O colonialismo na África acabou formalmente, mas ainda perduram práticas consideradas coloniais. Internamente, o continente perpetua, principalmente através de suas elites, alguns modelos e padrões implementados por ocasião da colonização européia. Já os países desenvolvidos, muitos dos quais ex-metrópoles, mantêm políticas exploratórias e assistencialistas em suas relações com os países africanos. Oscilando entre a continuidade e a ruptura com seu passado recente, a África procura um novo caminho para seu desenvolvimento e afirmação.
Ainda que a presença européia na África tenha se iniciado na época dos descobrimentos (século XV), apenas após a independência das colônias americanas (primeira metade do século XIX) registrou-se a “corrida” pela conquista e subseqüente partilha do continente. O historiador Wolfgang Adolf Karl Döpcke, da Universidade de Brasília, conta que, por volta de 1876, somente 10% do território africano tinha estado sob domínio colonial. Duas décadas mais tarde, esse percentual alcançava 90%. E já no início da década de 1950 o curto período colonial começou sua decadência. “Mesmo assim, o colonialismo deixou um legado significante e profundo, que ainda representa os vetores básicos das realidades atuais das sociedades do continente”, afirma Döpcke. Francisco César Almeida, professor de sociologia geral na Universidade Agostinho Neto, em Angola, ressalta ainda que “a colonização produziu novas entidades geográficas, culturais e políticas, híbridas, mestiças, sem passado além do colonial. São essas as nações africanas que temos hoje, vivendo uma vida caricata”.
Rumos da colonização
O fenômeno da colonização africana não pode ser analisado como uma unidade homogênea. A diversidade de colonizadores (portugueses, franceses, espanhóis, ingleses, holandeses, belgas, italianos e alemães) e de povos colonizados demanda uma avaliação do processo em sua multiplicidade, levando-se em conta não apenas as semelhanças, mas também as diferenças de cada colonização.
Para João Milando, sociólogo angolano e pesquisador do Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), de Lisboa, Portugal, é necessário levar em consideração o período histórico, o contexto social e os aspectos concretos na hora de definir diferenças e semelhanças entre as colonizações européias na África. Em relação à legitimação do Estado colonial, por exemplo, não houve diferença. “Todos eram Estados não apenas ilegítimos, mas sobretudo alegítimos, porquanto a questão da sua legitimação nem sequer foi posta”, avalia. Já quando se focaliza a miscigenação, as diferenças sobressaem, com a colonização portuguesa destacando-se das demais. “Seja qual for o aspecto analisado, a colonização marcou indelevelmente os percursos históricos das sociedades que dela foram alvo”, frisa o sociólogo.
Segundo Döpcke, inicialmente, os diversos colonialismos partiram de filosofias de dominação bastante diferentes. “O africano ‘ideal' dos portugueses era, inicialmente, um africano vestido de terno e gravata, evangelizado e letrado, recitando as poesias de Camões. Para os ingleses, teria sido um chefe tradicional, governando com legitimidade tradicional sua 'tribo' orgânica, mantendo ordem e paz (colonial) entre os seus membros e suprimindo liberdades individuais, fornecendo mão-de-obra migrante e recolhendo impostos”, exemplifica.
Mas, em seguida, as diversas práticas de dominação colonial se aproximaram. A influência cultural e a miscigenação, que marcaram a colonização portuguesa, atingiam minorias e não as sociedades subjugadas. Já os ingleses, depois da Segunda Guerra Mundial, abandonam seu ideal romântico da África “tradicional”, cortam os laços estratégicos com as elites tradicionais e coroam o africano individualista, inovador e pragmaticamente ocidentalizado como seu novo herói cultural. “A partir daí, a mais recente historiografia enfatiza mais as semelhanças entre os diversos colonialismos em vez das diferenças, apesar das ressalvas sobre generalizações grosseiras”, explica Döpcke.
Independência
O processo de descolonização na África começou na década de 1950. Assim como a colonização, foi relativamente curto e trilhado de maneira diversa por cada ex-colônia. Depois da Segunda Guerra Mundial, inicia-se um novo ciclo. O modelo colonial se deslegitima rapidamente, devido a vários fatores.
Cada potência tinha o seu modelo favorito de transferência de poder. André Luiz Reis da Silva, pesquisador em relações internacionais e história contemporânea, ressalta que na África inglesa a descolonização foi menos conflituosa do que na francesa. A França retardou o processo através de infrutíferas mudanças e tentativas de integração das antigas colônias. “Como a Conferência de Brazzaville, da qual nenhum africano participou, mostrando o caráter unilateral da negociação francesa”, exemplifica no artigo África contemporânea: os novos desafios da segurança, desenvolvimento e autonomia (1960-2005). As colônias portuguesas, por sua vez, tiveram independências mais tardias, entre 1974 e 1975, após um longo processo de luta armada.
As resistências mais ferozes à independência, em alguns casos, eram articuladas por colonos brancos. Döpcke lembra de dois exemplos: do Zimbábue, onde apenas uma guerra de libertação (1966-1979) gerou condições para a descolonização; e da África do Sul, em que a posição dos brancos contra a democracia e igualdade racial incitou uma reação do nacionalismo africano e levou o país à beira de uma guerra civil. Já no caso das colônias portuguesas, os colonos brancos não representaram a principal força contra a independência. “Parece que neste caso a determinação da metrópole de permanecer na África foi mais relevante. O regime salazarista sentiu um forte vínculo de identidade, ideológico e econômico, entre a permanência do império português na África e a sua própria sobrevivência no poder, resistindo com guerras coloniais até 1974”, avalia.
Os colonizadores participaram dos processos de descolonização procurando garantir seus interesses. Desta forma, entram “em um processo que influirá de maneira decisiva no seu próprio futuro político, econômico e geo-estratégico”, aponta Almeida. “No centro das preocupações européias não estão o futuro desenvolvimento da África ou as elucubrações modernosas sobre civilização. Tratou-se de encontrar novas fórmulas, novos moldes, novas estratégias, novos condicionamentos que garantissem a satisfação das necessidades dos europeus”.
Continuidade e ruptura
Apesar da ruptura formal com as metrópoles, na avaliação dos estudiosos, a África não conseguiu superar o legado colonial e trilhar caminhos independentes. Milando destaca que, como relação política, o colonialismo pode ter sido erradicado, mas como relação social, manteve-se, alimentado pelas elites que ocuparam os espaços de poder numa relação considerada exploradora e parasitária. “Continuaram ou agravaram-se, em certos casos, a negação das diversidades, a monocultura dos saberes, a violação dos direitos humanos, a opressão, as ditaduras, as repressões e as discriminações. É por esta razão que em alguns grupos sociais africanos se fala da necessidade de uma ‘segunda libertação', isto é, da libertação das sociedades em relação à uma ‘colonização interna' a que estão atualmente sujeitas”, conta Milando.
A relação com as ex-metrópoles também assegura a dependência e exploração dos países subdesenvolvidos pelos desenvolvidos, numa relação de troca desigual. “A proclamação da independência nacional apenas pôs fim a um tipo de relações, mas não anulou a relação, a inter-relação, a intimidade. O que aconteceu naquele momento foi que nasceu um novo tipo de relação, em função de novas necessidades de uns e de outros”, resume o sociólogo angolano Almeida.
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