quarta-feira, 5 de maio de 2010

ANGOLA 1820-1890 por Júlio Alves Victor



Précis crítico de “O Império Africano 1825-1890, Part 3 - Angola”,
de Jill Dias, in Nova História da Expansão Portuguesa,
dir. Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques, ed. Estampa, Lisboa, 1998.


por Júlio Alves Victor * Angola nas Vésperas da Abolição (1820-1845)

a) O Quadro Africano
(1)

A sociedade nativa: a população angolana em fins do século XVIII era menos de 10-20 milhões (2) numa área de 2,5 km2 com distribuição muito desigual, preferencialmente congregada em aldeias linhageiras (3) nos vales dos grandes rios e nos planaltos férteis de Luanda (‘Congo highlands’) e Benguela (‘Huambo’), (4) dado que os agregados da savana eram muitos escassos e dispersos. As interacções culturais dos povos da região seriam (p. 324) «milenárias...» (5) e cultivavam-se tradicionalmente «bananeiras e, especialmente, palmeiras...» (6) . A alimentação de origem americana teria entrado no baixo Zaire (p. 325) no século XVI. (7) . No reino do Congo os antigos chefes regionais vieram a exprimir «a sua unidade através de forte adesão a ritos e símbolos cristãos, tais como a investidura da Ordem de Cristo, o direito de enterro nos túmulos reais cristãos situados em S. Salvador e o casamento cristão» que reputavam protegê-los «ao mesmo tempo, dos efeitos da feitiçaria.» O ntotela viu, porém, o seu poder reduzido, a partir de c. 1800, [e à semelhança do Papa] às imediações da sua capital.

A sociedade da região [pensa Dias] era ‘linhageira’ [porém já antes de 1565 havia guerreiros profissionais, ou a nziku (‘anzicos’), provavelmente escravos, e no tempo de Cadornega (1680) os súbditos do ngola encontravam-se completamente estratificados em duas camadas bem definidas: a gente mulenda (‘de mulinda’) ou linhageira e a do ki nyiku (‘de quinjico’) ou adquirida – guerreiros, serviçais, escravos.] e que a sua escravização se intensificou em resposta ao tráfico. [Esta é a conclusão lógica, porém a priori: de facto, a escravização jurídica tradicional, que decorria a) da condenação de indivíduos, seria limitada pela impraticabilidade de fabricar acusações para criminalizar alguém,
(8) prática de que só o soba beneficiaria; e b) o deflagrar ‘normal’ de conflitos entre etnias por razões territoriais – pastos, lavouras, águas – tenderia a reconhecer-se como contra-produtivo para os interesses das próprias populações. O aumento da escravaria no século XVIII não significará, portanto, uma intensificação do tráfico dentro do território, mas, primeiro, uma extensão da prática a territórios vizinhos – historicamente o vasto império Luba – agenciada pelos chefes de Cassanje, e finalmente ao trato directo de Luanda com os chefes do interior de África].

O tráfico em geral: os africanos obtinham pelo tráfico têxteis e armas de fogo, estas e a pólvora em 3º lugar de preferência,
(9) ou seja 10% do valor exportado, seg. Miller (1980). O número de pessoas exportadas legalmente para a América, de que há registos, entre meados do século XVI e 1850, totalizou aproximadamente 2 milhões. A partir de 1780 o tráfico de Luanda e Benguela escalou-se seg. Miller (1980) de 168.000 na década de 1791-1800, 188.400 (1801-1810), 246.000 (1811-1820) a 248.900 (1821-1830), (10) com um impacto demográfico incerto (11) mas que geralmente se considera coberto pela fertilidade natural das mulheres, já que, maioritariamente, eram homens o que se exportava.

Congo e Luango: territórios onde «o governo português de Luanda... tinha pouco ou nenhum poder de intervenção efectiva...»
(12) e onde quem agenciava o tráfico, desde o século XVII – entre o vale do r. Cuango e os Bavili, cruzando o Cacongo – eram os “Mubires”, muito respeitados por exercerem o ofício semi-mágico de ferreiro: (13) trocavam os escravos nas feitorias norte-americanas, brasileiras, espanholas e portuguesas da costa do Luango por mercadorias europeias que utilizavam em parte para a aquisição de mais escravos além-Cuango; (14) para sul a actividade dos mubires penetrava o reino do Congo e chegava aos distritos de Dembos, Dande e Zenza, em território português. Estes mercadores, precursores (15) de uma oligarquia comercial e burguesa na costa africana [entre o Luango (hoje Cabinda) e o Ambriz], subordinavam-se às [i. é, negociavam directamente com] as «autoridades linhageiras locais». (16) A sul do r. Zaire bem como e ao norte (o Cacongo) o poder central [exercia-se, por tradição, apenas no domínio religioso, e pareceria, assim, que] estava moribundo: o ntotela, e o maloangu do Maiombe, apareciam como figuras de ritual nas administrações feudais respectivas; assim, «...as relações formais entre o governo português e o Mani Congo, no século XIX, reduziam-se... à manipulação política dessa dimensão ideológica e espiritual, (17) uma vez que os missionários... se encontravam em Luanda.»

Em Cacongo os mubires iam aos portos de Cabinda e Boma; no Congo, onde o poder político era há muito exercido pelos chefes regionais [dos ducados e marquesados sugeridos por D. Manuel I] de Sonho, Bamba, Bata, Pango, Sundi, Pemba, Uembo e Uando, os dois primeiros eram costeiros e povoados por mussorongos [Quic. mu sulungu, ‘senhor das canoas’, canoeiro]; encontravam-se então, porém, já fragmentados em pequenos sobados e foi nestes que se radicaram os mubires que abasteciam as feitorias de Mbidji (Ambriz, na foz do r. Loje) e Quissembo (Ambrizete): [os transportadores, naturalmente, não reconheciam a autoridade portuguesa sobre os embarques nestes portos, e por isso] os impostos lançados pelo governo de Luanda entre 1800 e 1820 causaram atritos com os capitães de navios. No Congo o soba mussorongo mais forte era o «Marquês de Mossulo», verdadeiro chefe da rede comercial da região; no Cacongo o mesmo acontecia em Boma.

Cassanje e Matamba: a abertura de uma rota do sal da Matamba à Quiçama é oposta pelo soba bângala, que se dava o título de ‘Quinguri’ (ki nguli, ‘o leão’) e pretendia ter laços de parentesco com o mwata Yanvu, gera tensão entre os dois estados. Em 1790 o governo de Luanda não conseguiu que os naturais do pequeno estado Holo sobre a escarpa oriental do planalto de Luanda lhe destinassem o tráfico entre a margem direita do r. Cuango e a costa do reino do Congo, onde «as feitorias inglesas, americanas, espanholas e francesas ofereciam...» mais, e o Ambriz, então habitado por feitores ingleses. A subsequente perda de prestígio pelo Quinguri – que não conseguia controlar a interferência, apoiada pelos matambulas, dos Baholo no tráfico – leva ao contrato directo de Luanda com o Mwata: a feira de Cassanje é abandonada (entre 1804 e 1827), a primeira caravana do chefe Lunda para a costa angolana cruza o Cuango em 1808 e em 1810 os primeiros comerciantes portugueses visitam a corte do Leste com o fim de ali impedirem a actividade de contrabandistas; governo do mwata Naweji II (c. 1820 a c. 1850) teve por base o comércio directo resultante.

Angola: [a incipiente administração civil portuguesa estendia-se, com diferentes graus de dificuldade, a 4 regiões: Angola (Dongo e Quiçama), palco da actividade militar da Conquista, onde a influência de Luanda era, naturalmente, maior; Dembos, onde a] hostilidade dos chefes comarcões que frequentemente impedia as deslocações de Luanda ao norte [o que, dada a ascendência do rei conguês sobre aqueles chefes montanheses, influenciou em grande parte a colocação da sede da diocese na costa], não impediu que em teoria a região se encontrasse então dividida em dois distritos: Dembos, entre os rios Zenza e Dande, com seis sobados,
(18) e S. José do Encoje – fundado em 1750 para tentar impedir os libambos de atingirem o Ambriz – com onze sobados; (19) [o planalto de Benguela, ou] planalto ‘Central’, onde as campanhas militares da década de 1770 puseram em evidência os sobados de Bailundo [ba Ilundu], Huambo [U’ambu], Bié [b’Yeh] e Galangue [Ngalangi] (20) no período em apreço o Bié tornara-se um entreposto do tráfico, e o soba poderoso; para o Galangue foi nomeado um regente em 1820; com o Huambo não havia ligação formal.

O sul: no planalto da ‘Huíla’,
(21) [ou de Moçâmedes] a primeira penetração portuguesa terá sido a «invasão dos Gambos» de 1760; (22) formara-se o sobado Nhaneca pela união de clãs «para se defenderem» de populações meridionais, (23) e o da Huíla foi fundado pelo «guerreiro Njau»: os chefes de ambos beneficiavam do tráfico que forneciam para o norte (Bié, Pungo Andongo), para a costa (Benguela) e, mais tarde, para as feitorias [agricultura e pesca] de Moçâmedes, e o da Huíla [então o limite administrativo meridional de Angola] chegou a ser poderoso: em 1820 forçou o regente respectivo a refugiar-se em Quilengues. Mais a sul [os Himbas (ramo dos “Hereros” namibianos), vinham a ser espoliados do seu gado pelos Nama (“hotentotes”) desde a seca de 1829, em golpes-de-mão a norte do Cunene que os trouxeram até ao r. Curoca e Porto Alexandre; entretanto] o sobado dos Gambos, e especialmente os povos agro-pastores dos sobados Humbe e dos povos Ambó [a Mpo, ‘do avestruz’], eram «os únicos... [então] relativamente autónomos e isolados do tráfico atlântico» [graças, provavelmente, à pastorícia, anteriormente monopolizada pelos Himba mas desde a década de 1830 impulsionada pelos contactos com os salteadores “hotentotes”, o chefe mais poderoso dos quais, o mestiço afrikaner Jan Jonker, construiu a primeira igreja em Windhoek em 1840: este foi o ano em que] os Cuanhamas começaram a emancipar-se da tutela política dos Humbes [e cinco anos depois já funcionava em pleno a linha de fornecimento de gado do sul de Angola, a troco de aguardente, às companhias de Walvis Bay pelos cavaleiros Nama – e os Himbas haviam concebido uma antipatia perene pelos Cuanhamas]. 

Continua...


1. Dias refere frequentemente J. C. Miller (The Way of Death, Madison, 1980).
2. Enorme variação! Ainda hoje pouco ultrapassa os 10 milhões, incertamente.
3. A visão idealista da ‘sociedade linhageira’ – essencialmente pré-banta e descrita do sub-continente por Vedder em relação aos Berg Damaras – deve-se provavelmente a Miller: já no tempo de Diogo Cão a sociedade banta do território se regia por monarquias eleitorais de chefes religiosos a norte do rio Dande, e por tiranias hereditárias baseadas em linhagens ‘de sangue sagrado’, da tradição dos Grandes Lagos, a sul daquele rio – os miata calundas, os oulombe ovimbundos, os ngolas mbundos e os jagas bângalas.
4. Portanto na metade setentrional do território actual.
5. Mas não no actual território de Angola, com referência aos povos bantos, dos quais os mais antigos, antepassados dos Ovimbundo, terão passado a Cameia no século IX, e a monarquia conguesa se terá estabelecido no século XIV.
6. A primeira sim, a segunda brotava de pés múltiplos, sendo os palmares, então, aflorestações naturais.
7. Assumindo que a mandioca e o milho foram plantados ao princípio dos contactos portugueses com o reino do Congo, o que é duvidoso, já que a gramínea fora trazida para o golfo da Guiné pelos Espanhóis nas primeiras décadas do século XVI mas Cadornega (1680) ainda não menciona o seu plantio pelos nativos, e a raiz só foi introduzida como cultura em Angola pelo governador Fernão de Sousa em c. 1624, temendo um bloqueio pelos Holandeses, que haviam tomado a Baía.
8. Dias refere aqui o ordálio, que era uma prática particular – usava-se entre pessoas aparentadas – e não jurídica; de resto, sendo evidente que tendia a causar a morte ou severa debilitação do suspeito, não caberia no esquema de um chefe para aumentar o números de seus ‘filhos’ vendáveis.
9. Não se indica o que estava em 2º lugar.
10. Total: 850.400 em 40 anos, à média anual de 21.260, deixando 1.149.600 para o período 1550-1790 (240 anos), ou seja, à média de 4.790 por ano.
11. Não se faz menção de taxas de crescimento natural.
12. Naturalmente, já que eram territórios independentes, sendo o Congo, em teoria, um estado aliado da Coroa de Portugal; o Luango era, também em teoria, um território vassalo do Congo, com Cacongo e Ngoio.
13. Sendo, assim, provavelmente, de origem Vili, tradicionalmente os grandes ferreiros da região.
14. Tuckey, J. K. – Narrative of an expedition to explore the River Zaire, pp. 126, 282-3, 285. Degrandpré, L. – Voyage à la côte occidentale d’Afrique fait dans les années 1786 et 1787, Paris, 1801.
15. Semelhantemente aos ‘pumbeiros’ angolanos dentre os quais, a partir de Ambaca, saíram algumas futuras famílias comerciais nativas do século XIX.
16. Proyart, L. B. – Histoire de Loango, Kakongo et autres royaumes d’Afrique, Paris, 1776, pp. 77, 95, 155.
17. Trata-se de conclusão a priori: havia missionários no Congo, embora a sede da diocese (de Angola e Congo) fosse em Luanda; não é evidente que a Igreja se prestasse no século XIX à ‘manipulação’ do reino independente do Congo com fins políticos – e quais? De resto, segundo Dias, D. Garcia pediu missionários em 1804 que só chegaram em 1814 – mau método de ‘manipular’ o monarca.

18. Dos quais os mais importantes eram Ngombe Amuquiama, Cazuangongo e Caculo Cacaenda.
19. Mais importantes: Ambuíla e Nambuangongo.
20. Vide Angola. Notícias de alguns dos distritos de que se compõe esta Província, A.C.U. 2.ª Série, Lisboa 1860, pp. 87 e 93; Sarmento, Alfredo – Os Sertões de África, Lisboa 1880.
21. Huíla – Nh.H. U’Ila, ‘para cima’, sem ‘h’ aspirado; escrito Oíla (o’Ila) no século XVII.
22. Dias refere aqui Pilarte da Silva – Relatório (?) de 09.12.1770; Homem e Magalhães, Pedro José Correia de Quevedo (gov. Benguela) – Carta de 16.09.1785, A.H.U. maço 13; Barão de Moçâmedes – Parecer sobre uma consulta do Conselho Ultramarino, 24.02.1796, A.H.U. maço 6.
23. Noção que contrasta com a tendência histórica para incursões do norte – os imbangalas diziam guerrear no planalto – buscarem escravos e gado no sul, e com a própria identidade da língua Nhaneca com os guerreiros de além Cunene os Nkhumbi de ascendência imbangala. 


*
Natural de Moçâmedes, hoje Namibe, Angola. Amigo e colega no Helderberg College, África do Sul, nos anos 60. Depois de terminar os estudos universitários, em Geologia, fixou residência naquele país. 
Agradeço ao Júlio Victor mais esta contribuição. Com a sua vasta cultura, conhecida por todos os seus amigos, é uma honra receber a sua colaboração dedicada à nossa Terra Angola.

http://www.angola-saiago.net/1820ao2.html

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