O acordo de Alvor = pedaço de papel
14-01-2005 | Fonte: Lusa (Vera Magarreiro)
O acordo de Alvor, que há 30 anos permitiu a independência de Angola e previa a paz na antiga colónia portuguesa, representa para António Almeida Santos (na foto), um dos signatários, apenas “um pedaço de papel” que “não valeu nada”.
Em entrevista à Agência Lusa, o dirigente do Partido Socialista Português, que a 15 de Janeiro de 1975 era ministro da Coordenação Interterritorial e integrava a delegação portuguesa que assinou com os líderes dos três movimentos de libertação de Angola o acordo de Alvor, no Algarve, refere que, assim que viu o documento, soube que “aquilo não resultaria”.
O acordo “previa a eleição de uma assembleia política disputada por três partidos, que tinham por detrás três exércitos e três países cheios de ambições económicas, materiais”, afirma o deputado, para justificar a sua certeza de que a solução era “inexequível”.
Além das disputas internas, estava em causa o apoio aos movimentos de três potências mundiais, em plena guerra-fria – o MLPA era apoiado pela URSS, a UNITA pela África do Sul e, num plano de fundo a própria China, e a FNLA pelos Estados Unidos, “não apenas politicamente, mas com dinheiro, material e formação”.
“Era um tabuleiro em que as grandes potências jogavam o xadrez ligado ao petróleo e aos diamantes”, afirma Almeida Santos, que na altura propôs ao “amigo” Agostinho Neto, colega dos tempos de Coimbra, uma reunião com os líderes dos três movimentos “à margem” da cimeira de seis dias, que decorreu no Hotel Penina, em Alvor.
O encontro prolongou-se pela madrugada e Almeida Santos transmitiu a sua oposição à solução encontrada: “Com este esquema vocês vão continuar aos tiros”.
“Com um órgão de cúpula em que havia uma representação dos três movimentos, ou seja dos três exércitos, que decisões é que eles iriam conseguir tomar? Como era possível conseguir uma maioria? O que ficasse em minoria desataria aos tiros”, argumenta.
Propôs então uma solução alternativa que previa uma presidência rotativa. Cada um dos líderes assumia rotativamente o cargo de presidente, de primeiro-ministro e de chefe das forças armadas ou presidente do parlamento.
A solução assentava ainda na criação de uma Constituição, que seria referendada e serviria para estruturar o novo Estado. As eleições realizar-se-iam apenas quando o país estivesse estabilizado e não antes da independência como ficou estabelecido no Acordo de Alvor.
Os três aceitaram mas, à saída, Agostinho Neto disse que tinha ainda de consultar o comité central do MPLA sobre a proposta.
“No dia seguinte a resposta foi negativa”, lamenta o deputado socialista, para quem esta solução, de que muito se orgulha, podia ter traçado um rumo diferente dos acontecimentos.
Resignou-se à solução, mas tem pena de ter sido apenas um “escriba” do documento.
“O acordo já vinha pré-estabelecido pelos líderes dos movimentos. Eu e Mário Soares (então ministro dos Negócios Estrangeiros) limitámo-nos a meter o acordo em bom português”, destaca.
“Do acordo de Alvor sou apenas um escriba, não sou mais do que isso”, reforça, lembrando que Portugal não teve outra alternativa, senão assinar por baixo o que os líderes dos movimentos decidiram uma semana antes de Alvor, em Mombaça, no Quénia.
Sobre a reunião de Mombaça, diz que “foi quase um milagre conseguir sentá-los (aos líderes dos movimentos) à mesma mesa, porque a guerra civil já estava no auge, principalmente em Luanda, onde já se estavam a matar uns aos outros”.
Para Almeida Santos, Portugal teve “um atraso mínimo de dez anos e máximo de 20″ no processo de descolonização em relação a outros países como a França, a Inglaterra, a Holanda ou a Bélgica e era preciso “encontrar uma solução” urgentemente.
“As nossas tropas estavam saturadas da guerra, o que, de certo modo levou à revolução do 25 de Abril” e originou uma “psicose de pressa”, refere, lembrando que, além disso, as tropas portuguesas estavam “à beira de uma derrota na Guiné-Bissau e em Moçambique a situação estava a deteriorar-se cada vez mais”.
“Era um castelo de cartas. Sabia-se que quando caísse a primeira carta, cairiam todas as outras. Em resultado disso a descolonização foi feita em condições péssimas”, refere.
A descolonização devia ter sido feita progressivamente, porque a própria opinião pública portuguesa “não estava preparada para um salto rápido” que implicava “a perda das colónias” mas isto gerou a desconfiança nos movimentos de libertação, que exigiram a negociação simultânea de um processo de paz.
A guerra colonial prolongou-se por mais alguns meses após o 25 de Abril, o que “agravou a revolta dos militares”. “Não percebiam porque continuava a matar-se a morrer-se”, sublinha o deputado.
“Gerou-se então um clima de indisciplina, já ninguém mandava em ninguém, já não havia respeito por qualquer tipo de ordem”, uma situação “perigosíssima para quem tinha que negociar a descolonização”, agravada pelo facto de ser necessário chegar a acordo “com três e não apenas um movimento de libertação”, analisa.
“Nas circunstâncias, o acordo de Alvor foi o acordo possível, em extremo de causa. É preciso ver que é um acordo entre três beligerantes, entre três exércitos em luta uns contra os outros. É mais um armistício do que um acordo de descolonização”, considera.
No entanto, com este acordo, Portugal ganhou legitimidade para dizer “isto é um problema deles, fizemos o que tínhamos a fazer, agora entendam-se”, destaca Almeida Santos. “De certa forma legitimámos a nossa saída”.
Sem desistir da proposta apresentada em Alvor aos três dirigentes angolanos, Almeida Santos reapareceu com um documento “na mesma base”, em Junho de 1975, aproveitando a ideia de que o acordo devia ser revisto porque não estava a ser cumprido.
“O governo concordou, o Presidente da República também, mas infelizmente o Melo Antunes (na altura ministro sem pasta responsável pelos processos de descolonização) discordou, não sei porquê”, recorda.
O dirigente socialista considera que Melo Antunes estava “agarrado” à esperança de que ainda era possível que os três movimentos chegassem a acordo e recorda uma visita que ambos fizeram posteriormente a Luanda, em que conseguiram “uma trégua de duas ou três semanas”.
Estas tréguas, diz, eram, no entanto, “precárias” dado que “as razões por que eles lutavam eram tanto internas como de fora, porque naquela altura a guerra-fria mobilizava paixões terríveis”.
“Cada um defendia os seus interesses, interesses que cheiravam a petróleo e brilhavam como os diamantes, eram interesses muito fortes”, reforça.
“Fomos ultrapassados pelos acontecimentos e aquele acordo de Alvor é um acordo que não valeu nada”, sublinha Almeida Santos.
O deputado recorda o seu discurso durante a tomada de posse, em Luanda, do governo provisório acordado em Alvor, em que afirmou: “este acordo tanto pode vir a ser um bom acordo para salvar Angola como pode vir a ser apenas um pedaço de papel”.
“Infelizmente, foi apenas um pedaço de papel”, diz, 30 anos depois.
Questionado pela Lusa sobre se Portugal cometeu o mesmo erro com as negociações de paz de Bicesse, em 1991, Almeida Santos responde que não percebe por que não resultou, dado que terminara a guerra- fria, mas avança uma hipótese: “provavelmente era cedo demais, ainda não havia a saturação da guerra”.
Sobre o fim do conflito armado em 2002, possível após a morte de Savimbi, o socialista responde com uma declaração que fez há anos em Angola e que, na altura, “chocou os jornalistas”: “Angola está condenada a que a guerra dure até que um dos contendores vença o outro”.
Sobre se o cenário seria diferente caso a UNITA tivesse assumido o poder em Luanda em vez do MPLA, Almeida Santos defende que diferente seria certamente, mas que não sabe se melhor.
“Tenho as minhas dúvidas. Se ganhasse a FNLA, ficávamos debaixo da pata do Mobutu (ditador do ex-Zaire), que não era flor que se cheirasse, se ganhasse o Savimbi, ficávamos não só debaixo da pata do Savimbi mas também da África do Sul, racista. Das três hipóteses viesse o diabo e escolhesse”.
O acordo de Alvor, composto por 60 artigos, acabou por ser suspenso temporariamente três meses antes da independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, pelo então presidente da República, Francisco da Costa Gomes, que invocou a sua violação constante.
De Alvor, os líderes dos três movimentos de libertação – Agostinho Neto, pelo MPLA, Jonas Savimbi pela UNITA e Holden Roberto pela FNLA – levaram pelo menos a garantia de serem “únicos e legítimos representantes do povo angolano” No seu discurso, após a assinatura do acordo de Alvor, que considerou de “transcendental importância”, o presidente Costa Gomes deixou aos dirigentes dos três movimentos o desafio de encontrarem “soluções angolanas autênticas, baseadas na capacidade de diálogo, no espírito de cooperação e na boa vontade de servir” o país, apesar das “diferenças sociais, filosóficas e políticas”.
Prevaleceram as diferenças e foi abandonado o diálogo. O resultado foi mais 27 anos de guerra, desta vez civil, num país que Costa Gomes qualificou na altura como dos “mais florescentes do continente africano”.
14-01-2005 | Fonte: Lusa (Vera Magarreiro)O acordo de Alvor, que há 30 anos permitiu a independência de Angola e previa a paz na antiga colónia portuguesa, representa para António Almeida Santos (na foto), um dos signatários, apenas “um pedaço de papel” que “não valeu nada”.
Em entrevista à Agência Lusa, o dirigente do Partido Socialista Português, que a 15 de Janeiro de 1975 era ministro da Coordenação Interterritorial e integrava a delegação portuguesa que assinou com os líderes dos três movimentos de libertação de Angola o acordo de Alvor, no Algarve, refere que, assim que viu o documento, soube que “aquilo não resultaria”.
O acordo “previa a eleição de uma assembleia política disputada por três partidos, que tinham por detrás três exércitos e três países cheios de ambições económicas, materiais”, afirma o deputado, para justificar a sua certeza de que a solução era “inexequível”.
Além das disputas internas, estava em causa o apoio aos movimentos de três potências mundiais, em plena guerra-fria – o MLPA era apoiado pela URSS, a UNITA pela África do Sul e, num plano de fundo a própria China, e a FNLA pelos Estados Unidos, “não apenas politicamente, mas com dinheiro, material e formação”.
“Era um tabuleiro em que as grandes potências jogavam o xadrez ligado ao petróleo e aos diamantes”, afirma Almeida Santos, que na altura propôs ao “amigo” Agostinho Neto, colega dos tempos de Coimbra, uma reunião com os líderes dos três movimentos “à margem” da cimeira de seis dias, que decorreu no Hotel Penina, em Alvor.
O encontro prolongou-se pela madrugada e Almeida Santos transmitiu a sua oposição à solução encontrada: “Com este esquema vocês vão continuar aos tiros”.
“Com um órgão de cúpula em que havia uma representação dos três movimentos, ou seja dos três exércitos, que decisões é que eles iriam conseguir tomar? Como era possível conseguir uma maioria? O que ficasse em minoria desataria aos tiros”, argumenta.
Propôs então uma solução alternativa que previa uma presidência rotativa. Cada um dos líderes assumia rotativamente o cargo de presidente, de primeiro-ministro e de chefe das forças armadas ou presidente do parlamento.
A solução assentava ainda na criação de uma Constituição, que seria referendada e serviria para estruturar o novo Estado. As eleições realizar-se-iam apenas quando o país estivesse estabilizado e não antes da independência como ficou estabelecido no Acordo de Alvor.
Os três aceitaram mas, à saída, Agostinho Neto disse que tinha ainda de consultar o comité central do MPLA sobre a proposta.
“No dia seguinte a resposta foi negativa”, lamenta o deputado socialista, para quem esta solução, de que muito se orgulha, podia ter traçado um rumo diferente dos acontecimentos.
Resignou-se à solução, mas tem pena de ter sido apenas um “escriba” do documento.
“O acordo já vinha pré-estabelecido pelos líderes dos movimentos. Eu e Mário Soares (então ministro dos Negócios Estrangeiros) limitámo-nos a meter o acordo em bom português”, destaca.
“Do acordo de Alvor sou apenas um escriba, não sou mais do que isso”, reforça, lembrando que Portugal não teve outra alternativa, senão assinar por baixo o que os líderes dos movimentos decidiram uma semana antes de Alvor, em Mombaça, no Quénia.
Sobre a reunião de Mombaça, diz que “foi quase um milagre conseguir sentá-los (aos líderes dos movimentos) à mesma mesa, porque a guerra civil já estava no auge, principalmente em Luanda, onde já se estavam a matar uns aos outros”.
Para Almeida Santos, Portugal teve “um atraso mínimo de dez anos e máximo de 20″ no processo de descolonização em relação a outros países como a França, a Inglaterra, a Holanda ou a Bélgica e era preciso “encontrar uma solução” urgentemente.
“As nossas tropas estavam saturadas da guerra, o que, de certo modo levou à revolução do 25 de Abril” e originou uma “psicose de pressa”, refere, lembrando que, além disso, as tropas portuguesas estavam “à beira de uma derrota na Guiné-Bissau e em Moçambique a situação estava a deteriorar-se cada vez mais”.
“Era um castelo de cartas. Sabia-se que quando caísse a primeira carta, cairiam todas as outras. Em resultado disso a descolonização foi feita em condições péssimas”, refere.
A descolonização devia ter sido feita progressivamente, porque a própria opinião pública portuguesa “não estava preparada para um salto rápido” que implicava “a perda das colónias” mas isto gerou a desconfiança nos movimentos de libertação, que exigiram a negociação simultânea de um processo de paz.
A guerra colonial prolongou-se por mais alguns meses após o 25 de Abril, o que “agravou a revolta dos militares”. “Não percebiam porque continuava a matar-se a morrer-se”, sublinha o deputado.
“Gerou-se então um clima de indisciplina, já ninguém mandava em ninguém, já não havia respeito por qualquer tipo de ordem”, uma situação “perigosíssima para quem tinha que negociar a descolonização”, agravada pelo facto de ser necessário chegar a acordo “com três e não apenas um movimento de libertação”, analisa.
“Nas circunstâncias, o acordo de Alvor foi o acordo possível, em extremo de causa. É preciso ver que é um acordo entre três beligerantes, entre três exércitos em luta uns contra os outros. É mais um armistício do que um acordo de descolonização”, considera.
No entanto, com este acordo, Portugal ganhou legitimidade para dizer “isto é um problema deles, fizemos o que tínhamos a fazer, agora entendam-se”, destaca Almeida Santos. “De certa forma legitimámos a nossa saída”.
Sem desistir da proposta apresentada em Alvor aos três dirigentes angolanos, Almeida Santos reapareceu com um documento “na mesma base”, em Junho de 1975, aproveitando a ideia de que o acordo devia ser revisto porque não estava a ser cumprido.
“O governo concordou, o Presidente da República também, mas infelizmente o Melo Antunes (na altura ministro sem pasta responsável pelos processos de descolonização) discordou, não sei porquê”, recorda.
O dirigente socialista considera que Melo Antunes estava “agarrado” à esperança de que ainda era possível que os três movimentos chegassem a acordo e recorda uma visita que ambos fizeram posteriormente a Luanda, em que conseguiram “uma trégua de duas ou três semanas”.
Estas tréguas, diz, eram, no entanto, “precárias” dado que “as razões por que eles lutavam eram tanto internas como de fora, porque naquela altura a guerra-fria mobilizava paixões terríveis”.
“Cada um defendia os seus interesses, interesses que cheiravam a petróleo e brilhavam como os diamantes, eram interesses muito fortes”, reforça.
“Fomos ultrapassados pelos acontecimentos e aquele acordo de Alvor é um acordo que não valeu nada”, sublinha Almeida Santos.
O deputado recorda o seu discurso durante a tomada de posse, em Luanda, do governo provisório acordado em Alvor, em que afirmou: “este acordo tanto pode vir a ser um bom acordo para salvar Angola como pode vir a ser apenas um pedaço de papel”.
“Infelizmente, foi apenas um pedaço de papel”, diz, 30 anos depois.
Questionado pela Lusa sobre se Portugal cometeu o mesmo erro com as negociações de paz de Bicesse, em 1991, Almeida Santos responde que não percebe por que não resultou, dado que terminara a guerra- fria, mas avança uma hipótese: “provavelmente era cedo demais, ainda não havia a saturação da guerra”.
Sobre o fim do conflito armado em 2002, possível após a morte de Savimbi, o socialista responde com uma declaração que fez há anos em Angola e que, na altura, “chocou os jornalistas”: “Angola está condenada a que a guerra dure até que um dos contendores vença o outro”.
Sobre se o cenário seria diferente caso a UNITA tivesse assumido o poder em Luanda em vez do MPLA, Almeida Santos defende que diferente seria certamente, mas que não sabe se melhor.
“Tenho as minhas dúvidas. Se ganhasse a FNLA, ficávamos debaixo da pata do Mobutu (ditador do ex-Zaire), que não era flor que se cheirasse, se ganhasse o Savimbi, ficávamos não só debaixo da pata do Savimbi mas também da África do Sul, racista. Das três hipóteses viesse o diabo e escolhesse”.
O acordo de Alvor, composto por 60 artigos, acabou por ser suspenso temporariamente três meses antes da independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, pelo então presidente da República, Francisco da Costa Gomes, que invocou a sua violação constante.
De Alvor, os líderes dos três movimentos de libertação – Agostinho Neto, pelo MPLA, Jonas Savimbi pela UNITA e Holden Roberto pela FNLA – levaram pelo menos a garantia de serem “únicos e legítimos representantes do povo angolano” No seu discurso, após a assinatura do acordo de Alvor, que considerou de “transcendental importância”, o presidente Costa Gomes deixou aos dirigentes dos três movimentos o desafio de encontrarem “soluções angolanas autênticas, baseadas na capacidade de diálogo, no espírito de cooperação e na boa vontade de servir” o país, apesar das “diferenças sociais, filosóficas e políticas”.
Prevaleceram as diferenças e foi abandonado o diálogo. O resultado foi mais 27 anos de guerra, desta vez civil, num país que Costa Gomes qualificou na altura como dos “mais florescentes do continente africano”.
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