sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

História de Angola: AS COLÓNIAS DO NAMIBE

AS COLÓNIAS DO NAMIBE
Anuário da Origem Abolicionista
da Colonização do Sul de Angola


Compilado por Júlio Alves Victor
*
em Luanda, aos 3 de Março de 2004.




Dissertações sobre a actual cidade do Namibe tendem a vestir-se de apenas duas roupagens: a épico-bairrista e a bucólico-naturalista, referindo com maior ou menor pormenor, respectivamente as afanosas idas e vindas de primeiros colonos e pescadores, ou o ‘potencial’ turístico da welwitschia e o deambular das cabras-de-leque. Pouco se lê sobre o elo entre a cidade e a maior transformação sócio-económica da História moderna, a criminalização do comércio em mão-de-obra escrava – o tráfico – e os papéis que muitas figuras associadas com a cidade desempenharam nesse longo drama. Sem entrar em pormenores sobre a origem e necessidade económica do tráfico, merece a pena conferir algumas datas na larga periferia temporal da localidade do sul de Angola: o sítio tem raízes compridas e espêssas, alimentadas durante séculos pelo enriquecimento das Américas.

Não tanto as razões humanitárias, de há muito expressas pelas nações europeias – especialmente aquelas cujas economias não dependiam do trabalho braçal em escalas industriais – mas a influência da máquina-a-vapor inglesa sobre o Brasil independente, tornou possível a libertação de todos os escravos daquele país em 1826. A medida causaria na Angola do século dezanove sérios problemas administrativos – derivados da despesa com a prevenção do tráfico ilícito e dos resultados da ociosidade e potencial criminalidade dos libertos desempregados – se a legislação portuguesa tivesse contemplado o caso de uma dívida do Estado para com os senhores e mercadores angolanos. É duvidoso que o problema pudesse resolver-se, mesmo se os governos Liberais que promoveram a Abolição fossem perenemente fortes; assim, merece todo o crédito a orientação política, tão judiciosa quanto o permitiam os preconceitos da época e a conversão lenta da cultura económica colonial, que veio a ser adoptada e passou pela criação de um foco de dispersão de uma economia moderna a partir do antigo porto do barão de Moçâmedes, no sul de Angola.

É ali, à beira do deserto do Namib,
1 que as convicções abolicionistas de um outro barão, o de Sá da Bandeira, tomam corpo num projecto de colonização em cuja cronologia se esboçam a coincidência e o contraste, ocorrem situações extraordinárias e aparecem tipos humanos como os que coloriram a literatura da época Romântica, a que pertenceu, curiosamente, a Abolição.
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1. Namib – ‘Terra sem água’ nos dialectos Nama, nome genérico de povos do grupo étnico Khoi (versão inglesa do nome de uma das tribos a sul do Cunene, os Gai //khaun), ou ‘hotentotes’.
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Natural de Moçâmedes, hoje Namibe, Angola. Amigo e colega no Helderberg College, África do Sul, nos anos 60. Depois de terminar os estudos universitários, em Geologia, fixou residência naquele país.
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1. Datas da Ascendência Internacional da Abolição




1.1. O início do tráfico, comércio legal institucionalizado de escravaria


1493 – A colonização de São Tomé inicia-se por a cultura da cana em Cabo Verde nunca ter pegado, dada a fraca pluviosidade do arquipélago; para tanto, D. João II decreta que as escravas negras – maioritariamente da costa africana entre a ilha de Fernando Pó e a foz do rio Zaire – que dêm filhos aos colonos do arquipélago, sejam libertas e os filhos nasçam livres. Algumas centenas de almas continuaram a ir, cada ano, da costa da ‘guiné’ – o antigo reino de Ghana – para o Reino, em parte para venda a Castela.


1495 – No ano da morte do seu grande rival D. João II, a rainha Isabel, a Católica, de Espanha decreta a proibição do tráfico de índios nas colónias espanholas do Novo Mundo, valendo-se do comércio particular dos armadores internacionais que, sob o rei D. Manuel I, passaram a poder comprar mão-de-obra à alfândega real portuguesa em Santiago de Cabo Verde: eram escravos, na sua maior parte, idos da Guiné, mas também do porto conguês de Mpinda.


1502 – Logo na primeira viagem de colonização após o manifesto de descobrimento do Brasil se transportaram para o Brasil alguns escravos da Guiné. Ficou assim patente aos feitores espanhóis das ilhas do mar das Caraíbas, que uma “máquina” negra produzia quatro vezes mais trabalho que uma ameríndia. Isto facilitou a luta dos missionários contra o verdadeiro genocídio – geralmente involuntário, devido à ausência de imunidades entre os autóctones – que viam desenrolar-se entre as populações índias durante os primeiros vinte anos da colonização espanhola.


1514 – O antigo advogado e colono, e recentemente padre domínico, Bartolomeu de Las Casas, entrega os seus escravos ao governador de Cuba e transforma-se no mais acérrimo pregador contra os excessos dos encomenderos sobre os autóctones das Américas, advogando a ideia de utilizarem-se escravos negros, em vez de ameríndios, nas colónias espanholas.


1516 – O resgate da Guiné torna possível a intervenção oficial da coroa espanhola: neste ano em que o chefe do Santo Império Romano acede aos tronos de Castela e Aragão por morte do viúvo da rainha Católica, os escravos africanos passam ser importados directamente pelo imperador Carlos V, por contrato real – assiento – com o rei de Portugal, D. Manuel I, devendo o tráfico ser autorizado pelas autoridades de Santiago de Cabo Verde e os direitos da Coroa espanhola fiscalizados por Portugal: o resgate no Congo é vedado aos santomenses e o tráfico do Congo canalizado para a alfândega de Santiago.




1.2. O sul do ‘reino de Angola’ e o germe do movimento abolicionista


1601 – Concluídas as obras do presídio da Muxima, o capitão-geral de Angola, João Furtado de Mendonça, decide iniciar a ‘ocupação efectiva’ do país a sul do rio Cuvo no ano seguinte, enviando uma pequena frota a explorar e comerciar nas baías da costa de Benguela.


1602 – É um contingente da força enviada pelo governador Mendonça que sobe o rio Cuvo e transporta um quilombo de jagas, em batéis, para a margem sul do rio, onde os célebres guerreiros se dedicam quase que imediatamente à sua ocupação favorita: fazer escravos para venda aos mercadores da costa. Com a força seguia um ex-corsário escocês chamado André Battell – aprisionado em águas brasileiras e oferecido ao governador Mendonça como criado – que é deixado com o regimento imbangala, segundo o próprio, e bastante improvavelmente, como refém: ao fim de um ano de permanência com os temíveis canibais, Battel é entregue são e salvo no presídio de Cambambe, vindo a escrever na Inglaterra as suas memórias da aventura.


1605 – Neste ano da ‘conspiração da pólvora’ – o atentado católico contra o Parlamento inglês – o rei Tiago de Inglaterra (James I), resolve reconciliar as facções religiosas do país por meio de uma nova tradução da Bíblia, e é a John Layfield, colono na América retornado à pátria, que os editores reais confiam a tradução do Livro do Génese da famosa edição dos textos sagrados: o pastor protestante descreve o Paraíso à semelhança das Caraíbas, onde eram então evidentes os efeitos desastrosos da economia colonial da potência contemporânea mais forte do Mundo, a católica Espanha, sobre as populações ameríndias.

1615 – Com a autonomização do governo do reino de Benguela, por provisão de 14.02 de Filipe II, abre-se um novo porto comercial na costa a sul do rio Zaire, depois do de Luanda e dos vários do rio Cuanza. A opinião internacional sobre a escravatura não é, porém, o que fora em fins do século XV e o antigo governador da administração espanhola de Angola – o mesmo Capitão-general que demonstrara não haver prata em Cambambe – é nomeado donatário do Reino de Benguela, que parece ter fama de conter minas de cobre, minério de que, de resto, a Espanha não carece.

1617 – O antigo capitão-general, e agora donatário, Manuel Cerveira Pereira, lança ferro na baía da Torre a 17.05. A partir de então, diz-nos Cadornega, “este Reino de Benguella antes desta terra ser tomada pello Hollandez, teve sobre si governo separado, onde havia feituria e officiaes reaes, que davão despacho ás peças deste Reino, e assim despachadas vinhão para esta cidade de São Paulo da Assumpção, ficando naquelle Reino os direitos dellas, para a paga e sustento da infantaria, e mais ordinarias...” Benguela nunca se evidenciaria como porto exportador de cobre.

1627 – O capitão-mor Lopo Soares Lasso é nomeado governador de Benguela por morte de Cerveira Pereira no ano anterior, e quando o capitão-geral de Angola, Fernão de Sousa (1624-1630), c. 1626, pensa em encerrar o presídio – de onde não só nunca se exportara cobre mas onde poucos escravos se resgatavam – Lasso opôs-se. Terá sido na subsequente tentativa de estabelecer relações comerciais com os chefes tribais do planalto de Benguela que o capitão-mor descobriu a verdadeira vocação do presídio de S. Filipe: dar acesso aos territórios entre o rio Coporolo e o cabo da Boa Esperança, que todos então eram considerados parte do ‘reino de Angola’. Lasso funda Caconda-a-Velha e terá estabelecido, provavelmente ainda antes do fim do mandato do Capitão-general em 1630, os primeiros contactos com o soba ‘Hila’
1 , cuja gente vinha até o Lobito 2 à troca do sal; em 1639, ao pretender comerciar na margem esquerda do rio Cunene, pereceu com toda a sua tropa numa emboscada perto de Caconda.

1664 – André Vidal de Negreiros, um dos principais comandantes da resistência portuguesa contra a ocupação holandesa do Brasil, e capitão-general de Angola (1661-1666), com grandes interesses no fornecimento de mão-de-obra africana à agricultura das colónias do nordeste daquele país, envia em Outubro deste ano um ‘homem prático’ no patacho Nossa Senhora da Nazaré à descoberta da foz do rio Cunene: o explorador identifica-se numa inscrição na falésia que limita a angra do Negro pelo sul: “José da Rosa em 1665”; a viagem prendia-se com a possibilidade de o Cunene – nome banto que significa ‘grande’ e sugerira extensa navegabilidade a Lopo Soares Lasso, o primeiro europeu a ver o rio – se aproximar do rio Zambeze e poder assim dar acesso, mediante portagem até este outro rio, à costa de Moçambique. Rosa, não encontrando a foz do rio, encontrou contudo o estranho gentio daquela paragem, que, relata-o Cadornega, o capitão “resolveu trazer... que se não entendia nada do que fallava; e a falla como de estrallo, gente como selvagem, que bem o demostravão assim em comerem a carne, o peixe, e milho cru, e por acenos só se entendia delles alguma couza, os quaes se mandarão pôr outra vez em suas terras, à custa de quem os trouxe, sem os haver comprado, nem resgatado...” Desconhece-se se o Rosa de facto voltou à custa do sul de Angola com os pobres diabos.
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1.
Nha.Hum. yila, ‘veia’, ‘vida’, por onde o’yila e ‘Oíla’, claramente sem ‘h’ aspirado, dos escritores portugueses coevos.

2. Umb. o’lupito, a ‘porta’ por entrava o mar, entre a cuspe arenosa e a costa que caracteriza o lugar.


1.3. As raizes do movimento abolicionista

1670 – Publicação de Christian Directory, em que o pregador Robert Baxter, daqueles Protestantes que nem com o anglicanismo se conformavam – por isso o epíteto de ‘inconformista’ que lhes davam – ataca vigorosamente a escravatura.

1680 – Outra obra crítica da prática da escravatura é a do clérigo anglicano Morgan Goodwin, que retrata em 1680 os horrores do tratamento dos escravos na colónia britânica de Barbados.

1688-1690 – Na novela Oroonoko (1688) o escritor Aphra Behn descreve o tráfico nas Antilhas britânicas; o Tratado Sobre o Governo Civil (1690), do filósofo escocês John Locke, condena a escravatura.

1700 – Na França, o nobre Carlos Luís de Secondat, barão de La Brède e respeitadíssimo marquês de Montesquieu, pondera no seu Espírito das Leis, que “a escravatura é tão contrária à lei civil como está em oposição à lei natural: que espécie de estado civil poderia impedir um escravo de fugir?” O célebre jurista havia passado um tempo na Inglaterra e sem dúvida mantinha contactos com anti-esclavagistas ingleses.

1766 – Os devotos e circunspectos agricultores da feitoria independente da Pensilvânia libertam todos os seus escravos: pouco depois começam a aparecer grupos abolicionistas na Europa.

1772 – Os colonos da Virgínia debalde peticionam à Coroa britânica a libertação dos seus escravos: é tristemente irónico que os seus descendentes viessem a ser, menos de cem anos mais tarde e quando já americanos independentes, o esteio da política esclavagista dos estados meridionais da América do norte.

1778 – Um pedido dos comerciantes de Bristol e Liverpool – chocados com o mau nome que o transbordo dos escravos para as Antilhas dava aos dois grandes portos ingleses – para que Coroa proibisse as escalas nas Ilhas britânicas do descomunal tráfico da Slave Coast
1 , é indeferido pelo governo.



2. O Abolicionismo



2.1. Moçâmedes
1784 – A resistência dos colonos norte americanos de Jorge Washington sobre o exército expedicionário inglês tem um desfecho inesperado a norte da foz do rio Zaire: numa pausa nas operações contra a marinha britânica, uma frota francesa sob o comando do almirante Bernado de Marigny vem a Molembo – hoje Cabinda – e bombardeia o forte que o Capitão-general de Angola ali mandara o major de engenharia Furtado construir.


1785 – Em consequência do bombardeamento do forte de Molembo, o Capitão-general, receoso de que os Franceses planeassem apoderar-se da rota atlântica do Brasil – que, sob os ventos predominantes, trazia os veleiros directamente à angra do cabo Negro, assim chamado por Diogo Cão – dá ao major Luis Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado o comando de uma expedição por mar e terra à estratégica angra, onde tencionaria fundar um presídio. O major, a quem o capitão-mor de Benguela não parece ter dado o auxílio que devia, beneficia porém do apoio do abastado comerciante e sertanejo da vila, Gregório José Mendes, habilmente aliciado pelo Capitão-general, e os dois levam a bom termo uma das expedições mais interessantes da história ultramarina portuguesa: Furtado por mar, a remos, em grande parte do reconhecimento pormenorisado da costa, e Mendes a pé, com cerca de mil empregados seus, através das terras áriadas a norte do deserto do Namib. Reúnem-se os dois comandantes a 03.08 na angra, que Furtado crisma com o nome de Moçâmedes – uma vila do distrito de Viseu, Portugal, de que o Capitão-general era barão – mais mnemónico que o nome próprio do precavido governador, D. José de Almeida e Vasconcelos Soveral de Carvalho da Maia Soares de Albergaria.
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1. Slave Coast – A ‘Costa dos Escravos’, no Golfo da Guiné, contestada pelos Franceses e Ingleses aos Portugueses antes do tráfico se enraizar no Congo.
 
2.2. A oposição militante ao tráfico


1786 – Neste ano em que só as colónias britânicas no Atlântico importam 38.000 almas – seguia-se-lhe o Brasil com umas 14.000 pessoas por ano – o pastor inglês James Clarkson publica a primeira “sondagem” moderna sobre o tráfico: o Ensaio sobre a Escravidão e Comércio da Espécie Humana, baseado nos depoimentos de muitas testemunhas contemporâneas. Nenhum filósofo contemporâneo – para não dizer empresário – saberia nesse ano que outra fonte de energia usar para inverter o aumento no tráfico, dada a necessidade de mão-de-obra para as minas e plantações americanas; e no entanto, neste mesmo ano o vapor faz funcionar um moinho na Inglaterra. Já noventa anos antes Montesquieu, ao definir como coisas “intrinsecamente más” na sociedade humana, “a intolerância, o despotismo e a escravatura”, profetizara que a máquina substituiria o escravo.


1788 – Figuras importantes de Paris juntam-se para exigir à Coroa a abolição imediata da escravatura: o presidente da Sociedade dos Amigos dos Negros é o matemático, membro da Academia das Ciências e inspector geral da Casa da Moeda, João António Nicolau Caritat, marquês de Condorcet.


1789 – No ano da Revolução francesa, Condorcet é secretário da Assembleia Legislativa revolucionária: tenta obliterar algumas coisas “intrinsecamente más” que iam pelo mundo, conseguindo que a Assembleia adopte algo que havia redigido: a Declaração dos Direitos do Homem.


1790 – A Assembleia constituinte ainda não está decidida quanto à legislação competente à Declaração, excepto num aspecto: pelo decreto de 08.03 os direitos definem-se só para os habitantes da França, não os das colónias essencialmente agrárias, muito menos à população escrava.


1794 – A esquerda revolucionária toma poderes ditatoriais e passa a Lei abolicionista. Logo se nota, porém, que existe apenas em teoria e as medidas que se tomam contra o tráfico são tímidas: no Haiti são contestadas pela própria administração colonial e na ilha de Reunião são mesmo repudiadas.


1798 – Os princípios contidos nos Direitos são adoptados no Código de Escravidão das colónias espanholas e as melhorias assim introduzidas no tráfico nas Antilhas são logo exigidas pela mão-de-obra das plantações francesas e britânicas.


1799 – No Haiti, que já cem anos antes era uma das possessões coloniais mais ricas do mundo, havia nas vésperas da Revolução francesa uma população de 42.500 brancos, 27.500 libertos mulâtre e 450.000 escravos negros; mas a nova Constituição francesa, promulgada em Paris em 25.12.1799 com o apoio do competentíssimo general corso Buonaparte, não menciona egalité e fraternité, nem liberté, nem se refere aos Direitos.


1800 – O plebiscito de Fevereiro de 1800 aprova a Constituição napoleónica – por três milhões de votos contra mil e quinhentos – e, com ela, o governo militar que vem restabelecer a boa ordem na França e a legalidade da escravatura: o general Bonaparte refere-se a esta como o estatuto “sob o qual as colónias tinham atingido a prosperidade.” A mão-de-obra escrava mantém-se como elemento importante da economia francesa, dependente então da produção de açúcar e seus derivados no ultramar: e enquanto a França produzisse o açúcar que ajudava a manter os seu poderio naval, na Inglaterra a câmara dos Lordes não tinha o mínimo interesse na abolição advogada pelo orador Guilherme Wilberforce, deputado por Hull, o porto por onde se exportavam as máquinas a vapor que estavam a tornar famosa a indústria britânica. Outro deputado famoso, o mestiço Aléxandre Sabès Pètion que representara o Haiti na defunta Assembleia Nacional francesa, encontra-se na frota enviada por Bonaparte ao Haiti, sob o comando de seu cunhado o general Leclerc: o governador negro da ilha, Toussaint l’Ouverture, pensando que vai assinar um tratado de paz, é detido e embarcado para a França. Quando Bonaparte reinstitui a escravatura nas ilhas de Guadalupe e Martinica, Pètion, desiludido, incorpora-se na guerrilha de Jean-Jacques Dèssalines, outro caudilho haitiano negro que sucede a l’Ouverture.


1803 – L’Ouverture morre no cárcere em Paris. Entretanto no Haiti a guerrilha, a febre amarela e a Armada britânica cobram aos Franceses: Leclerc morre da febre em Novembro e pouco depois o general Rochambeau rende-se aos Ingleses.


1804 – Dèssalines nomeia-se governador geral do Haiti, declara a ilha independente, massacra todos os colonos que haviam ficado na ilha – naturais brancos que se consideravam benquistos dos negros – e trata brutalmente todos os que, entre estes, o opunham. Em Setembro proclama-se imperador, como Jacques I, e, já não sendo legal a escravatura mas apercebendo-se da vantagem continuar a produzir açucar para o mercado francês, institui o trabalho forçado.




2.3. Reacção na Europa


1805 – Na segunda-feira dia 21.10.1805 uma armada franco-espanhola de 33 navios que saía de Cádiz com rumo a Nápoles, onde Bonaparte necessitava de tropas para invadir a Áustria, é atacada e destruida ao largo do cabo Trafalgar; embora o mais jovem almirante britânico, Horácio Nelson, morra durante a famosa batalha, pelas 17 horas o poderio naval da França atinge o seu ocaso. Quando a Inglaterra proíbe imediatamente as nações neutras de comerciarem por mar com a França sem uma licença a obter nos portos ingleses, o imperador Bonaparte decreta um bloqueio geral dos portos europeus.


1806 – Encorajada pelo domínio britânico do mar das Caraíbas, a população mestiça de Port-au-Prince, encabeçada por Pètion, revolta-se e o imperador Jacques I morre ao tentar dominá-la. No lado sul da ilha Pètion alforria os escravos e persuade-os a que, em vez de cultivarem a cana, plantem café: é esta cultura livre e imecanizável, encorajada pelo comércio americano, que põe fim à economia ultramarina francesa.


1807 – Na Europa, a nação portuguesa encontra-se na difícil situação de aliada centenária da Inglaterra, com uma economia dominada por investimentos britânicos e sob um governo forçado a fingir que respeita o bloqueio francês; a 12.08 sabe-se da nota do embaixador francês, em que este exige, entre outras medidas, a declaração de guerra à Inglaterra. De facto o rei português chega a assinar os decretos respectivos entre Outubro e Novembro mas, mesmo assim, a Casa de Bragança é banida por decreto de Bonaparte e, na noite de 19.11, o general Junot invade Portugal com 25.000 soldados que vão saquear a vila de Castelo Branco. Dez dias depois a família real e muitos nobres deixam a praia da Ericeira rumo ao Brasil, sob escolta duma flotilha britânica. Com o domínio do comércio do Atlântico garantido pela presença do rei português D. João VI na América, os Lordes britânicos aprovam, finalmente, a proposta de Wilberforce: a abolição da escravatura em todos os domínios da coroa britânica.


1810 – O tratado de Aliança de 19.02.1810, negociado com a Grã-Bretanha pela corte do Rio de Janeiro, contém uma proposta de Abolição gradual em todos os territórios portugueses.


1811 – O governo britânico institui a pena de morte para os transportadores ingleses, agora conhecidos por ‘negreiros’.


1813 – A lei de 13.11 reduz à metade o tráfico de Angola, mas na prática os negreiros mantêm-no em alta.


2.4. Portugal e a Abolição


1815 – Pelo tratado de Viena de 22.01 a Coroa britânica renuncia à soberania que exercera desde 1795 sobre todos os ancoradouros de Angola além de 15º de latitude sul – toda a costa a sul da foz do rio Giraúl – que fizera da angra das Aldeias de Diogo Cão o porto Alexander dos Britânicos: a real armada britânica alijava a responsabilidade, agora injustificada, de manter os Franceses ao largo da costa do sul de Angola, mas continuava a poder apreender os transportes ilegais de escravos no Atlântico Sul.
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1817 – No Brasil eclode a revolução emancipalista do norte e o Capitão-general intervém, mas desagrada ao príncipe Regente.


1818 – A actuação das autoridades civis que o Regente inaugura é, porém, ainda pior que a do Capitão-general português, e D. Pedro concede aos revolucionários uma amnistia no dia da sua coroação, 06.02.


1820 – A primeira revolução Liberal portuguesa, assoprada por ventos de França, repercute no nordeste brasileiro, e a adesão popular ao movimento emancipalista em Pernambuco convence a Coroa de que a posição imperial é insustentável.


1822 – Enquanto entra a vigorar em Portugal uma constituição Liberal, baseada no princípio da ‘soberania do povo’, no Brasil, o príncipe regente D. Pedro usa o pretexto de uma votação desfavorável nas Cortes de Lisboa para declarar o território independente, e os mercadores brasileiros, por convenções assinadas imediatamente com a Grã Bretanha, obrigam-se a fornecer-se de escravos exclusivamente em Angola. A abolição no Brasil dá-se já como inevitável, e aos fornecedores angolanos resta a possibilidade de manter o tráfico com Havana, de onde, por sua vez, se fornecem os estados meridionais da União da América do norte: quando o governo brasileiro propõe a Luanda a independência de Angola, a maioria dos vereadores e outros representantes do povo ao senado da Câmara de Luanda – brasileiros e nativos – vota pela continuação do território africano sob a Coroa portuguesa.


1823 – Aparece no mercado a caldeira de Seguin, ou ‘de tubos’, que não explode como os modelos mais antigos: a mecanização apodera-se dos engenhos açucareiros do Brasil, a libertação total dos escravos é aprazada para 1826 impreterivelmente e, à medida que as empresas do ramo se adaptam à nova tecnologia, crescem as exportações da indústria do vapor inglesa.


1826 – No ano em que a Abolição se completa no Brasil, morre em Portugal o rei D. João VI e o seu filho, o imperador D. Pedro, aprova uma Carta constitucional que vem substituir a Constituição liberal de 1822: concede um pouco mais de soberania à Nobreza nacional em redor da coroa, e um pouco menos ao Povo. É trazida para o Reino por um Lorde inglês, e os ‘conservadores’ portugueses, entre eles nobres e militares antigos combatentes das Invasões francesas, aceitam-na.


1836 – A segunda revolução liberal portuguesa imita também um acontecimento parisiense: a subida ao poder em Julho de 1830 do popular Luís Phillipe, em cujo reinado se criminalizaram finalmente os ‘negreiros’ franceses. Estes, de resto, continuavam a visitar a costa africana entre o Molembo e o Ambriz, já que os governos ‘conservadores’ portugueses se haviam acomodado ao status-quo comercial que a escravatura implicava. A revolução estala quando, sob a crítica cerrada dos ‘liberais’ lisboetas, o governo autoriza uma força de setecentos fuzileiros navais britânicos a desembarcar sob pretexto de protegerem a soberana de dezasseis anos, D. Maria II, sobrinha do imperador do Brasil; aos nobres que apoiam a Constituição de D. Pedro impõe-se habilmente um soldado da mesma guerra civil que dera o trono à menina: é o tenente-coronel Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, que a Coroa vem depois a chamar para formar o segundo governo Liberal. É como chefe deste que o futuro marquês de Sá da Bandeira dá urgente atenção à questão do contrabando de escravos a sul do Molembo, decretando em 10.12 a Abolição da escravatura em todo o território português; porém, perante a realidade desta mono-indústria de Angola, Sá Nogueira propõe um antídoto: “Promovamos na África a colonização dos europeus, o desenvolvimento da sua indústria, o emprego dos seus capitais; e numa série de anos tiraremos os grandes resultados que outrora obtivemos das nossas colónias.” Em Luanda os exportadores clamam contra o primeiro ministro que assustara a jovem Rainha, neta do soberano a quem em 1822 o senado da Câmara jurara fidelidade em vez de se juntar ao Brasil, e em Lisboa cai o governo do tenente coronel. Neste ano o tráfico angolano é conduzido maioritariamente com Havana, por negreiros americanos e franceses que actuam entre a foz do rio Loge e a baía de Molembo: os Estados norte-americanos meridionais protegem o seu abastecimento de Havana, a Inglaterra não deve intervir, Portugal não pode, e portanto o risco de complicações internacionais aumenta.



2.5. Moçâmedes e a Abolição

1838 – A ‘colonização’ a que Sá Nogueira se referira tinha tudo a ver com a aclimatisação de comunidades portuguesas em África como unidades produtivas auto-suficientes – na tradição portuguesa do Brasil e inglesa na América do norte – e pouco com o conceito de grandes territórios ultramarinos anexados a uma potência europeia, ao jeito popularizado cinquenta anos mais tarde pelo rei Leopoldo dos Belgas; não devia, por isso, dar-se como o início daquilo que mais tarde se convencionou chamar ‘colonialismo’. Porém, toda a autoridade era então pouca para manter em Luanda o respeito pelo governo Liberal em Lisboa: o ministro Sá Nogueira, agora na pasta da Marinha e Ultramar, nomeia por isso António de Noronha Governador geral, em cujo posto o almirante se mantém aproximadamente um ano, governando Angola segundo o novo figurino, e não já como um capitão-general da antiga tradição ultramarina: é um governador geral com grande autoridade civil em representação da Coroa, à maneira britânica. Noronha dá o primeiro passo da nova política ultramarina portuguesa ordenando a restauração do antigo presídio de Caconda, em parte para demonstrar que existia já uma soberania europeia a sul de 13º latitude sul – desde a seca de 1829 que os hotentotes Orlam entravam a cavalo pela Huíla em busca de gado – e em parte para iniciar o projecto anti-esclavagista imaginado pelo ex-primeiro ministro.

1839 – O almirante Noronha escolhe para chefe da estação naval de Luanda o tenente da Armada Pedro Alexandrino da Cunha: já servia em Angola havia alguns anos, competindo-lhe vigiar os ‘negreiros’ entre Molembo e Luanda, e por isso conhecia bem o envolvimento da praça da capital no contrabando de escravos. Sá Nogueira autoriza uma expedição do tenente ao sul de Benguela, nos moldes da de Furtado e Mendes em 1785: na costa sul de Angola os contrabandistas não tinham ancoradouros, portanto o governador geral terá pensando em radicar ali uma agricultura local, que ocupasse a população escrava e servisse de exemplo ao norte, visto ser impossível ao tesouro do Reino indemnizar os senhores. Por terra, de Benguela a Quilengues – a antiga Caconda – e de aqui à Huila e ao Jau, marcha o comandante daquele presídio, o tenente de artilharia José Francisco Garcia. Pedro Alexandrino comanda, já como capitão-tenente, a corveta Isabel Maria, acompanhando-o o comerciante António Joaquim Guimarães, encarregado de escolher um ponto para estabelecer indústrias de charqueação e curtumes no porto de Moçâmedes, com promessa de ajuda do governo. De caminho, Cunha dá o nome do governador geral à ponta sul da baía de Moçâmedes.

1840 – O tenente Garcia, escolhido para chefiar o novo estabelecimento, vem a bordo do brigue Raimundo I, aprisionado a 19.02 por um navio da Armada britânica que o confunde com um negreiro; quando chega à baía, na corveta Isabel Maria do comando do capitão-tenente Cunha, já ali se encontravam, não só Guimarães, mas também os empresários de Benguela, Jácome Filipe Torres, Manuel Joaquim Teixeira e João Gonçalves Pinto. Finalmente, no dia 13.08 há uma tenda de campanha na praia da baía de Moçâmedes, em que estão presentes os comerciantes, os dois oficiais, e os sobas de Mussungo, Giraúl, Quietena e Jáu: vão estes assinar um acordo com os portugueses, que vêm ali instalar-se para abrir comércio com eles e construir uma fortaleza “que a todos protegesse das frequentes correrias do gentio...” do ‘nano’
1 , segundo a acta respectiva, 2 assinada por todos os presentes. Fundava-se o presídio de Moçâmedes e, acto contínuo, delimitam-se feitorias nas margens do rio das Mortes, o Mbwelo (‘o de baixo’) dos nativos.

1841 – A portaria de 31.08. determina a construção de um forte na extremidade norte da falésia da baía do porto de Moçâmedes, a que o tenente Garcia, seu construtor inicial, dá por patrono S. Fernado, o santo homónimo do príncipe que D. Maria II desposara cinco anos antes, Fernando de Saxe-Coburgo Gotha.
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1.
Nano – A raiz de o’nanu, ‘cimo’, va nanu, ‘povo de cima’, munanu, ‘um de lá de cima’; referência aos bandos de guerreiros de origem ovimbunda que assolavam os pastores do planalto de Moçâmedes – hoje ‘da Huíla’ – com golpes-de-mão para apresamento de gado destinado em parte ao comércio de Benguela. 2. Esta acta foi publicada no Jornal de Moçâmedes de 8 de Março de 1882.

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1842 – As obras da fortaleza estão suficientemente avançadas para que o estabelecimento agrário do porto de moçâmedes se classifique como presídio, visitado então pelo governador geral José Xavier Bressane Leite (1842-1843).

1844 – O governo Liberal concede distinções aos colonos do norte de Angola que se sobressaiam na agricultura, como o cafeicultor do Cazengo agraciado nesse ano com o Hábito de Nossa Senhora de Vila Viçosa; seria, porém, evidente em Lisboa que fundir grilhetas em enxadas tão perto do reino do Congo seria obra demorada.

1845 – No ano em que o ministro da Marinha, o persistente coronel Sá Nogueira, agora barão de Sá da Bandeira, decide nomear dois governadores para África, especialmente escolhidos para executarem o decreto de 1836, em Angola não há ninguém mais credenciado para o cargo que o chefe da Estação Naval: Pedro Alexandrino é promovido a capitão-de-fragata e simultaneamente empossado em 31.05, e envia imediatamente o antigo companheiro de exploração, o tenente Garcia, para o planalto de Moçâmedes – hoje ‘da Huíla’ – para iniciar outra colónia, substituido-o interinamente na costa António Joaquim de Freitas. O novo governador geral (1845-1848) dá, assim, o primeiro passo do projecto do capitão-general pombalino, D. Francisco Inocêncio da Sousa Coutinho, de construir uma linha de presídios entre a costa e o rio Zambeze.

1846 – O tenente da Armada, Francisco António Correia, é nomeado chefe do presídio de Moçâmedes. A 06.10, a rainha D. Maria II chama ao paço o Primeiro ministro, Duque de Palmela e, zangada, demite-o: ostensivamente, porque Sá Nogueira, novo ministro da Guerra, também demitira e transferira numerosos oficiais de tendências conservadoras. É menos claro, mas plausível, que se tenham movido influências de Luanda, já que dos implicados no contrabando de escravos pelas rusgas navais ordenadas pelo governador geral Pedro Alexandrino, um é o director das alfândegas de Angola, irmão do juiz presidente de Luanda, que 18 meses antes se perfilara no cais da Alfândega do irmão para saudar o novo Governador geral.

1847 – Quase exactamente doze meses depois da queda do governo de Palmela, e depois de perder duas batalhas, Sá Nogueira tem que aceitar um armistício proposto por um oficial inglês enviado pelo lado ‘conservador’. No porto de Moçâmedes o conde de Bonfim, ali desterrado por actividades a favor dos Cartistas em Portugal, tenta um levantamento e é deportado, tentando contudo evadir-se da escuna Conselho. No Brasil explode em Dezembro a revolução Praieira: o ‘Nativismo’
1 que, desde a vitória do movimento Liberal brasileiro em 1844, alimentara a “extrema esquerda” brasileira, reacende o antigo antagonismo entre as duas comunidades, “nativa” e portuguesa, do Nordeste. Sob o caudilho conservador português Costa Cabral – o primeiro Ministro favorecido na corte de D. Maria II – assiste-se ao espectáculo, em Angola e Lisboa, de um governador-geral de Angola ser levado a juízo por impor leis incómodas a alguns homens influentes de Luanda.



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1.
Este sentimento brasileiro radicava-se na rivalidade seiscentista entre a classe “nativa” de ricos agricultores e donos de engenho de Olinda, e os imigrantes portugueses – “marinheiros” – da vizinha cidade de Recife, na maior parte comerciantes que não dependiam directamente da escravatura para sobreviverem, pois tinham um modus vivendi comercial com a Companhia das Índias Ocidentais holandesa; esta dominava o tráfico e competia com Olinda, ao ponto de a destruir quando teve que abandonar o Brasil durante a restauração do domínio português em 1654. Foi após o desaparecimento da administração holandesa que se fizeram as grandes fortunas dos senhores-de-engenho brasileiros da região de Olinda e se inventou a nova alcunha de “mascates”, dada aos comerciantes de origem portuguesa radicados no porto do Recife. Os “nativos” chegaram ao extremo de invadirem o Recife em 1710 com um exército de 20.000 homens, financiado pelos agricultores, e colocarem um ‘governo’ exclusivamente de autóctones no município, cujos privilégios só lhe foram restaurados pelo novo governador nomeado por Lisboa: por fim, em 1716, a capitania foi comprada pela Coroa portuguesa ao então proprietário, o conde de Vimieiro. Mas nada disso impediu que em 1817 os caudilhos do estado da Baía tentassem fundar como os vizinhos Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte uma ‘Confederação do Equador’, independente e republicana, e em 1820 afigurava-se aos nordestinos uma incongruência que a economia do território enorme do Brasil, em crescimento praticamente independente sob o investimento britânico, devesse obedecer ao governo de um diminuto reino europeu do outro lado de um oceano.
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1848 – Em Fevereiro a influência conservadora da monarquia francesa está inteiramente defunta: quando mais uma revolução Liberal inicia em Paris a 2ª República Francesa, em Lisboa é rapidamente nomeada uma comissão parlamentar e elaborado um decreto de abolição que se aplica a todo o Ultramar entre Maio e Agosto. Neste ano em que o Governador geral Pedro Alexandrino da Cunha é exonerado – o processo que lhe fora movido pelo comerciante de Luanda não chegara a tribunal – a compra de escravos de Molembo e Ambriz era, finalmente, criminalizada. Paradoxalmente, é então que, no Brasil, a meados do ano, o terrorismo contra a comunidade portuguesa no Nordeste é tal – gritava-se “mata que é ‘marinheiro’” – que um obscuro professor português de liceu, tão apegado à causa absolutista de D. Miguel que se exilara voluntariamente em Pernambuco, decide-se a escrever ao maior Liberal de Portugal pedindo-lhe asilo para si e outros Portugueses “nas Áfricas ou na Índia”: a petição de Bernardino Freire de Abreu e Castro vem directamente ao encontro dos planos do chefe da Repartição de Angola do Conselho Ultramarino, o extraordinário combatente Liberal, tipógrafo, médico da Armada e historiador, Simão José da Luz Soriano: sacode a poeira ao relatório de Pinheiro Furtado, escrito 63 anos antes, e apresenta ao ministro da Marinha, o indestrutível Sá Nogueira – por agora visconde de Sá da Bandeira – a ideia de colocar o professor Absolutista e os seus seguidores numa das “Áfricas”, a do porto de Moçâmedes. O financiamento do transporte de cento e setenta emigrantes, e dois engenhos de açúcar, é prontamente arranjado, mas entretanto os agricultores do vale do rio das Mortes sofrem o primeiro ataque do gentio do Nano, cujos chefes linhageiros eram antigos beneficiários do tráfico: é uma acção que vai repetir-se, somando-se os seus efeitos psicoógicos aos dos outro grande problema administrativo ainda por resolver: o destino a dar à escravaria de Angola.




2.6. As colónias de Moçâmedes


1849 – A última etapa da Abolição passa a decorrer da acção colonial desenvolvida a partir do presídio de Moçâmedes pelo Ministério da Marinha e Ultramar, habilmente aconselhado pelo autodidacta Luz Soriano. O major do Exército Ferreira da Horta é nomeado por portaria de 30.03 para planificar o estabelecimento da colónia que se prepara em Pernambuco, e o decreto de 19.04 nomeia o tenente da Armada António Sérgio de Sousa primeiro governador do novo distrito, talhado do de Benguela e que inclui parte da actual Huila. Os colonos sob a chefia do austero e conservador Abreu e Castro tomam o seu lugar na barca Tentativa Feliz que, escoltada pelo brigue Douro, vai fazer um travessia extraordinariamente lenta, de mais de dois meses, nas calmarias do Atlântico sul: são pessoas de ambos os sexos e todas as idades, empregados do comércio, operários, algumas com as suas famílias – todas “marinheiros” das cidades do Nordeste – por quem o governador geral Adrião da Silveira Pinto espera em vão na baía do Namib, regressando a Luanda por necessidade de serviço. A colónia aporta afinal a 04.08.


1850 – Aporta a Moçâmedes na barca Bracharense mais um grupo de refugiados do Nordeste brasileiro: o Governo português não financiara esta ‘segunda colónia’ mas o desejo de vir para as Áfricas ou as Índias, na expressão de Abreu e Castro, era tal que o fizera ela própria por colecta em Pernambuco; nesse ano a seca e a inexperiência conjugam-se para reduzir muitos membros das duas ‘colónias’ do Namib à indigência; de Luanda vem o generoso auxílio que permite a uns sobreviverem durante o ano e a outros emigrarem para Benguela e a Huíla; os dois engenhos da ‘primeira colónia’ e o da ‘segunda’ são montados e a seu tempo funcionam, empregando a mão-de-obra que abunda ainda em Benguela. Pedro Alexandrino da Cunha toma posse em 29.05 como governador de Macau.


1851 – Com a fundação da alfândega de Moçâmdes, exporta-se o primeiro açucar. O governador de Macau é encontrado morto em 06.07: assassinado, aparentemente.


1852 – Estabelece-se o julgado municipal de Moçâmedes.


1853 – Apenas três anos após a Conferência de Berlim, o Capitão de mar-e-guerra António Ricardo Graça manda ocupar o porto de Mpinda como forma derradeira de impedir o contrabando em seres humanos no território de Angola, que agora inclui o ‘Congo português’. A mão-de-obra escrava não pode, contudo, deixar de ser utilizada na produção de açúcar do vale do rio Bero; o ministro Sá Nogueira, agora marquês de Sá da Bandeira, insiste para que se fomente uma indústria da pesca no distrito de Moçâmedes.


1854 – José Rodrigues Coelho do Amaral chega a Luanda como Governador geral (1854-1860); acompanha-o Fernando da Costa Leal, um capitão do Exército de 28 anos escolhido pelo Geral e que vem nomeado como governador de Moçâmedes, onde toma posse a 26.02. Das primeiras iniciativas que toma, uma é localizar a foz do rio Cunene, o que faz por terra, já que por mar a foz é encoberta por uma barra de areia a maior parte do ano; baptiza o rio mas o nome de “Elefantes” nunca é popular; tem melhor sucesso noutra área: “Obras paralisadas havia muito tempo, como a Igreja, que não andava desde 1849, são rapidamente concluídas. Outras, como a Fortaleza de São Fernando, iniciam-se ainda nesse ano e sem delongas se aprontam.” 1 Mas a mais importante é a concessão das primeiras licenças de pesca comercial, na Baía das Pipas. Em 14.12 é decretada com efeito imediato a libertação dos escravos do Estado: calcula-se que em toda a Angola houvesse então ainda cerca de 60.000 escravos nas mãos de senhores particulares.

1855 – A povoação do porto de Moçâmedes é elevada à categoria de vila: consistia então de dois alinhamentos de habitações, as melhores frente à praia, com uma rua de permeio, de 400 metros de comprimento. Neste ano de eleição da primeira vereação da Câmara Municipal, tendo com seu primeiro presidente Bernardino de Abreu e Castro, chefe da primeira colónia, é ocupada a Praia do Baba e a rainha D. Maria II envia 1000 anzóis ao governador do distrito.

1856 – No ano em que o hospício de Moçâmedes é inaugurado, o decreto de 15.06 decreta a Abolição em todo o território então sob a soberania portuguesa. Os primeiros armadores portugueses estabelecem-se nas Luciras.

1857 – Segundo o governador Leal, estão agora instaladas em Moçâmedes 16 pescarias, com 40 escaleres e 280 escravos, e mais 4 nas praias do Norte: Baía das Pipas, Baba, Lucira e Catara. Mas por outra preocupação, o governante desloca-se aos Gambos acompanhado pelo presidente da Câmara municipal de Moçâmedes: Bernardino Abreu e Castro mais tarde descreve ao Govenador geral o patria potestas banto, verdadeiro motor da escravatura africana.
2 A visita relacionava-se com a resolução de um litígio com o novo soba dos Gambos, ‘Xipalanga’, 3 que o governador dava por usurpador, e foi o prelúdio de pequenas operações militares lançadas da colónia do Lubango pelo governador, contra o parecer da Câmara e a opinião do experiente e educado viajante e comerciante entre os Cuanhamas, Bernardino José Brochado, estabelecido em Moçâmedes. Como o clima de guerra na Huíla convencesse alguns dos colonos do Lubango a deslocarem-se para a costa, a 25.11 o governador Leal assentou praça a dois deles: seguiu-se o protesto da Câmara, a dissolução desta pelo governador, a sublevação dos colonos e o embarque do governador para Luanda. O incidente – reflexo da antiga tradição de independência municipal ibérica, vestígio da colonização Romana e travão perene contra os desmandos dos barões feudais – tem sido, contudo, mal visto por habitantes mais recentes do Namib angolano, onde, por esse ponto de vista mais obediente, naquele tempo “uma indisciplina latente constituía permanente ameaça.” 4




1858 – O Governador geral vem a Moçâmedes acompanhado do governador Leal, manda deter os cabecilhas da revolta, dissolve a Câmara – Brochado é nomeado presidente da Vereação (1858-1860) – e reconduz Leal. Resta pouca dúvida, porém, que a iniciativa militar do jovem governador de trinta e dois anos, inexperiente das “Áfricas” mas assoberbado pelo apoio que teria em Luanda, terá ajudado a acender um fogo entre os povos aguerridos do sul de Angola que só veio a apagar-se meio século mais tarde, depois de outro incidente, o de Naulila. Sai o decreto de 29.04 que estabelece aos senhores particulares um prazo improrrogável de 20 anos para a libertação final dos seus escravos, metade do qual na condição de servitude livre.


1859 – O Governador Fernando da Costa Leal deixa o distrito de Moçâmedes para ir trabalhar com o marquês de Sá da Bandeira na compilação da primeira carta geográfica de Angola

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1.
Bobella Mota, A. - A Exploração do Rio Cunene, c. 1970. 2. Abreu e Castro, B.F. de – Opinião sobre a melhor forma de extinguir a escravatura. Boletim Oficial de Angola, nº. 611 de 13 de Junho de 1857. 3. O nome não é, necessariamente, próprio: epalanga eram os conselheiros dos chefes nos estados ovimbundo e este soba seria um tyipalanga revolucionário que se julgara autorizado pelo governador Leal a tomar o poder. 4. Bobella Mota, A. – Op. ct.
 
1860 – Dez anos depois da chegada dos portugueses vindos do Brasil começa a colonização dos algarvios que para aqui se deslocam nos seus próprios barcos, em viagens de autênticos aventureiros honrando bem os seus antepassados navegadores: o primeiro é José Guerreiro de Mendonça, de Olhão.

1861 – No Governo geral de Sebastião Lopes Calheiros de Menezes (1861-1862) o levantamento dos povos do baixo Cunene – herança do governo do capitão Leal – obriga à constituição do Batalhão de Caçadores 3 com seis companhias, das quais a 1.ª e 2.ª se vão estacionar na Huíla, a 3.ª nos Gambos, a 4.ª no Humbe; a 5.ª C. caç. é colocada em Capangombe e constroem-se os fortes dos Cavaleiros e Boa Esperança, no vale do rio Bero: a guerra do Nano descia à cidade. Famílias de pescadores de Moçâmedes estabelecem quatro feitorias na ponta do Pinda, adjacente à antiga angra das Aldeias, o porto Alexander das cartas náuticas do almirantado britânico.

1862-5 – A reacção dos chefes tribais do sul de Angola ao aparecimento dos destacamentos militares não se fazem esperar, inaugurando um longo período de instabilidade para os colonos do planalto. Em Luanda o Governador geral é o militar que pacificara os Dembos e subtraíra finalmente o Ambriz às atenções britânicas; é, no entanto, durante este período conturbado da primeira vigência do notável Governador geral José Baptista de Andrade (1862-1865) que, na costa do distrito de Moçâmedes, se radicam pescadores algarvios não só em Moçâmedes, mas também na Baía das Pipas, Baba e Baía das Salinas: os do Baba mudam-se para o porto Alexandre, onde em 1863 já há seis feitorias de gente de Moçâmedes; iniciam-se as obras do hospital de Moçâmedes (1863), a construção do troço Bruco-Chela da estrada Moçâmedes-Huila e a fundação de uma indústria de tecelagem em Moçâmedes (1864), e se inaugura a estrada de Moçâmedes à pousada da Pedra Grande (1865); neste ano, os algarvios atingem na enseada do Leão, na enorme Great Fish-bay da marinha inglesa: o jogo de sombras às listas nas dunas da costa sugerem-lhe o nome moderno, ‘baía dos Tigres’, e a falta de água obriga-os a fazer um plano.

1870 – No ano em que o marquês de Sá da Bandeira deixa definitivamente a política, as estradas para a Huila estão acabadas, não só na antiga passagem por Capangombe à Huíla, pelo Bruco, mas também para a Bibala, pelo Munhino; e há um numeroso grupo de pescadores algarivos na baía dos Tigres, que para ali transportam a água potável nas suas frotas. Governa Angola novamente, por um breve período, o enérgico Coelho do Amaral (1869-70).

1876 – Morre Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, o marquês de Sá da Bandeira, e em sua memória é decretada para o dia 29.04 – dois anos antes do previsto em 1859 – a libertação dos poucos escravos que ainda existem em território português.

1884 – Os oficiais da Armada Hermenegildo Brito Capelo e Roberto Ivens partem de Moçâmedes para Tete, no rio Zambeze, na sua travessia de África até Moçambique: é que as potências internacionais interessam-se por partilhar o sempre difícil continente e o Governo português toma precauções, uma delas o convite de muitas famílias da populosa e pobre ilha da Madeira a estabelecerem-se nas ‘Áfricas’. São pescadores e agricultores, aqueles com destino a Moçâmedes – a maioria ao Baba, outros a Porto Alexandre – estes em rota para a colónia de Lubango, na Huíla. De resto, a imigração portuguesa para Angola encontra-se agora facilitada,
1 e pela primeira vez se pensa em Angola como uma ‘província’ aberta a todos os Portugueses particulares, como as do continente europeu.

1885 – Por decreto do Ministro da Marinha e Ultramar, a vila do Lubango passa a conhecer-se pelo título do marquês cuja iniciativa humanitária e denodo político lhe dera origem: Sá da Bandeira.
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1.
Só em 1921, no governo do Alto comissário de Angola, o general Norton de Matos, volta a haver nova corrente emigratória, desta vez incluindo pescadores poveiros. Data de então a construção de uma estação de dessalinização a baía dos Tigres.



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BIBLIOGRAFIA
: Bobella Mota, A. - A Exploração do Rio Cunene, c. 1970; C. M. Castro Alves, trineto de Bernardino de Figueiredo Abreu e Castro - Tese de mestrado; Encyclopedia Britannica; Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira; Lemos, A. 1943-45; O Sul de Angola, n.º comemorativo do 1º centenário da Cidade de Moçâmedes, 1949.
 

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