quarta-feira, 16 de maio de 2012

Portugal, os Estados Unidos e a Guerra Angolana

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António Monteiro, Embaixador. 


Comunicação apresentada na conferência internacional Portugal, a Europa e os Estados Unidos, Lisboa, Outubro de 2003

03 | Outubro | 2003

1. Rupturas

Novembro de 1975. O Boeing 747 da "Ibéria" ultimava os preparativos para levantar voo de Kinshasa. De repente, apercebi-me de que havia agitação junto à porta que a tripulação do avião se preparava para fechar. Pouco depois, o comandante do avião aproximou-se de mim. Disse-me que as autoridades locais pediam que eu abandonasse definitivamente o avião. Em tom firme, acrescentou que só o faria se quisesse. Olhei para a minha mulher e para a minha filha e ponderei a resposta. Decidi pela positiva, com a condição de elas também ficarem, bem como toda a nossa bagagem, que incluía o próprio carro! À saída, um funcionário zairense que conhecia vagamente limitou-se a esclarecer que eram ordens do Presidente, acabado de chegar do Gabão. Pensei então, como agora, que para a decisão do Presidente Mobutu contribuíra fortemente o parecer da Embaixada americana. 

72 horas antes, recebera das mãos do Ministro dos Negócios Estrangeiros do Zaire uma curta comunicação, cortando relações diplomáticas com Portugal. A razão foi-me apenas comunicada verbalmente: as autoridades portuguesas tinham acabado de abandonar Angola e, nesse próprio dia, 11 de Novembro, o MPLA proclamava em Luanda a independência do país. Em vão procurei chamar o Ministro à razão e fazer-lhe ver que se tratava de uma reacção emocional, sobretudo prejudicial para o Zaire e para os angolanos, além de dar um sinal errado para África: Portugal era "punido" quando concluía o ciclo das independências das suas antigas possessões no continente, tanto tempo exigido pela comunidade internacional. Em conformidade com os Acordos do Alvor, Portugal saíra de Angola entregando a soberania ao povo angolano. Não houvera uma transferência de poderes para o MLPA, nem um reconhecimento de qualquer Governo angolano. Bula Mandungu não se demoveu, bloqueado na tese do conluio de forças portuguesas com o MPLA visando a derrota dos dois outros "movimentos de libertação" reconhecidos pela OUA, a FNLA e a UNITA. Saí do seu Gabinete com a nota que determinava também o meu abandono do país, onde, desde 1971, desempenhava funções diplomáticas sob diferentes chapéus. No mesmo dia, os Embaixadores de Cuba e da União Soviética conheciam destino idêntico ao do Encarregado de Negócios de Portugal...

O prazo de três dias que me fora dado decorreu num ápice. A primeira preocupação foi assegurar a defesa dos interesses portugueses, que ficou a cargo do Canadá. As consultas para a escolha deste país e as negociações triangulares com o Zaire nesta matéria ocuparam a maior parte do tempo disponível. O resto foi dedicado à organização da transferência para Lisboa de tudo o que não pudesse ficar em Kinshasa ou ser destruído e aos problemas relacionados com o destino dos restantes funcionários da Embaixada. Por isso, apenas tive discussões mais aprofundadas sobre o assunto com amigos da Embaixada americana. Discordavam da decisão tomada e pareciam surpreendidos com ela. Interrogavam-se, sobretudo, sobre se o Presidente tivera tempo de ponderar a situação, antes de se ausentar do país.
Poucos dias depois da cena imprevista no aeroporto de N’djili - e depois de regularizada de novo a situação na Embaixada, com a substituição da bandeira canadiana pela portuguesa - parti para Lisboa, chamado em serviço. A guerra em Angola estava no auge e começavam a chegar a Kinshasa notícias alarmantes sobre a debandada militar das forças da FLNA, e seus apoiantes, do norte de Angola. Em Lisboa, encontrei o ambiente político e social tenso e preocupante dos dias que antecederam o 25 de Novembro.

Menos de seis meses antes, fora já expulso de Kinshasa. Em Maio, o mesmo Ministro dera-me 24 horas para abandonar o país, na sequência de uma entrevista dada pelo ex-Alto Comissário para Angola, Almirante Rosa Coutinho, considerada pelo Governo zairense como insultuosa para com o seu Presidente. Voltara, contudo, ao meu posto, três semanas depois, conforme acordado num encontro entre os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países (Melo Antunes, do lado português). Dessa vez, creio, não houve qualquer intervenção americana, até porque o meu regresso coincidiu com a expulsão do Embaixador americano, acusado de dirigir uma conspiração da CIA visando o derrube do regime do General Mobutu... Esse foi então o ponto mais baixo das relações entre os dois países, tradicionalmente aliados. Culminou um ano de tensão provocado por uma excessiva aproximação do Zaire à China (apesar de se enquadrar na via de abertura de Nixon a Pequim) e, sobretudo, pelo corte de relações com Israel, decisão tomada por Kinshasa na sequência da guerra de Outubro de 1973. Mobutu procurava afirmar a sua estatura política "independente" em África e no Mundo (a "doutrina da autenticidade", simbolizada na alteração do nome do país de Congo para Zaire) e captar apoios financeiros árabes, bem necessários face à queda do preço do cobre e ao desastre económico da "zairinização" decretada em Novembro de 1973.
A evolução dos acontecimentos em Angola obrigou, rapidamente, à reposição da normalidade das relações entre Washington e Kinshasa. O reforço do poderio militar do MPLA, intensificado a partir dos Acordos do Alvor graças ao apoio soviético, traduzira-se na expulsão de Luanda da FNLA e da UNITA (Julho de 1975). O golpe foi sobretudo duro para Holden Roberto que até aí confiava na superioridade militar do seu movimento, apoiado pelo Zaire e por forças dissidentes do MPLA. A UNITA jogara sempre numa outra perspectiva: a das eleições prometidas pelo Alvor, que esperava possibilitassem à sua base de apoio ovimbundu conceder-lhe uma significativa fatia do poder, que a sua componente militar estava longe de poder assegurar-lhe. O resultado da luta em Luanda, porém, liquidou na prática a esperança eleitoral e a execução do acordado no Algarve. O Governo quadripartido de transição esboroou-se e Portugal era, na realidade, uma mera potência administrante formal, incapaz de gerir a cada vez mais acentuada internacionalização do conflito. É preciso não esquecer que a prioridade em Portugal foi, ao longo de 1975, assegurar a própria existência de um regime democrático no país... 

A importância do controlo exclusivo da capital de Angola pelo MPLA, a poucos meses da data acordada para a independência do território, levou a Administração Ford a aumentar substancialmente a ajuda "encoberta" à FNLA. Começou igualmente, embora em menor escala, a conceder apoio financeiro à UNITA. Kinshasa era o centro das operações e o Zaire instrumental para o êxito de uma estratégia que visava declaradamente conter o avanço comunista na África Austral. Havia também interesses económicos directos ou indirectos para ambos os países em Cabinda, onde a "Cabinda Gulf" detinha a exploração do petróleo.



    CONTINUA....

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