domingo, 16 de outubro de 2011

OS LANDINS EM MACAU "da leitura das estrelas ao pragmatismo"



 de Pedro Dá Mesquita, em Lisboa
Revista Nam Van nº 23 - 1 de Abril de 1986



Quis o destino que os landins, povo aliado com os deuses, que o fizeram feiticeiro, se tornasse no exemplo mais acabado de soldado africano ao serviço do exército colonial português.

Estávamos em 1904 e pelo regulamento assinado pelo comissário régio de Moçambique, Mousinho de Albuquerque, todos os homens válidos seriam sujeitos a uma inspecção, a ter lugar de dois em dois anos, para servirem nas companhias expedicionárias e nas companhias de indígenas, estas integradas exclusivamente por elemento landins.

Da passagem de uma vida que se perdia na memória dos tempos, feita pela leitura das estrelas, dos ventos e das nuvens, colocando cada landim numa posição superior e desta superioridade vivendo, a história militar portuguesa coloca estes homens de sorriso permanente e de selváticas paixões, numa alta estima a julgar pelo testemunho do próprio herói do aprisionamento do Gungunhana, que escreveu a dado passo no seu livro «Moçambique» que os landins eram de todas as tropas de negros ao serviço de Portugal as que revelaram «maior instinto guerreiro».

Com tão boas referências, depressa estes homens deixaram a sua terra para servirem em Angola, Timor e Macau, tendo chegado a este último território no ano de 1911, marcando nas cinco décadas seguintes uma presença regular naquele enclave, então colónia portuguesa.

Para quem conhecesse os landins por alturas dos finais do século passado, dificilmente imaginaria que este povo orgulhoso se tornasse alguma vez num soldado disciplinado, temerário, ao serviço de um exército regular.

Armado de escudo, adornado de peles e com zagaias, com as quais desferiam o primeiro golpe em direcção aos rins da vítima, os landins eram uma das etnias mais temidas e conhecidas de todo o Moçambique.

Contam as crónicas que qualquer número de landins, por mais insignificante, que passasse por qualquer aldeia, por mais pobre que ela fosse, quase que por magia - não fossem eles feiticeiros surgia logo farinha para fabricarem o seu pão favorito, sempre acompanhado por um bom número de cabritos e galinhas

As principais vítimas desta pilhagem permanente era o povo quiteve, que para além de se ver despojado de boa parte dos seus bens, era obrigado a carregar todos os mantimentos dos landins, pois estes nunca tinham «pegado em cargas».

Aliás, conta-se uma história bem curiosa sobre os costumes deste povo que fez um pacto com o céu.

Nas suas permanentes deambulações, os landins conceberam uma forma assaz curiosa de tributação: abriam um furo no alto da cobertura cónica das palhotas circulares, obrigando depois a enchê-Ias até que estas se recusassem a receber mais.

Esta tendência de acumular veio a manifestar-se bem mais tarde em Macau, embora já a nível individual e sob a forma de pré (2 mil escudos em 1950) por todos os elementos voluntários que estiveram em comissão de serviço no território, ficando célebre um desembarque em Lourenço Marques, em 1932, que vinha de tal forma provido de mercadoria que pagou 18 contos de réis em direitos aduaneiros, e isto não obstante a «vista grossa» por parte dos funcionários da alfândega.


O primeiro par de botas

Providos de uma excelente compleição física - cuja média ultrapassava o metro e setenta de altura - com uma boa capacidade de aprendizagem, com um bom espírito combativo e de tempera­mento alegre, os landins foram considerados as melhores tropas coloniais portuguesas.

Após um recenseamento, eram sujeitos a uma recruta de três a seis meses onde lhes era ministrado o manejo das armas, o aprumo mili­tar e uma instrução mínima. De­pois eram enviados para Angola, Timor e Índia na situação de obrigatoriedade, tendo sido recrutados mais de cem mil entre 1916 e 1918, durante a I Grande Guerra.

O primeiro contigente a embarcar para Macau deixou Lourenço Marques em 11 de Dezembro de 1911 com a 8ª Companhia Indígena, acompanhada de uma secção de bateria mista.

Com um par de botas - as primeiras que calçavam na sua vida - um capacete de ferro, que lhes dava um ar muito mais marcial, e com um uniforme do qual ressaltavam uns largos calções, cerca de duas centenas de landins desembarcaram em Macau nos primeiros dias de 1912, deixando desde logo uma forte impressão, quer na comunidade portuguesa, quer mesmo na chinesa ao realizarem um batuque no qual teve papel importante o manejo das terríveis zagaIas.

Devido ao facto de serem tropas muito bem treinadas e muito disciplinadas, e de serem - segundo Mousinho que as utilizou em primeiro lugar - «umas sentinelas admiráveis» foram colocados nas Portas do Cerco, ponto nevrálgico, sobretudo após a implementação da República Chinesa e onde se tinham registado alguns incidentes.




A coronhada landim

Com fortificações que permitiam a presença de uma companhia, a unidade estacionada nas Portas do Cerco estava sujeita a um trabalho violento, quer no aspecto físico, devido às constantes vigias nas 24 horas do dia, quer pelos incidentes que se repetiam quase diariamente com as tropas colocadas do outro lado da fronteIra.

O dia começava com o retirar dos cavalos-de-frisa pelas 8 horas, que eram colocados a cerca de 30 metros diante das Portas do Cerco, seguindo-se-Ihe o manejo de armas, colocação nos postos e instrução vária. A tarde, os soldados estavam encarregados de diversos melhoramentos nas instalações, encerrando a fronteira pelas 18 horas.

Equipados com espingardas de bom alcance, bazucas, canhões, anti-tanques e várias metralhadoras, as tropas landins colocavam-se em menos de três minutos nos seus postos após soar o alarme, facto que acontecia nas ocasiões mais díspares para manter a eficiência da unidade.

Após a natural apreensão relativamente à recepção que iriam dar aos landins, estes foram bem aceites pelas três comunidades em questão (portuguesa, chinesa el colegas de armas).

Depressa ganharam fama de soldados disciplinados, não só através das inúmeras histórias mas também pelas anedotas que se contavam a seu respeito. Uma delas conta o sucedido com um soldado landim que estava de serviço à residência do governador de Moçambique e deu uma forte coronhada num director dos caminhos de ferro do Transval, que na ocasião (uma greve) insistiu em transpor uma vedação, e que mais tarde iria provocar certos dissabores ao próprio Mousinho. Instado a defender-se por ocasião de um breve inquérito que ficou arquivado e das razões que o tinham levado a tomar aquela atitude, o soldado limitou-se a responder: - «Faça, alto, palavra de honra, faça fogo».

O prestígio junto das comunidades em Macau foi subindo à medida que eles se iam integrando na vida normal da cidade, sendo vistos nos dias de folga, sempre em grupos, invadindo as lojas centralizadas na Rua Almeida Ribeiro numa azáfama em adquirirem um conjunto mais ou menos fixo de bens: bicicletas, fatos, máquinas fotográficas, arcas em cânfora e outros objectos que afanosamente guardavam como penhor de dois anos de comissão de serviço voluntário em Macau com um bom pré (2 mil escudos em 1950) e isto numa altura em que Macau tinha uma vida mais barata do que em Moçambique ou Portugal.

Por outro lado, um dos passatempos favoritos dos landins ao chegarem a Macau - conforme nos relata o coronel Pedro Barcelos que comandou uma companhia dej landins nas Portas do Cerco entrei Junho de 1951 e Setembro de 19521 - era o de se fazerem transportar nos riquexós, já que parece que «lhes dava um grande prazer o serem levados a custa de braço, pelas ruas de Macau e perante um clima tão extenuante.



A fotografia de rectaguarda

Fora disso e para além de umas visitas esporádicas à rua da Felicidade (ninguém poderia ter escolhido um nome mais sugestivo...), o seu relacionamento foi sempre muito bom, sendo somente de recordar, pelo seu aspecto caricato, um episódio ocorrido em 1931, quando um grupo de dez soldados e 2 cabos landins foi escolhido para representar as forças expedicionárias de Moçambique na exposição colonial de Paris.

Como já dissemos, os landins são dotados de uma excelente estatura física, tendo sido escolhido um deles para servir de soldado tipo para uma fotografia que iria incentivar os seus conterrâneos por altura do recrutamento.

A semelhança do que se fez para o «poster» do recrutamento, foi escolhido um grupo que estava estacionado em Macau, que por tradição recebia os melhores homens; só que na foto em que se via o oficial branco no meio dos soldados o seu tamanho era nitidamente mais baixo do que o dos seus subordinados, o que, de acordo com a mentalidade da época, era visto como uma prova de inferioridade.

A solução encontrada foi simples: preparou-se uma segunda foto, tirada no campo onde se vê uma coluna seguindo na frente os landins e na rectaguarda o guia, dando assim maior corpulência ao europeu.

Mas a vida dos landins não foi só este ritual de compras e de actividade militar, facilmente notado pelo «Bayte», uma saudação tipicamente landim, uma espécie de mistura de sinais que fazem lembrar um aceno e uma continência e que servia como factor de unidade na vida civil, já que todos os antigos soldados se cumprimentavam deste modo, o que dava ainda mais animação as já animadas ruas de Macau.

Na sequência de incidentes fronteiriços o comando militar de Macau achou por bem transferir para uma unidade estacionada na ilha da Taipa a companhia que tinha estado envolvida, não só para desanuviar a situação como também para evitar futuros incidentes com uma unidade já por si excitada.

Até ao final, a companhia limitou-se a fazer missões de observação e de defesa da ilha e a participar, com o acostumado brilho, na cerimónia do 10 de Junho por ocasião do juramento de bandeira de vários recrutas de Macau, onde realizavam exercícios físicos e demonstrações militares, completados com um concerto dado pela orquestra de corda e de um coro formado inteiramente por landins, tudo isto com o mesmo aprumo com que combatiam.

Para definir estes homens alegres damos a voz ao coronel Pedra Barcelos: «o landim é um pragmático, cumpre sempre à risca aquilo que lhe dizem», daí talvez o facto de muitos deles terem dado coronhadas na cabeça de muitos imprevidentes transeuntes, que fugindo ao sol estival numa procura de uma árvore passavam por detrás das guaritas instaladas nas Portas do Cerco...



Vértices de uma presença

Rua da Felicidade, cachaça, danças tribais

A partir de 1948, os contingentes africanos (da Guiné, Angola e Moçambique) recrutados para Macau, totalizavam, entre praças e cabos, cerca de 500 elementos, e estavam aquartelados na Fortaleza da Guia, em Mong-Há, na Ilha Verde e nas ilhas de Coloane e da Taipa.

Entre as 15 e as 18 horas, isto é, durante o período de licença, os soldados africanos, ou visitavam a Rua da Felicidade, ou passeavam pelas ruas de Macau, nos riquexós (alguns já bastante afectados pela cachaça).

À noite, no quartel, e quando as circunstâncias o permitiam, acendiam uma fogueira, onde uma conversa algarviada tentava evocar, sem desânimo, os horizontes longínquos da terra natal.

Apesar disso, o soldado tentava adaptar-se à vida ocidental. Uma forma de aculturação - e talvez a principal- terá sido a religião já que quase todos estavam baptizados, ou pelo catolicismo, ou por tendências cristãs protestantes. Ambas as tendências tiveram muito sucesso na sua influência junto das tropas africanas.

No que diz respeito aos católicos, havia em todos os quartéis uma delegação da Legião de Maria e na Gruta de Nossa Senhora de Fátima, cantava-se o terço todas as noites. Saliente-se também que alguns africanos chegavam a catequizar os seus conterrâneos.

As suas funções no quartel consistiam, para além dos exercícios militares diários, em trabalhos de faxina e de conservação de estradas.

Apesar das doenças que, muitas vezes faziam abater ao afectivo em tantos soldados africanos, estes ficavam em Macau normalmente durante o período duma comissão de dois anos.

Em 1974 já não existiam referências à sua presença e em 1975 é extinto o Comando Territorial Independente de Macau, apagando-se, assim, todos os traços da mentalidade africana que foi utilizada para diversos propósitos, mas que também nunca abdicou da sua originalidade e tradições. (P.J.L.)

* PMM: o autor do último artigo identificou-se apenas através das iniciais P.J.L.

Revista Nam Van foi uma publicação do Gabinete de Comunicação Social do Governo de Macau
Nossos Agradecimentos

Publicação Agosto 2010

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