até cem mil homens, brancos» para a constituição de brigadas mistas, altamente móveis, prontas para intervir em qualquer ponto de Angola e Moçambique, não requerendo de Portugal mais do que um contributo diminuto, e o empenho de algumas companhias de comandos e pára-quedistas.
A 8 de Março de 1974, o Ministério português das Finanças assina com a South África Reserve Bank um acordo que outorga a Portugal um empréstimo de 150 milhões de rands (seis milhões de contos portugueses segundo o câmbio da época) para a compra de material de guerra, em prestações mensais de cinco milhões de rands. A primeira fatia foi imediatamente disponibilizada.
A última reunião
A máquina estava lançada e parecia imparável, pelo que já não seria necessário (nem possível) mantê-la oculta. A decisão de a tornar pública chegou a ser agendada para a sétima reunião Alcora, marcada para 24 de Junho de 1974, em Lisboa.
Nunca
se saberá qual teria sido a reacção da comunidade internacional, e dos militares portugueses, ao serem colocados perante o facto consumado, porque a 25 de Abril, um punhado de jovens capitães resolveu derrubar a mais velha ditadura da Europa e mudar radicalmente o rumo da história de Portugal e da África Austral.
Alcora, porém, não acabou neste dia e a sétima reunião ainda se realizou, à data prevista, não em Lisboa, mas em Pretória. O
general Armstrong, chefe do Estado-Maior da Defesa da RAS chegou mesmo a afirmar que o encontro era «crucial quanto à principal tarefa para Alcora, que consiste na eliminação do terrorismo na África Austral».
A delegação portuguesa, chefiada pelo general Basto Machado, ex-comandante em chefe em Moçambique, respondeu como pôde às perguntas dos parceiros que queriam saber o que iria acontecer em Angola e Moçambique, e se «havia vantagem na continuação de Alcora na sua forma actual».
Disse que o novo Governo de Lisboa não estava de acordo com «alguns partidos» que, em Portugal, estavam a favor da independência imediata das províncias ultramarinas e que o seu «primeiro objectivo era obter um cessar-fogo como pré-requisito para a abertura de negociações» com os movimentos nacionalistas. Contudo, nas actuais circunstâncias considerava conveniente manter o segredo e suspender «quaisquer acções conjuntas», nomeadamente em Moçambique.
Haveria
ainda, em Maio de 1975, uma reunião em Lisboa entre representantes militares sul-africanos com o Estado-Maior português, para resolver definitivamente a questão da devolução de grandes quantidades de materiais e equipamentos que tinham sido «emprestados» a Portugal no âmbito do extinto «Exercício Alcora», processo que só ficaria concluído em 1976.
Já sabemos o que aconteceu depois. Obrigado a reconhecer o direito à autodeterminação das colónias portuguesas, Spínola seria pouco depois substituído por Costa Gomes na Presidência de Portugal e iniciou-se o processo negocial que levaria a Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Angola à independência. Alcora foi atirado para as gavetas da História, onde permaneceu até ao presente, sem que nenhum dos seus arquitectos tivesse quebrado o pacto de silêncio, o que não deixa de ser um caso singular, dado o elevado número de pessoas que estiveram envolvidas num processo que durou meia dúzia de anos.
Ainda há muito para investigar sobre os contornos desta aliança, os seus actores e cúmplices, e as suas sequelas. Mas uma coisa é certa: os dados coligidos e tornados públicos por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes projectam uma nova luz sobre muitos acontecimentos posteriores, tais como a invasão de Angola pelas forças sul-africanas em 1975, o papel da África do Sul nas guerras civis angolana e moçambicana, e as tentativas de desestabilização dos países da «Linha da Frente».
Perdem todo o sentido as acaloradas polémicas sobre a mal fadada «descolonização» portuguesa como causa principal dos conflitos que dilaceraram a África Austral até à queda do regime racista sul-africano, em 1991. Pretória já estava em guerra contra os nacionalistas africanos, em Angola e Moçambique, muito antes do primeiro soldado cubano ter pisado o solo angolano.
ÁFRICA21 – JUNHO 2009

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