sexta-feira, 27 de abril de 2012

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO. Entrevista com Tenente-Coronel Aniceto Afonso e Fernando Rosas “Em tempo de mudança, a História do Século XX”


 
 


Por Franklin Rodrigues, Ana Colaço, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

A 4 de fevereiro de 1961 elementos do MPLA assaltam em Luanda a casa de reclusão militar, o quartel da PSP e a delegação da Emissora Nacional. 4 de Fevereiro de 1961 marca o início das guerras coloniais em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Em Portugal o Rádio Português recebia a 4 de Fevereiro a crónica do correspondente em Luanda.
Atenção Luanda, atenção Humberto esperamos com interesse as tuas informações.
Depois da conversa que tivemos há pouco, a situação em Luanda está perfeitamente calma. Podem tranquilizar-se aí em Lisboa. Estabelecimentos prisionais à mesma hora. Denunciam-se manobras do exterior pois parece não restarem dúvidas dada a acção que de relaciona com as directrizes da chamada Junta Revolucionária de Libertação Ibérica, mas como aconteceu...
Era esta a visão dos factos do correspondente do Rádio Clube Português em Luanda ano de 1961. A guerra colonial 36 anos depois, é hoje o tema do nosso programa como sempre com a colaboração do professor Fernando Rosas e o convidado é o tenente-coronel Aniceto Afonso.


Fernando Rosas - Um convidado muito especialmente para nos falar deste assunto. Ele está neste momento juntamente com o coronel Matos Gomes e outros colaboradores a escrever aquilo que é o primeiro ensaio de história da guerra colonial. Sai semanalmente num jornal diário. Senhor tenente-coronel há condições para se começar a escrever a guerra colonial do ponto de vista quer subjectivo da opinião das pessoas quer do ponto de vista do acesso às fontes
Tenente-coronel Aniceto Afonso - Bem, de facto, em primeiro lugar, nós devemos ser muito prudentes quando tratamos de questões complexas da História recente, mas isso aplica-se a todos os âmbitos e a todos os campos da História. Muitas vezes não temos acesso a todas as fontes, temos menos certezas do que de outras épocas em que as fontes estão acessíveis, mas não pode marcar-se uma data a partir da qual se pode começar a falar das coisas. Relativamente à acessibilidade da documentação, há documentação acessível. Ao nível do Exército a documentação está acessível com trinta anos, portanto está acessível até 1966 e para além disso há muito testemunho e alguma obra já escrita sobre a guerra.
Fernando Rosas - Tem tido colaboração nesse trabalho de antigos combatentes, mesmo fora da instituição militar, ou seja gente que queira dar testemunho, fotografia, documento.
Tenente-coronel Aniceto Afonso - Sim. Principalmente tivemos muita colaboração relativamente às fotografias. Portanto, nesse aspecto como a obra é uma obra de divulgação e tem que ser profusamente ilustrada e então tivemos que recorrer a muitas fontes e a muitas pessoas que possuíam arquivos pessoais fotográficos importantes e nesse aspecto sim, tivemos a colaboração de muita gente.
Fernando Rosas – E da parte da instituição militar há disponibilidade no sentido de a investigação e nomeadamente a investigação não militar poder ter acesso às fontes sobre esse período?
 
Tenente-coronel Aniceto Afonso – O acesso às fontes tem normas e a norma que o Exército utiliza hoje é a norma europeia, isto é, trinta anos após os acontecimentos os arquivos são abertos, só que em Portugal há um problema que sempre vem ao de cima, é a questão do tratamento da documentação. O tratamento da documentação é um processo lento, é um processo que exige muito pessoal e pessoal preparado tecnicamente e nem sempre as instituições dispõem desse pessoal e por isso, embora se acumulem nos arquivos muita documentação e muitos fundos arquivísticos que são fundamentais para o estudo desse período, a verdade é que não existe disponibilidade para se fazer o seu tratamento e portanto existe sempre dificuldade em colocá-lo em acesso ao público. No exército todo o material que está tratado arquivisticamente até 1966, portanto, que já fez trinta anos, está aberto ao público. Está a acessível.
Fernando Rosas – Haveria mais questões a tratar sobre esta questão da acessibilidade, mas eu penso que para não transformar isto numa conversa excessivamente técnica sobre acesso aos arquivos, eu ia pôr-lhe uma questão sobre o nosso objecto que é esta. Há uma questão que se nos impõe. Como é que um país como Portugal, economicamente pouco desenvolvido nos anos sessenta, consegue aguentar durante treze anos uma guerra em três frentes, mobilizando cerca de, mais de 100 000 mil homens, com despesas naturalmente vultuosas. Como é que do seu ponto de vista de historiador do assunto, como é que se conseguiu aguentar esta guerra. Porque era barata? Por fraqueza do inimigo? Porquê?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Bem, eu julgo que talvez um pouco de todos esses factores. Digamos a situação que se colocava, que se colocou a Portugal era de sustentar uma guerra em três teatros de operações extremamente distantes uns dos outros, extremamente distantes da retaguarda, uma guerra que, sendo no terreno, principalmente na primeira fase da guerra, portanto digamos até meio da guerra, barata era, no entanto, por estas circunstâncias de distância uma guerra cara.
Fernando Rosas – Porque é que se tornou mais cara?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Tornou-se mais cara porque as guerras como sempre têm tendência para evoluir tecnicamente e dá-se a evolução dos dois lados e à medida que se dá essa evolução tem sempre que se equilibrar aquilo que se chama potenciais de combate e ao equilibrar potenciais de combate aumentam-se substancialmente as despesas relacionadas com o material que são normalmente as despesas mais pesadas na guerra, na condução da guerra. De modo que eu julgo que os motivos por que se manteve uma guerra dessas durante tanto tempo podemos dissecá-los em vários campos. São questões de natureza política e são depois também questões de natureza de aplicação militar ou doutrinário, digamos, de princípios militares da guerra de guerrilhas. Eu julgo que aí, apesar de tudo, devemos reconhecer às forças armadas portuguesas uma capacidade que não parecia ao seu alcance e que elas conseguiram compreender o tipo de guerra que iam enfrentar e conseguiram opor-lhe uma doutrina que talvez seja em alguns aspectos inovadora.
Fernando Rosas – No campo da contra-guerrilha.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – No campo da contra-guerrilha. É verdade que o adversário, portanto, os movimentos de libertação nas colónias portuguesas só começaram a estruturar-se, portanto a ser mais fortes em termos militares, já passados alguns anos do início da luta armada, mas não é menos verdade que noutros territórios coloniais isso também aconteceu e no entanto rapidamente a guerra evoluiu ou para soluções que não eram só de natureza militar, para soluções de natureza política ou evoluiu para confrontos mais de outra natureza, portanto que ultrapassou a natureza da guerrilha e que obrigou exactamente a encontrarem-se soluções políticas. Nas colónias portuguesas isso não aconteceu, portanto prolongou-se esse estado, digamos, um pouco de irresolução, não é. Portanto, sem se saber de facto em que sentido caminhar. Se para uma solução política, para a exigência, as próprias circunstâncias exigirem uma solução política ou para a continuação do mesmo nível da ...
Fernando Rosas – O senhor tenente-coronel referiu há pouco que as forças armadas portuguesas assimilaram com rapidez a problemática das novas condições desse tipo de guerra. Tinham tido, ao que sei, alguma experiência anterior ao próprio começo da guerra, na Argélia e noutros centros de instrução. Creio que os franceses e os ingleses terão sido as fontes dos conhecimentos principais. A pergunta que eu queria fazer, no entanto, era esta. Acha que a partir de algum momento da guerra da parte das chefias há a noção de que a guerra não tem solução militar e acha que por virtude dessa consciência se terá aberto uma conflitualidade com o poder político?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Quase temos que separar caso a caso, pessoa a pessoa. De facto houve, em primeiro lugar, houve esse contacto prévio com outros teatros de operações, principalmente na Argélia, que trouxeram um conhecimento a esses oficiais que frequentaram.
Fernando Rosas – Antes mesmo de começar...

Tenente-coronel Aniceto Afonso – Antes mesmo de começar a guerra e o facto é que nós, em 1961, o Exército produziu um manual que se manteve em execução até ao final da guerra. Com pouquíssimas alterações que é “O Exército na guerra subversiva” e esse foi o manual de todos os militares que fizeram a guerra e como ele se manteve sempre, praticamente não precisou de alterações é porque, de facto, esses militares perceberam o que é que era essencial numa guerra de guerrilhas porque, digamos que o meio da guerra de guerrilhas não é o terreno e perceberam rapidamente que é a população. Digamos há na manobra militar, há várias manobras e a manobra militar aqui é talvez a manobra menos importante. A grande manobra é a manobra das populações.
Fernando Rosas – Da qual a militar é complementar.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – A manobra militar é complementar e na guerra de guerrilhas, digamos, o Exército português percebeu isso. Julgo eu que percebeu isso duma forma geral muito cedo e por isso a organização do Exército em quadrícula nos teatros de operações foi fundamental para resolver esse problema do enquadramento das populações. Os militares que se situavam numa zona de acção, numa área apercebiam-se rapidamente dos problemas fundamentais dessa área e principalmente das populações dessa área e souberam, portanto arranjaram soluções para, de alguma forma, furtar a população à acção dos movimentos de libertação. Julgo que isso foi fundamental. A outra questão...
Fernando Rosas – Da parte das chefias. Falava eu da questão da consciência das chefias. Se terá ou não desenvolvido
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Esse é outro problema [Fernando Rosas – Irresolução militar da guerra] Esse é outro problema. Houve chefes que compreenderam isso bastante cedo e à medida que nós aprofundamos o conhecimento que temos deles e dos seus documentos vamos percebendo que muito cedo se aperceberam disso e houve chefes que nunca se aperceberam disso. Isto é fizeram a guerra sem se aperceber. [Fernando Rosas – O general Spínola, o general Costa Gomes]. Eu julgo que podemos falar de nomes, eu julgo que podemos falar de nomes. Julgo que os dois que referiu se aperceberam que a solução da guerra não podia ser militar. [Fernando Rosas – E esses homens criaram escola nas Forças Armadas do ponto de vista...?] Mais o general Spínola criou, mais o general Spínola criou escola do que o general Costa Gomes até porque isso está de acordo com as suas próprias características pessoais, a sua personalidade. O general Costa Gomes, já falando em cada um dos casos, o general Costa Gomes digamos aplicou a sua solução no Leste de Angola e quando ele é comandante chefe de Angola e aplicou uma solução de certa forma por antecipação. Ele percebeu que a guerra ia ter uma segunda fase em Angola que era o Leste e antes que se desse a abertura dessa frente, ele instalou as tropas no terreno, fez a sua quadrícula e portanto adiantou-se de alguma maneira ao início da guerra por parte dos Movimentos de Libertação [Fernando Rosas – Dificultou a abertura da frente Leste ao MPLA] Dificultou exactamente, dificultou e muito para além de outras medidas que foram concorrentes com esta, complementares desta. A criação de forças irregulares que foi o acordo a que depois chegou com a UNITA. Portanto a própria existência de mais do que um Movimento facilitou também o papel das Forças Armadas.
Fernando Rosas – Mas ele tinha a consciência de que todas essas medidas eram medidas tendentes a ganhar tempo para uma solução política.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Há isso sempre. Parece-me hoje evidente que mesmo nos escritos oficiais e mesmo naquilo que veio a ser publicado, dito pelo general Costa Gomes na altura que é evidente que ele acha sempre, deixa sempre uma mensagem de que a guerra não se podia resolver só por meios militares.
Fernando Rosas – Mas de qualquer maneira, encontrará, creio que não me engano, se sugerisse ao senhor tenente-coronel que é difícil encontrar mais oficiais generais a partilhando desse ponto de vista na altura.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Vamos do outro que é o general Spínola.
“Há que entrar no âmago do movimento africano, detectar as aspirações comuns e sobre estas construir esquemas de cooperação e interdependência que liguem de facto africanos e europeus e permitam sobre essa solidariedade afirmação de sólida unidade político-económica. Não se nos afigure porém impossível tal solução, senão pela via da construção de sociedades individualizadas, unificadas sob um estatuto que, garantindo a pluralidade, constituem na ordem externa uma unidade suficientemente flexível para que pelo seu seio as diversas partes possam prosperar, afirmar-se e realizar-se”.
(Excerto de discurso do general Spínola)
O general Spínola foi para a Guiné em 1968 como Comandante Chefe e Governador Geral, é uma situação pouco comum. Se reparar bem em todo o... [Fernando Rosas – Concentrar o poder político e o poder civil] Concentrar o poder político e o poder militar na mesma pessoa num teatro de operações. Ele foi para lá nessa situação em 1968 e logo em 19668 ele fez um estudo de situação em que anuncia, de alguma forma, aquilo que virá a ser a sua acção durante os cinco anos que ele lá esteve e em que não nos deixa dúvidas nenhumas ao ler os seus escritos e essas suas directivas, não nos deixa dúvida nenhuma que ele percebeu, desde o princípio, que aquilo era uma guerra sem solução militar e que era preciso conjugar uma solução política, arranjar uma solução política, que necessariamente passaria por negociações com os Movimentos de Libertação, o PAICG, para chegar a uma solução. É claro que essa solução era na altura compreendida, uma solução dentro dum, uma solução portuguesa, se assim quisermos dizer, mas que fosse partilhada com o PAIGC, evidentemente.
Fernando Rosas – Evidentemente, isso no general Spínola vai ela própria evoluindo.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Vai também, vai também. Não tenho é tanto a certeza em que sentido em que ela evolui. [Fernando Rosas – Se para trás, se para a frente] Sim. Não tenho a certeza. Parece-me que ele em 1968 faz um diagnóstico exaustivo da situação e chega exactamente à conclusão que são necessárias negociações.

 Fernando Rosas – E acha que a partir de certa altura ele terá pensado que é possível ganhar militarmente a guerra?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Julgo que não, julgo que no terreno não. Agora poderia ser  [Fernando Rosas – Como explica a Operação Mar Verde no sul da Guiné] Talvez essa seja das atitudes inexplicáveis. Talvez seja porque [Fernando Rosas – Talvez pressão do seu ´staff´] Talvez sim. Também não tenho um conhecimento suficiente, em termos dos acontecimentos, para situar a Operação Mar Verde no conjunto de acções que ele estava a fazer onde a Operação Mar Verde parece não ter lugar.
Locutora - Já agora, desculpem, como é que foi a Operação Mar Verde?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Estamos a falar duma Operação que nós chamamos irregular que é uma Operação feita no exterior, portanto feita no exterior do território do teatro de operações, na Guiné-Conacri, com tropas de certa forma irregulares também, embora sendo constituídas também por militares, eram também, de alguma forma, irregulares. Era uma operação feita no exterior, com finalidades políticas. [Fernando Rosas – Só para os ouvintes saberem, finalidades essas que consistiriam em derrubar o Sekou Touré e aparentemente liquidar fisicamente Amilcar Cabral]. Esse segundo objectivo que tem constado parece tão incongruente que o general Spínola vinha fazendo e com a aproximação que ele vinha fazendo exactamente ao Amilcar Cabral através do Senghor que de certa forma não encontramos uma explicação muito válida ainda hoje não encontramos uma explicação muito válida para saber o que é que ele poderia ter feito, quer dizer, o que é que o general Spínola e mesmo Portugal poderia ter feito com uma vitória, se tivessem alcançado esses objectivos de derrubar o Sekou Touré e matar o Amilcar Cabral, se esse era verdadeiramente o objectivo. [Fernando Rosas – Libertar os presos, etc.] Sim, esse foi o objectivo atingido, mas os outros se tivessem sido atingidos talvez hoje não se perceba muito bem o que é que se teria feito com isso porque o Governo Português, Portugal iria ficar numa situação extremamente incómoda em termos internacionais e o general Spínola também iria ficar ele próprio também numa situação extremamente incómoda, quase insustentável, portanto, continuamos a interrogarmo-nos sobre essa questão da Operação Mar Verde. Mas essa não nos parece ser a linha de pensamento do general Spínola. Parece-nos ser alguma coisa que estaria fora do pensamento dele com [Fernando Rosas – Constato que temos um chefe militar com o pensamento de conjugação da solução militar com a política em Angola, um na Guiné, em Moçambique falta um chefe militar desse género.] Faltou, Julgo que faltou.

Fernando Rosas – E isso teve repercussões na condução da guerra?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Teve muito, muitas repercussões.
Fernando Rosas – Diga-me um pouco como é que observa esse problema.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Esse, portanto, o chefe que se associa à guerra em Moçambique é o general Kaulza de Arriaga. O general Kaulza de Arriaga foi Comandante-chefe a partir de 1970 e desde logo fez uma coisa que os mais prudentes generais, mesmo os menos prudentes generais portugueses já não faziam em 1970. Já tinham aprendido muito com a guerra e já sabiam que neste tipo de guerra não de faziam grandes operações. As grandes operações que se fizeram, fizeram-se no início da guerra, fizeram-se em Angola, foi a operação que levou à reocupação de Nambuongongo, a Operação Viriato, é uma grande operação que envolve grandes efectivos. Fez-se na Guiné com a Operação Tridente de ocupação da ilha de Como, também uma operação conjunta com os três ramos das Forças Armadas e com grandes efectivos. [Fernando Rosas – Estamos a falar de operações de guerra clássica] Um pouco de guerra clássica, não é. Começando uma guerra seguinte como forma de acabar a de guerra anterior, não é. Na segunda guerra e portanto aplicou-se nestes territórios essa grande operação. Em Moçambique também se fez uma grande operação no planalto dos Macondes, em Cabo Delgado, que foi a Operação Águia, também um pouco com esta dimensão [Fernando Rosas – Antes da Nó Górdio] Muito antes, logo no início da guerra. Estamos a falar nas três grandes operações que se fez uma em cada teatro, logo no início da guerra. [Fernando Rosas – Portanto naquilo que se pode chamar uma primeira fase da guerra.] Uma espécie de primeira fase. Isso até é uma fase muito rápida. Rapidamente se percebeu que isso não era o tipo de operações daquela guerra. Aquela guerra era uma guerra de pequenas operações, de grande dispersão de tropas, de presença de tropas no terreno, com forças de quadrícula, ocupando todo o terreno e depois forças de intervenção que fariam as tais operações mais concretas, não é. Kaulza de Arriaga em 1970 parece que ainda não teria percebido este princípio da guerra de guerrilhas e em 1970...
Fernando Rosas – Qual era a filosofia da Operação Nó Górdio?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Em 1970 a filosofia era praticamente igual a esta filosofia que se aplicou em 61 até 64, nestas grandes operações. São grandes operações que se destinam a expulsar o inimigo duma zona e foi o que aconteceu. O que estava em causa era o planalto dos Macondes onde a FRELIMO tinha bases, bases que já vinham desde há vários anos e que toda sabia que elas existiam e onde estavam, mas que na condução duma guerra de guerrilhas eram encaradas duma certa maneira pelas forças portuguesas a quem não incomodava que as bases da FRELIMO estivessem naqueles locais desde que elas não saíssem daquela área ou daquela zona de acção e desde que a guerra não se estendesse para além de certos limites. Os limites que eram fixados, a zona de guerra, digamos, era fixada o que se pretendia principalmentalmente era que a guerra não alastrasse a outras zonas. Digamos era uma guerra morna não é, que se desenvolvia naquelas áreas. Quando o general Kaulza de Arriaga prepara a Operação Nó Górdio, Operação de grande dimensão, com muitos efectivos, que vai actuar nesse planalto dos Macondes onde a FRELIMO estava instalada, com assalto às bases da FRELIMO. É uma Operação preparada com alguma antecedência.
Fernando Rosas – Era possível um Comandante-Chefe de Moçambique ter completa autonomia para desencadear uma operação que contrariava um pouco a doutrina militar em vigor nas Forças Armadas nesse momento.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Eu não posso afirmar se ele teve ou não teve autorização para fazer essa Operação. Julgo que sim.

 Fernando Rosas – O Chefe Maior General já era o general...
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Em 1970 sim. Mas julgo que Costa Gomes. Não, julgo que ainda não era. Eu julgo que o Comandante-Chefe tinha autonomia para fazer esta operação ou outro tipo de operação. Digamos na sua carta de comando não se lhe impunha o tipo de operação que devia fazer. A condução da guerra, digamos, após ser nomeado [Fernando Rosas – Pode-se dizer não havia uma doutrina militar vigente acerca da condução da guerra.] Havia, mas não neste aspecto. Havia, a doutrina militar que havia era nesses aspectos do dia a dia, da ligação, da condução das pequenas operações, das emboscadas, do golpe de mão, de patrulhamentos, portanto todas essas pequenas operações e da relação com as populações. Aí sim, havia doutrina. Se se fazia uma grande operação ou uma pequena operação isso depende do chefe. Se estrategicamente é importante fazer ou não fazer.
Fernando Rosas – Corrigir-me-á, mas o que julgo perceber é que se está instalada uma doutrina militar de quadrícula para a condução da guerra e de repente se mete em cima dessa doutrina uma operação deste género isto desarticula completamente todo o esquema militar que está em vigor.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Até certo ponto podemos admitir que sim. Até certo ponto podemos admitir que sim porque as forças militares que forem empregues nessa operação foram principalmente forças militares de intervenção, portanto não são as forças militares de quadrícula. Portanto, são aquelas forças que estão de reserva sob o comando directo do Comandante-Chefe, embora vários batalhões de quadrícula tenham participado também nas acções que são complementares propriamente dos assaltos e dos golpes de mão às bases da FRELIMO. O que aconteceu é que isto foi sabido pela FRELIMO com muita antecedência porque os sistemas de informação funcionam para os dois lados, e quando se deu o assalto evidentemente as bases da FRELIMO estavam desocupadas, já não estava lá ninguém da FRELIMO e digamos todos os guerrilheiros ou a maior parte dos guerrilheiros estavam fora da área que foi definida para a grande operação e portanto os resultados digamos, em termos da aplicação de meios, os resultados foram bastante diminutos.
“Portugal, anos 60: a guerra colonial”. Com a colaboração do professor Fernando Rosas e do tenente-coronel Aniceto Afonso, tema ainda dos próximos programas.
Fizeram este programa Franklin Rodrigues, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 21 de Novembro de 1997)





2ª Parte


CONTINUA...

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