segunda-feira, 30 de abril de 2012

FILME "OS DONOS DE PORTUGAL"

(clique sobre a imagem para ampliar)

Donos de Portugal é um documentário de Jorge Costa sobre cem anos de poder económico. O filme retrata a proteção do Estado às famílias que dominaram a economia do país, as suas estratégias de conservação de poder e acumulação de riqueza. Mello, Champalimaud, Espírito Santo – as fortunas cruzam-se pelo casamento e integram-se na finança. Ameaçado pelo fim da ditadura, o seu poder reconstitui-se sob a democracia, a partir das privatizações e da promiscuidade com o poder político. Novos grupos económicos – Amorim, Sonae, Jerónimo Martins - afirmam-se sobre a mesma base.

No momento em que a crise desvenda todos os limites do modelo de desenvolvimento económico português, este filme apresenta os protagonistas e as grandes opções que nos trouxeram até aqui. Produzido para a RTP 2 no âmbito do Instituto de História Contemporânea, o filme tem montagem de Edgar Feldman e locução de Fernando Alves.

A estreia televisiva teve lugar na RTP2 a 25 de Abril de 2012. Desde esse momento, o documentário está disponível na Net

Para ver, clicar aqui:

domingo, 29 de abril de 2012

Mário Pinto de Andrade: a lucidez é um sorriso triste

 

Em 1948, Lisboa devia ser triste. O regime fascista asfixiava, os ecos de um pós-guerra aportavam, anunciando, ainda num murmúrio surdo, o início de uma era que mudaria a correlação de poderes até então instituída. A maquilhagem imperial começava-se a borratar na cara da velha cidade-madrasta.
Nas ruas da capital da metrópole, os estudantes das colónias, entre os quais um recém-chegado jovem de vinte anos, vindo de Golungo Alto - Mário Pinto de Andrade. “Foi em Lisboa que o conheci, no final da década de 40, estudantes da mesma escola, tentando ele fazer jornalismo para se poder manter aqui; procurando transmitir os testemunhos culturais dos africanos que nas colónias viviam, a dos disseminados pela Europa e Américas”. Recordação do editor João Sá da Costa, no texto de apresentação dos livros A Guerra do Povo na Guiné-Bissau (Mário Pinto de Andrade), Sagrada Esperança (Agostinho Neto) e Nós, os do Makulusu (Luandino Vieira), em 9 de Dezembro de 1974.

Na Casa dos Estudantes do Império, Mário conhece Amílcar Cabral, Agostinho Neto e outros nomes fortes que acabariam por empurrar do pedestal o colonialismo português. Os debates e tertúlias sucediam-se. “Mário era capaz de ouvir uma pessoa durante uma hora seguida, sem interromper. Quando tomava a palavra comentava, ponto por ponto, os vários argumentos. Ao contrário de outros políticos de movimentos nacionalistas que pareciam usar uma dupla linguagem - a política e a pessoal - , com o Mário tive sempre a impressão de estar a falar com uma ‘pessoa inteira’”, recorda Carlos Moore, etnólogo cubano-jamaicano que conheceu o nacionalista angolano nos anos 80. “Sempre que não estava de acordo com alguma ideia, sorria, mas não de forma irónica. Ele era muito aberto e fraterno, com ele a conversa era possível”, remata.
com Amílcar Cabral 

com Amílcar CabralEsta postura remontava já aos primeiros tempos de Lisboa. “Quem o ouvisse falar, fosse à mesa do café Chave d’Ouro, ou na casa do [poeta santomense da negritude] Francisco Tenreiro, ou no café-clube perto do Museu das Janelas Verdes (onde se juntavam africanos residentes em Lisboa e os que vinham e iam de Angola com as últimas notícias clandestinas), aperceber-se-ia que o que dele vinha era uma constante batalha de pregação da lucidez de espírito”, descreve o editor João Sá da Costa. “Era isso que o apaixonava: a lucidez.”

Aprendiz de ensaísta

“Surpreendido pela História num lugar e tempo determinado”, como escreveria muitos anos depois, Mário Pinto de Andrade desde logo apontou baterias para a luta contra o sistema colonial. Depois de cinco anos em Portugal, salta para Paris onde frequenta a Sorbonne, edita a Présence Africaine e convive com Jean Paul-Sartre, Anta Diop, Léopold Senghor e com uma figura para ele determinante na interpretação e teorização do pan-africanismo e da negritude: o antilhano Aimé Césaire, que Mário colocava “muito alto na hierarquia das suas relações”, como recorda o intelectual e economista egípcio Samir Amin na mensagem de condolências enviada a Sarah Maldoror, depois da morte do seu amigo angolano. Carlos Moore recorda também “o conhecimento profundo” que Mário de Andrade tinha “sobre as origens e diferentes tendências do pan-africanismo”, que relacionava com “as diásporas africanas, o que não era corrente naquela época entre dirigentes políticos africanos, à excepção de Kwame Nkrumah.” “Ele achava necessário recuperar a auto-estima dos africanos negros, mas ao mesmo tempo identificava algumas contradições que teriam que ser resolvidas”. 

A reflexão sobre a negritude, o panafricanismo e as lutas de libertação foi uma das preocupações constantes do intelectual angolano. Nos últimos anos de vida, colaborou com a UNESCO. Assinou uma bibliografia que inclui títulos como Origens do Nacionalismo Africano, Amílcar Cabral – Éssai de biographie politique, e inúmeros artigos e crónicas.

Numa entrevista inacabada a José Eduardo Agualusa (Público, 11 de Setembro de 1991), Mário Pinto de Andrade relembra que começou a sua produção intelectual com “poesia, como toda a gente”. “Poesia incipiente”. Continuou com contos até se transformar no que dizia ser num “aprendiz de ensaísta”. Apesar desta auto-apreciação, vários intelectuais consideram o pensamento deste personagem do nacionalismo angolano essencial. René Depestre, poeta do Haiti e amigo de Mário, observa que o angolano “era todo o contrário de um intelectual ‘superficial’”. “A seriedade dos seus propósitos e do seu pensamento escondia uma viva sensibilidade de poeta”, lê-se na mensagem de condolências que Depestre enviou a Sarah Maldoror.

“Ele era um pensador”, considera, por sua vez, Carlos Moore, que se recorda de longas conversas sobre “marxismo e a revolução em Cuba” com “uma pessoa muito curiosa”. Um “dandy da escrita”, chamou-lhe Carlos Lopes, sociólogo guineense e brasileiro, no artigo “Mário Pinto de Andrade: A Grande Ausência” (Soronde, Janeiro de 1991. “[Ele] era capaz de se corrigir a si mesmo cinquenta vezes antes de considerar o acto de parir palavra como consumado e autêntico”. “Esse rigor à disciplina”, reflecte, “traiu-no muitas vezes e, incompreendido por alguns, não provocava por espontaneidade o mérito que merecia. Tal atitude não o atemorizava e parecia-lhe como que o preço a pagar pela ‘integridade intelectual’”.

E o momento fê-lo político

Os contactos de Mário Pinto de Andrade com os movimentos independentistas africanos começam em Paris, ainda nos anos 50. O agora político desdobra-se em contactos em Argel, Casablanca, Accra e Conakry, num processo que culminou em 1960, ao tornar-se no primeiro presidente do MPLA. Ocupa o cargo durante dois anos, até à fuga de Agostinho Neto de Portugal. Em 1961 é eleito secretário-geral da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. 

Rabat Kesha (ANC), Marcelino dos Santos (CONCP, FRELIMO), Amália Fonseca (CONCP, PAIGC), Nelson Mandela (ANC), Mário Pinto de Andrade (CONCP, MPLA) e Aquino de Bragança (CONCP) em Rabat, Marrocos, em 1962.  
Rabat Kesha (ANC), Marcelino dos Santos (CONCP, FRELIMO), Amália Fonseca (CONCP, PAIGC), Nelson Mandela (ANC), Mário Pinto de Andrade (CONCP, MPLA) e Aquino de Bragança (CONCP) em Rabat, Marrocos, em 1962. 

Mário travava a sua luta pela independência “com uma caneta e não com um fuzil”, aponta Carlos Lopes, facto que não escapava desapercebido dentro do partido. “Troçavam dele porque não ia ao Maqui, mas ele (…) era incapaz de matar”, defende a companheira do nacionalista, Sarah Maldoror. “Ele não era um combatente de armas. Era um combatente de espírito”.

Na verdade, a estrutura partidária pouco teria a ver com o nacionalista, sugerem os seus amigos. “Ele era um homem da esquerda marxista, mas não marxista-leninista. Preocupava-se muito com a liberdade de criação e independência intelectual. Era um pensador, não era um homem de aparelho”, salienta Carlos Moore. “No entanto, compreendia que, no mundo moderno, para se desenvolver uma luta de emancipação, era necessário criar um partido político”.

Na mesma linha, o amigo Carlos Lopes não hesita em escrever que “Mário, apenas por equívoco ocupou cargos de responsabilidade governativa, ele que, pelo seu diálogo permanente, interrogação fértil e contestação rápida dos princípios instituídos, preferia esta do lado da inversão, senão subversão intelectual”. Classificando-o como um “democrata socialista, internacionalista”, o egípcio Samir Amin não duvida que o nacionalista angolano “sabia o que fazia” e que “estava “perfeitamente consciente dos limites históricos do combate do momento, dos problemas novos e das dificuldades que a vitória certa traria”. Como o exílio.

Deixar Angola e a utopia

Em 1974, depois de protagonizar, com o seu irmão Joaquim Pinto de Andrade, a chamada “Revolta Activa”, em oposição a Agostinho Neto, Mário abandona Angola, onde nunca mais volta em vida.
Parte então para a Guiné-Bissau, onde já tinha estado durante a guerra colonial, e onde ficou conhecido por “Bibi” entre “os camaradas mais chegados” do PAIGC, relembra o amigo José Araújo no artigo “No Tempo dos Aviões” (Tribuna, 1 de Setembro de 1990). No país dos grandes rios, torna-se, a convite de Luís Cabral, o Primeiro Comissário de Informação e Cultura e, mais, tarde, no Ministro da Cultura, trabalhando com os artistas locais, entre os quais o célebre poeta, compositor e intérprete José Carlos Schwarz, que o dirigente “tanto encorajou”, recorda José Araújo. Em 1980, Nino Vieira derruba Luís Cabral, atirando Mário para uma nova errância que se prolongou ao longo dos dez anos de vida que lhe restavam entre França, Portugal e Moçambique.

“O exílio torturava-o”, relembra Carlos Moore. “Havia várias camadas de sofrimento no seu sorriso. Quando falava na guerra civil em Angola ficava com o olhar perdido e interrogava-se: ‘quem imaginaria que isto pudesse acontecer?’” E havia “a distância da família”, aponta, costante desde os tempos da luta nacionalista, e que terá deixado mais marcas nele próprio que nas suas duas filhas. “Soube desde cedo que o meu pai não estava connosco, porque tinha algo de muito importante a fazer. Independentemente da ausência, recebi muitas referências dele, através de cartas e dos momentos em que estávamos juntos e em que ele nos transmitia conhecimentos e despertava interesses”, conta a filha mais nova, Henda Ducados.

Mário Pinto de Andrade faleceu a 26 de Agosto de 1990. Voltou então “a casa”, onde foi sepultado no Cemitério Alto das Cruzes,em Luanda. Sarah Maldoror, em take final: “Creio que o Mário vai ter importância daqui a 10 anos, quando os angolanos escreverem verdadeiramente a história do seu país. (…) Nessa altura toda a sua dimensão – política e intelectual – será reconhecida (…) Podemos opinar tudo o que queremos sobre Mário Pinto de Andrade menos questionar a sua integridade intelectual ao longo de toda a história do MPLA. Morreu como se devia – na maior pobreza. Morreu sem deixar nada às filhas. Mas era dono de uma honestidade e rectidão fora do comum”.


*As cartas e artigos citados fazem parte do espólio de Mário Pinto de Andrade reunido na Fundação Mário Soares, e que está disponível em www.fmsoares.pt/aeb/dossier13


artigo originalmente publicado no Novo Jornal, Angola, Agosto de 2009
  por Pedro Cardoso


 O valioso tempo dos maduros

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!


Mário Pinto de Andrade


(Para quem não conhece, político angolano, co-fundador do MPLA)
 http://forum.angolaxyami.com/angola/129100-o-valioso-tempo-dos-maduros-por-mario-pinto-de-andrade.html

Gentil Viana, um dos fundadores do MPLA: o preço da divergência



                          Lisboa 1999. Gentil Viana, Mário Pinto de Andrade e Adolfo Maria (foto Net
 

Conheci o Dr. Gentil Viana — um dos fundadores do MPLA — na Cadeia de São Paulo. Estávamos em sectores diferentes da cadeia, mas, a partir de um contacto fortuito no posto de socorros, a 2 de Março de 1978, iniciámos uma relação de partilha e solidariedade que me apraz, ainda hoje, recordar.

Ele sabia já da minha presença nas prisões de Angola e conhecia os gestos e lugares de tortura por onde eu havia passado. Ele próprio era peregrino na mesma viagem de violências gratuitas. Naquele momento, a sua tristeza era maior porque o estado de saúde dos seus olhos tinha piorado, em consequência das agressões cubanas, e temia o abismo da cegueira. Contou-me, aliás, num dos encontros posteriores, que era um amante do desporto, mas que naquele estado nada feito... "quando a bola está a uns três metros, vejo-a com o olho direito, mas o esquerdo apenas vê uma sombra".

Este primeiro encontro ficou-se pela timidez que a presença vigilante dos carcereiros impunha. Ainda teve tempo de me contar que havia sido, em Portugal, Delegado do Ministério Público; a partir de Portugal iniciou uma travessia exílica até à independência de Angola. A conversa não podia ir muito mais longe. Deixei-lhe o Paris Match e o desejo de outro encontro.

O dia 4 de Março deu-nos uma nova oportunidade de encontro, oportunidade que se repetiu frequentemente durante o ano de 78. Apesar da situação dos seus olhos pediu-me algumas revistas para tentar ler. Ofereci-lhe o Lê Nouvel Observateur, o L 'Express e o Paris Match. Apercebi-me então de que este membro-fundador do MPLA havia perdido já a vista esquerda em consequência das agressões de que tinha sido vítima, sobretudo aquelas que tiveram lugar no comboio. Quando lia algum tempo com continuidade era atacado por espasmos que o obrigavam a largar a leitura de imediato.

No dia seguinte encontrámo-nos num lugar discreto, na hora do sol. Foi um diálogo cheio de interesse. Falou-me da sua estadia, durante dez anos, na China, e das traduções para português dos pensamentos de Mão que aí realizou. Pude saber que Gentil Viana tinha chegado a fazer uma "greve de fome" em protesto contra as agressões, acto que o conduziu moribundo ao Hospital Militar. Ficou na enfermaria-prisão, junto do combatente americano Marcello Grillo. Este mesmo me deu testemunho da situação humilhante e desmoralizante em que o deixaram na enfermaria — a soro e com as mãos atadas à cama. Só o desamarravam para comer e ir à casa de banho. O estado de debilidade era tal que os seus passos, quando se deslocava à casa de banho, não ultrapassavam uns dez centímetros. Ali permaneceu seis meses. Proibiram-lhe toda a leitura e privaram-no das visitas da esposa.


O acordo de Alvor = pedaço de papel

O acordo de Alvor = pedaço de papel

14-01-2005 | Fonte: Lusa (Vera Magarreiro)

O acordo de Alvor, que há 30 anos permitiu a independência de Angola e previa a paz na antiga colónia portuguesa, representa para António Almeida Santos (na foto), um dos signatários, apenas “um pedaço de papel” que “não valeu nada”.
Em entrevista à Agência Lusa, o dirigente do Partido Socialista Português, que a 15 de Janeiro de 1975 era ministro da Coordenação Interterritorial e integrava a delegação portuguesa que assinou com os líderes dos três movimentos de libertação de Angola o acordo de Alvor, no Algarve, refere que, assim que viu o documento, soube que “aquilo não resultaria”.
O acordo “previa a eleição de uma assembleia política disputada por três partidos, que tinham por detrás três exércitos e três países cheios de ambições económicas, materiais”, afirma o deputado, para justificar a sua certeza de que a solução era “inexequível”.
Além das disputas internas, estava em causa o apoio aos movimentos de três potências mundiais, em plena guerra-fria – o MLPA era apoiado pela URSS, a UNITA pela África do Sul e, num plano de fundo a própria China, e a FNLA pelos Estados Unidos, “não apenas politicamente, mas com dinheiro, material e formação”.
“Era um tabuleiro em que as grandes potências jogavam o xadrez ligado ao petróleo e aos diamantes”, afirma Almeida Santos, que na altura propôs ao “amigo” Agostinho Neto, colega dos tempos de Coimbra, uma reunião com os líderes dos três movimentos “à margem” da cimeira de seis dias, que decorreu no Hotel Penina, em Alvor.
O encontro prolongou-se pela madrugada e Almeida Santos transmitiu a sua oposição à solução encontrada: “Com este esquema vocês vão continuar aos tiros”.
“Com um órgão de cúpula em que havia uma representação dos três movimentos, ou seja dos três exércitos, que decisões é que eles iriam conseguir tomar? Como era possível conseguir uma maioria? O que ficasse em minoria desataria aos tiros”, argumenta.
Propôs então uma solução alternativa que previa uma presidência rotativa. Cada um dos líderes assumia rotativamente o cargo de presidente, de primeiro-ministro e de chefe das forças armadas ou presidente do parlamento.
A solução assentava ainda na criação de uma Constituição, que seria referendada e serviria para estruturar o novo Estado. As eleições realizar-se-iam apenas quando o país estivesse estabilizado e não antes da independência como ficou estabelecido no Acordo de Alvor.
Os três aceitaram mas, à saída, Agostinho Neto disse que tinha ainda de consultar o comité central do MPLA sobre a proposta.
“No dia seguinte a resposta foi negativa”, lamenta o deputado socialista, para quem esta solução, de que muito se orgulha, podia ter traçado um rumo diferente dos acontecimentos.
Resignou-se à solução, mas tem pena de ter sido apenas um “escriba” do documento.
“O acordo já vinha pré-estabelecido pelos líderes dos movimentos. Eu e Mário Soares (então ministro dos Negócios Estrangeiros) limitámo-nos a meter o acordo em bom português”, destaca.
“Do acordo de Alvor sou apenas um escriba, não sou mais do que isso”, reforça, lembrando que Portugal não teve outra alternativa, senão assinar por baixo o que os líderes dos movimentos decidiram uma semana antes de Alvor, em Mombaça, no Quénia.
Sobre a reunião de Mombaça, diz que “foi quase um milagre conseguir sentá-los (aos líderes dos movimentos) à mesma mesa, porque a guerra civil já estava no auge, principalmente em Luanda, onde já se estavam a matar uns aos outros”.
Para Almeida Santos, Portugal teve “um atraso mínimo de dez anos e máximo de 20″ no processo de descolonização em relação a outros países como a França, a Inglaterra, a Holanda ou a Bélgica e era preciso “encontrar uma solução” urgentemente.
“As nossas tropas estavam saturadas da guerra, o que, de certo modo levou à revolução do 25 de Abril” e originou uma “psicose de pressa”, refere, lembrando que, além disso, as tropas portuguesas estavam “à beira de uma derrota na Guiné-Bissau e em Moçambique a situação estava a deteriorar-se cada vez mais”.
“Era um castelo de cartas. Sabia-se que quando caísse a primeira carta, cairiam todas as outras. Em resultado disso a descolonização foi feita em condições péssimas”, refere.
A descolonização devia ter sido feita progressivamente, porque a própria opinião pública portuguesa “não estava preparada para um salto rápido” que implicava “a perda das colónias” mas isto gerou a desconfiança nos movimentos de libertação, que exigiram a negociação simultânea de um processo de paz.
A guerra colonial prolongou-se por mais alguns meses após o 25 de Abril, o que “agravou a revolta dos militares”. “Não percebiam porque continuava a matar-se a morrer-se”, sublinha o deputado.
“Gerou-se então um clima de indisciplina, já ninguém mandava em ninguém, já não havia respeito por qualquer tipo de ordem”, uma situação “perigosíssima para quem tinha que negociar a descolonização”, agravada pelo facto de ser necessário chegar a acordo “com três e não apenas um movimento de libertação”, analisa.
“Nas circunstâncias, o acordo de Alvor foi o acordo possível, em extremo de causa. É preciso ver que é um acordo entre três beligerantes, entre três exércitos em luta uns contra os outros. É mais um armistício do que um acordo de descolonização”, considera.
No entanto, com este acordo, Portugal ganhou legitimidade para dizer “isto é um problema deles, fizemos o que tínhamos a fazer, agora entendam-se”, destaca Almeida Santos. “De certa forma legitimámos a nossa saída”.
Sem desistir da proposta apresentada em Alvor aos três dirigentes angolanos, Almeida Santos reapareceu com um documento “na mesma base”, em Junho de 1975, aproveitando a ideia de que o acordo devia ser revisto porque não estava a ser cumprido.
“O governo concordou, o Presidente da República também, mas infelizmente o Melo Antunes (na altura ministro sem pasta responsável pelos processos de descolonização) discordou, não sei porquê”, recorda.
O dirigente socialista considera que Melo Antunes estava “agarrado” à esperança de que ainda era possível que os três movimentos chegassem a acordo e recorda uma visita que ambos fizeram posteriormente a Luanda, em que conseguiram “uma trégua de duas ou três semanas”.
Estas tréguas, diz, eram, no entanto, “precárias” dado que “as razões por que eles lutavam eram tanto internas como de fora, porque naquela altura a guerra-fria mobilizava paixões terríveis”.
“Cada um defendia os seus interesses, interesses que cheiravam a petróleo e brilhavam como os diamantes, eram interesses muito fortes”, reforça.
“Fomos ultrapassados pelos acontecimentos e aquele acordo de Alvor é um acordo que não valeu nada”, sublinha Almeida Santos.
O deputado recorda o seu discurso durante a tomada de posse, em Luanda, do governo provisório acordado em Alvor, em que afirmou: “este acordo tanto pode vir a ser um bom acordo para salvar Angola como pode vir a ser apenas um pedaço de papel”.
“Infelizmente, foi apenas um pedaço de papel”, diz, 30 anos depois.
Questionado pela Lusa sobre se Portugal cometeu o mesmo erro com as negociações de paz de Bicesse, em 1991, Almeida Santos responde que não percebe por que não resultou, dado que terminara a guerra- fria, mas avança uma hipótese: “provavelmente era cedo demais, ainda não havia a saturação da guerra”.
Sobre o fim do conflito armado em 2002, possível após a morte de Savimbi, o socialista responde com uma declaração que fez há anos em Angola e que, na altura, “chocou os jornalistas”: “Angola está condenada a que a guerra dure até que um dos contendores vença o outro”.
Sobre se o cenário seria diferente caso a UNITA tivesse assumido o poder em Luanda em vez do MPLA, Almeida Santos defende que diferente seria certamente, mas que não sabe se melhor.
“Tenho as minhas dúvidas. Se ganhasse a FNLA, ficávamos debaixo da pata do Mobutu (ditador do ex-Zaire), que não era flor que se cheirasse, se ganhasse o Savimbi, ficávamos não só debaixo da pata do Savimbi mas também da África do Sul, racista. Das três hipóteses viesse o diabo e escolhesse”.
O acordo de Alvor, composto por 60 artigos, acabou por ser suspenso temporariamente três meses antes da independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, pelo então presidente da República, Francisco da Costa Gomes, que invocou a sua violação constante.
De Alvor, os líderes dos três movimentos de libertação – Agostinho Neto, pelo MPLA, Jonas Savimbi pela UNITA e Holden Roberto pela FNLA – levaram pelo menos a garantia de serem “únicos e legítimos representantes do povo angolano” No seu discurso, após a assinatura do acordo de Alvor, que considerou de “transcendental importância”, o presidente Costa Gomes deixou aos dirigentes dos três movimentos o desafio de encontrarem “soluções angolanas autênticas, baseadas na capacidade de diálogo, no espírito de cooperação e na boa vontade de servir” o país, apesar das “diferenças sociais, filosóficas e políticas”.
Prevaleceram as diferenças e foi abandonado o diálogo. O resultado foi mais 27 anos de guerra, desta vez civil, num país que Costa Gomes qualificou na altura como dos “mais florescentes do continente africano”.
  14-01-2005 | Fonte: Lusa (Vera Magarreiro)

RETIRADO DAQUI

ANGOLA 38 anos de guerra...


 
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"....38 anos de guerra não produziram apenas uma tragédia em Angola. Produziram milhões de tragédias: 2 milhões de mortos, 1,7 milhão de refugiados, milhares de órfãos, 200 pessoas mortas de fome por dia, 80 mil crianças, velhos, homens e mulheres mutilados pelas milhões de minas semeadas pelo país afora. Em Angola, são milhões de tragédias, cada qual com um nome e uma história de final infeliz.

      A tragédia que se chama Margarida João fecha os olhos e vê de novo o obus (artefato explosivo em forma de bala gigante, disparado de longa distância) caindo sobre o prédio onde morava em 1993, na cidade de Huambo, matando 35 vizinhos e amigos. Abre os olhos e vê a mãe, a filha Joelma, de 16 anos, um tio e dois sobrinhos assassinados a sangue frio pela guerrilha da Unita. Dorme e sonha com a fuga em direção a Luanda, 20 dias a pé, bebendo água da chuva, meio morta de fome. Acorda espremida com outras 15 pessoas numa tenda de lona verde puída no campo de deslocados de guerra Comandante Gika, na capital do país, onde mora há seis anos e onde talvez viva até morrer.

      Miquirina Jambo, Félix e Maurício são os nomes de três outras tragédias. Em1993, Miquirina, que tinha 23 anos, foi com o primo Félix cortar lenha no mato. Félix, que ainda não tinha sete anos de idade, pisou numa mina. Desesperada, Miquirina correu para buscar ajuda. E pisou em outra mina.

      Félix morreu perfurado pelos estilhaços. Miquirina perdeu a perna esquerda, mas sobreviveu para botar no mundo quatro filhos doentes. Um deles, Maurício, de três anos, está agora largado no chão do acampamento de deslocados de Huambo, capital da província de mesmo nome, onde a família vive desde que chegou em dezembro do ano passado, fugindo da guerra civil. Maurício não sabe falar. Um dia, ardeu de febre, quase morreu de diarréia e perdeu também para sempre, como descreve a mãe, "a força de andar". Maurício vê o mundo triste do acampamento com olhar distante, o rosto meio coberto de moscas. De vez em quando, tirando forças ninguém sabe de onde, ergue a mãozinha muito magra e espanta as moscas. Mas elas voltam.

      Quando nasceu, Maurício não tinha esperanças de viver mais que 42 anos: é essa a expectativa de vida em Angola, a quinta mais baixa do mundo. Com o passar do tempo, diminuem as chances de envelhecer: doente e desnutrido, Maurício corre o risco de engordar as estatísticas de mortalidade infantil, uma das mais altas do planeta: nada menos que um quarto das crianças morrem antes de completar cinco anos de vida. De sarampo, pólio, meningite, malária, diarréia, fome.

      Maurício tem a pele meio devorada pela sarna. Não é o único. Por falta de sabão para lavar o corpo e a única roupa do corpo, segue a sarna a comer a pele de boa parte dos 22 mil deslocados de guerra desse acampamento conhecido como Coalfa porque está instalado nos galpões varados de tiros de fuzil da antiga fábrica homônima. Por ironia do destino _ como se estivesse escrito em algum livro santo que o destino da Angola é morrer em guerra _ a Coalfa fabricava sabão...

      Em Kuito, capital da província de Bié, que já foi uma cidade florida e hoje tem mortos da guerra plantados nos jardins e quintais das casas, cada rosto que espia por trás de paredes e muros destruídos pela fuzilaria e pelos obuses conta uma tragédia, pelo menos uma. Mas Manuela Marinho, sozinha, carrega oito: o marido Francisco e os sete filhos (Solange, 16 anos; os gêmeos Maximiano e Helder, 14; Letícia, 11; as gêmeas Ana e Joana, 9; e a caçula Rossana, 7), mortos por um obus quando tomavam café da manhã. As oito tragédias de Manuela estão enterradas numa única cova, neste país de cruzes em vez de flores.


CONTINUE A LÊR  SOBRE AQUILO QUE FOI A TRAGÉDIA QUE SE ABATEU SOBRE O POVO ANGOLANO APÓS A  RETIRADA DE ANGOLA DOS PORTUGUESES EM  1975...





Descolonização de Angola, desmbarque de cubanos, luta entre os movimentos de libertação e fuga dos portugueses...


MEMÓRIAS José Carlos Rodrigues


Imbondeiro (foto do autor)
Entrei hoje casualmente no seu Site e devo dar-lhe parabéns pois está muito bem escrito e documentado com boas fotos.
Em 27 de Outubro de 1975, exactamente da mesma forma e pelos mesmo motivos de todos que vieram nessa altura, o mesmo já depois de independência, enfim também tenho as minha Memórias para descrever e vou fazê-lo quando tiver mais tempo.
Tenho 55 anos de idade, nasci em 1951 e saí de Angola há quase 31 anos. O motivo de lhe mandar este mail, são apenas dois e são os factos que mais marcaram a minha vida: o primeiro, é uma pequena correcção, que de tanto ser repetida em tudo quanto é livro e até documentação oficial, passou a ser verdade, mas a verdade e essa, vivi eu e vi com estes olhos que a terra há-de comer, é que os cubanos chegaram a Angola, não em Outubro mas muito antes, embora já não precisando a data foi em meados de Agosto de 1975, sempre desmentido por todos o canais oficiais da altura e pelo próprio "careca" Rosa Coutinho, que exactamente no dia que os cubanos desembarcaram que foi num sábado, nunca mais esqueço pois foi exactamente em Porto Amboim que eles desembarcaram em solo angolano.
Eu estava na altura em Novo Redondo onde era o chefe da fábrica de algodão do Chingo, estava casado há pouco tempo e vivia numa suite do Hotel Senador na Avenida da Praia.


No dia que fiz um mês de casado em Julho, dia 29, pelas 15 horas da tarde começaram os tiros em Novo Redondo, obrigando a população a resguardar-se durante três longos dias no Palácio do Governo à espera de uma coluna militar portuguesa. Enfim, várias peripécias foram vividas depois disso e acabámos sempre em fuga aos tiros que no Lobito, para onde fomos, quer em Benguela, quer em Nova Lisboa onde fui sozinho porque tinha lá deixado o meu carro a reparar e pintar (uma viagem dramática e cheia de casos onde vi a morte por perto várias vezes).
Mesmo depois disto tudo pensei sempre que sendo angolano deveria ficar na minha terra. Ajudei muita gente a por os caixotes das suas coisas nos barcos do Porto do Lobito, mas nunca pensei vir. Entretanto as coisas acalmaram um pouco em Novo Redondo e eu que tinha prometido e fechar o balanço da empresa onde estava, regressei a Novo Redondo sozinho e fui terminar o que tinha prometido.
Entretanto, como tinha os meus pais e família em Posto Amboim onde nasci, ia aos fim de semana para lá e foi num desses fins de semanada de Agosto quando vim à rua num sábado, vi com os meus olhos todo aquele aparato de militares que se posicionavam de 100 em 100 metros de metralhadoras apontadas às pessoas, e descarregavam e arrancavam de imediato para as frentes de combate de Luanda e Huambo, camiões, carros blindados, tanques e milhares de soldados.
Acredite que ainda hoje vejo e sinto a cena como tal, mais parecendo que estava a ver aqueles filmes da II Guerra Mundial (o material dos cubanos era muito parecido e antiquado).
Fiquei quieto e mudo pois nesse dia perdi a esperança de ficar em Angola e de ver aquela terra evoluir num sentido positivo, convivendo nela toda a sociedade multirracial que ninguém acreditava que existia, mas quem lá esteve sabe que era assim e também sabe que hoje seria um verdadeiro país desenvolvido e com 50 ou 60 milhões de habitantes seria mesmo o maior país de África e um dos maiores do mundo. Mas não deixaram, não quiseram, tiveram medo de mostrar para o resto do mundo que seria possível viveram brancos negros e mestiços todos juntos viverem em ambiente saudável de paz em alegria. Não deixaram!!!
Nesse sábado que parece ontem ainda, cheguei a casa e ouvi na rádio ao almoço exactamente o "careca" (almirante vermelho Rosa Coutinho) dizer aos jornalista: cubanos em Angola?, vocês inventam cada uma? Nem pensar.
Foi nesse dia que disse ao meu pai português da Sertã que estava desde 1917 em Angola sem nunca ter vindo mais a Portugal, pela primeira vez: "Pai isto acabou. Já não vai ter fim e o país está tramado e nós também". Vou arrumar as minhas coisas e vou na ponte aérea, seja o que Deus quiser mas Angola jamais será a minha Angola. 
O meu pai que sempre nos dissera vocês são angolanos devem lutar e viver na vossa terra apenas olhou para mim (e ainda hoje choro quando me lembro da sua cara, choro ainda também) pôs-me as mãos em cima dos ombros e disse: "vai filho, tu és novo e ainda tens uma vida pela frente, vai e vai de cabeça levantada".
Eu disse-lhe: "pai vamos todos isto não vai ser nada". E ele disse-me: "eu sou um velho e tenho 75 anos nunca voltei a Portugal também eu não vou agora a mim eles não me fazem mal precisam de mim mas tu vais e não voltamos a falar nisto, vais e tratas amanhã de tudo que precisas".
Nesse sábado chorei sozinho nessa praia de Porto Amboim, olhando para os batelões que descarregavam continuamente o material e os soldados cubanos. 


O autor na praia (foto do autor)

É preciso notar que esta costa tinha de praia dum morro ao outro cerca de 6 km. E deste morro ao outro lado que se vê na outra  foto da Vila de Porto Amboim até ao morro dos "3caminhos" (?) havia mais de 15 km de praias. Uma verdadeira  maravilha da natureza. Também eu eu vi entrar os Cubanos, penso que os primeiros que puseram pé em terras de Angola, em meados de Agosto de 1975. Foi por ali que descarregaram todo o seu material bélico e de imediato avançaram para as frentes dos combates. Não ficaram mais que dois dias em Porto Amboim. Parecendo aquilo que é, este era o 4º. Porto em tonelagens de cargas e descargas de Angola. Por aqui passavam todo o café, algodão, óleo de palma e outros que saíam de Angola e entrava o vinho por exemplo que vinha em barris de madeira. Todos os grandes navios de carga ou mistos da altura paravam aqui, Ambrizete, Ganda, Pátria, Zaire etc. E ficavam à cerca de 300 m da praia, sendo depois o transbordo feito por batelões. Nesses dias trabalhava-se 24 horas sobre 24 horas. Hoje desta bela imagem apenas existe a areia, o morro, o cais embora maltratado e o mar. Tudo o resto da Restinga, o cinema novo que ali foi construído e o campo de desportos de salão, tudo desapareceu engolido pelo mar e pela falta de cuidados. Nada, mesmo nada, desse sítio lindo onde se passaram belos momentos, ali existe mais.  
E assim foi. Saí de Angola depois de vários problemas (tive que dormir no meu carro uma semana inteira no Lobito para conseguir pô-lo no último navio de carros que saiu de Angola e no dia 27 de Outro) aterrei no aeroporto de Lisboa com 10.000$00 de Angola e outra de algumas recordações pessoais deixando para trás uma vida que estava no inicio e bem bonita já, mas sobretudo deixando para trás as ilusões, os sonhos, a família, os amigos (muitos deles ou quase todos pretos e mestiços) o coração muito especialmente o espírito, a alma ficou lá e ainda deve andar por lá a vaguear.
Desculpe o tempo que levei a descrever isto mas também um dia terei de descarregar em memórias escritas todas as emoções que ainda estão acumuladas dentro de mim me fazem constantemente sofrer e assim há-de ser até à minha morte. 
Mas foi exactamente esse sábado de Agosto e esses cubanos que ainda não estavam em Angola( apenas deviam ser fardas e bonecos de madeira), que decidiram a minha retirada e cortaram aos pedaços o meu coração de angolano.
Portanto não acredite nas datas dos documentos. Acredite que os cubanos chegaram a Porto Amboim a primeira terra de Angola a porem os pés (uns dias depois acho que também desembarcaram na zona do Ambriz e Ambrizete).
Infelizmente tinha fotos deste facto bem como outras colhidas do meu tempo da tropa no comando chefe da Fortaleza de Luanda, mas tudo por lá ficou e alguns desses foram destruídos e roubados em dois controles dos pioneiros (miúdos armados em soldados do MPLA mas que se fosse preciso disparavam sem saber porquê).
Esta é a verdade acredite. Tão verdade que os meus olhos ainda vêem a imagem e verão sempre.
O segundo facto que queria dizer, era apenas a constatação de que provavelmente o 25 de Abril ter sido uma guerra de terrorismo ter acabado em Angola. Entrei para a tropa em 22 de Outubro de 1971 (emocionei-me um bocado depois ao fim destes anos todos vi hoje aqui no seu Site a foto da porta do Regimento do quartel de Nova Lisboa onde fiz a recruta) e depois de um mês de mato onde nada acontecia quase sempre, fui colocado em Luanda na fortaleza como um dos responsáveis da cantina da messe dos oficiais, assistia e dava apoio às reuniões que lá se faziam com as mais altas patentes militares, portuguesas e por vezes também estrangeiras com o general Luz da Cunha na altura e até ao 25 de Abril o Chefe do Estado Maior em Angola. 

Além disso também estive destacado alguns meses nos serviços de psicologia na guerra, também lá na fortaleza e embora sem os poder mostrar porque me foram destruídos, tive várias vezes na mão cópias dos mapas do controle do terrorismo, cartas das organizações que apoiavam os movimento turras e outros documentos e posso afirmar sem dúvidas que em 74 não havia qualquer zona (repito qualquer zona) do território angolano ocupado por qualquer movimento (UNITA, MPLA, FNLA ou qualquer outro) e também esses movimentos já não tinham apoios de armas apenas de medicamentos, cobertores e mantimentos que lhes eram dados pelos americanos, russos, suecos noruegueses e outros países que pela democracia os apoiavam.
Portanto já não havia guerra. Os movimentos estavam dominados e passavam fome, apenas fazer combates de emboscadas e fuga em algumas zonas do Leste de Angola (aliás quem os viu entrar em Angola depois do 25 de Abril) sabe muito bem como eles se apresentaram, esfarrapados, esfomeados e com uma maioria de canhangulos tendo apenas o FNLA que recrutou zairenses e recebeu fardas novinhas bem com metralhadoras que ainda brilhavam. Lembra-se disso com certeza.

Ora bem não havendo guerra em Angola, a paz interessava a quem? E sem guerra como seria as fortunas que os nossos militaras (alguns claro) fizeram. Então não havia luta a altura mais indicada para o 25 de Abril. Um dia veremos alguns destes valorosos e briosos heróis, como Soares, Otelo Saraiva & Cª entrar a história deste 25 de Abril. Agora não me venham é a dizer que se perdeu a Guerra em Angola por isso é a mentira mais infame que se poderá contar e pelos menos a memória dos que morreram naquela terra não merecem isso.
Bem já vou longo mais poderia dizer, mas apenas queria referir estes dois factos. Pelo menos é a minha verdade e não a verdade da história mas quantas verdades nós aprendemos ao longo dos anos na escola, no liceu e nos livros que são apenas as verdades possíveis ou as verdades que a política deixou escrever?

Acho que esta pergunta é uma bela forma de terminar. (...) Nós fomos impedidos de ser um país e quando digo nós, refiro-me aos que nasceram em Angola e aos portugueses que eram tão angolanos também mas não seremos nunca impedidos de ter memória, de ter coração, de ter alma, de ter espírito e de ter saudades.


  José Carlos Rodrigues NV034970@netvisao.pt
 


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Notas sobre as conclusões do Seminário Guerra de África - Portugal Militar em Africa 1961-1974 - Actividade Militar, realizado no IESM em 12 e 13 de Abril de 2012. Por Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso

O texto que segue, da autoria dos Coronéis Matos Gomes e Aniceto Afonso, dois  militares insuspeitos que viveram a guerra colonial (61/74), dá-nos uma explicação para a Revolução dos Cravos, para a descolonização, para a construção da Democracia em Portugal, e vem contrariar com dados concretos e factuais, muitos desconhecidos da maior parte, algumas teorias ideológicas que afirmam que a Guerra do (então) Ultramar estava ganha ou controlada. Os autores explicam a situção concreta na Guiné, Angola e Moçambique, bem como as questões politico-militares e sociais que se viviam nas 3 Províncias Ultramarinas, bem como em Portugal. Que cada um tire as suas conclusões!


guerra ultramarAA e CMG Conclusões do colóquioIESM1213april2012.pdfguerra ultramarAA e CMG Conclusões do colóquioIESM1213april2012.pdf
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ERA UMA VEZ UM MILÉNIO. Entrevista com Tenente-Coronel Aniceto Afonso e Fernando Rosas “Em tempo de mudança, a História do Século XX”


 
 


Por Franklin Rodrigues, Ana Colaço, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

A 4 de fevereiro de 1961 elementos do MPLA assaltam em Luanda a casa de reclusão militar, o quartel da PSP e a delegação da Emissora Nacional. 4 de Fevereiro de 1961 marca o início das guerras coloniais em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Em Portugal o Rádio Português recebia a 4 de Fevereiro a crónica do correspondente em Luanda.
Atenção Luanda, atenção Humberto esperamos com interesse as tuas informações.
Depois da conversa que tivemos há pouco, a situação em Luanda está perfeitamente calma. Podem tranquilizar-se aí em Lisboa. Estabelecimentos prisionais à mesma hora. Denunciam-se manobras do exterior pois parece não restarem dúvidas dada a acção que de relaciona com as directrizes da chamada Junta Revolucionária de Libertação Ibérica, mas como aconteceu...
Era esta a visão dos factos do correspondente do Rádio Clube Português em Luanda ano de 1961. A guerra colonial 36 anos depois, é hoje o tema do nosso programa como sempre com a colaboração do professor Fernando Rosas e o convidado é o tenente-coronel Aniceto Afonso.


Fernando Rosas - Um convidado muito especialmente para nos falar deste assunto. Ele está neste momento juntamente com o coronel Matos Gomes e outros colaboradores a escrever aquilo que é o primeiro ensaio de história da guerra colonial. Sai semanalmente num jornal diário. Senhor tenente-coronel há condições para se começar a escrever a guerra colonial do ponto de vista quer subjectivo da opinião das pessoas quer do ponto de vista do acesso às fontes
Tenente-coronel Aniceto Afonso - Bem, de facto, em primeiro lugar, nós devemos ser muito prudentes quando tratamos de questões complexas da História recente, mas isso aplica-se a todos os âmbitos e a todos os campos da História. Muitas vezes não temos acesso a todas as fontes, temos menos certezas do que de outras épocas em que as fontes estão acessíveis, mas não pode marcar-se uma data a partir da qual se pode começar a falar das coisas. Relativamente à acessibilidade da documentação, há documentação acessível. Ao nível do Exército a documentação está acessível com trinta anos, portanto está acessível até 1966 e para além disso há muito testemunho e alguma obra já escrita sobre a guerra.
Fernando Rosas - Tem tido colaboração nesse trabalho de antigos combatentes, mesmo fora da instituição militar, ou seja gente que queira dar testemunho, fotografia, documento.
Tenente-coronel Aniceto Afonso - Sim. Principalmente tivemos muita colaboração relativamente às fotografias. Portanto, nesse aspecto como a obra é uma obra de divulgação e tem que ser profusamente ilustrada e então tivemos que recorrer a muitas fontes e a muitas pessoas que possuíam arquivos pessoais fotográficos importantes e nesse aspecto sim, tivemos a colaboração de muita gente.
Fernando Rosas – E da parte da instituição militar há disponibilidade no sentido de a investigação e nomeadamente a investigação não militar poder ter acesso às fontes sobre esse período?
 
Tenente-coronel Aniceto Afonso – O acesso às fontes tem normas e a norma que o Exército utiliza hoje é a norma europeia, isto é, trinta anos após os acontecimentos os arquivos são abertos, só que em Portugal há um problema que sempre vem ao de cima, é a questão do tratamento da documentação. O tratamento da documentação é um processo lento, é um processo que exige muito pessoal e pessoal preparado tecnicamente e nem sempre as instituições dispõem desse pessoal e por isso, embora se acumulem nos arquivos muita documentação e muitos fundos arquivísticos que são fundamentais para o estudo desse período, a verdade é que não existe disponibilidade para se fazer o seu tratamento e portanto existe sempre dificuldade em colocá-lo em acesso ao público. No exército todo o material que está tratado arquivisticamente até 1966, portanto, que já fez trinta anos, está aberto ao público. Está a acessível.
Fernando Rosas – Haveria mais questões a tratar sobre esta questão da acessibilidade, mas eu penso que para não transformar isto numa conversa excessivamente técnica sobre acesso aos arquivos, eu ia pôr-lhe uma questão sobre o nosso objecto que é esta. Há uma questão que se nos impõe. Como é que um país como Portugal, economicamente pouco desenvolvido nos anos sessenta, consegue aguentar durante treze anos uma guerra em três frentes, mobilizando cerca de, mais de 100 000 mil homens, com despesas naturalmente vultuosas. Como é que do seu ponto de vista de historiador do assunto, como é que se conseguiu aguentar esta guerra. Porque era barata? Por fraqueza do inimigo? Porquê?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Bem, eu julgo que talvez um pouco de todos esses factores. Digamos a situação que se colocava, que se colocou a Portugal era de sustentar uma guerra em três teatros de operações extremamente distantes uns dos outros, extremamente distantes da retaguarda, uma guerra que, sendo no terreno, principalmente na primeira fase da guerra, portanto digamos até meio da guerra, barata era, no entanto, por estas circunstâncias de distância uma guerra cara.
Fernando Rosas – Porque é que se tornou mais cara?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Tornou-se mais cara porque as guerras como sempre têm tendência para evoluir tecnicamente e dá-se a evolução dos dois lados e à medida que se dá essa evolução tem sempre que se equilibrar aquilo que se chama potenciais de combate e ao equilibrar potenciais de combate aumentam-se substancialmente as despesas relacionadas com o material que são normalmente as despesas mais pesadas na guerra, na condução da guerra. De modo que eu julgo que os motivos por que se manteve uma guerra dessas durante tanto tempo podemos dissecá-los em vários campos. São questões de natureza política e são depois também questões de natureza de aplicação militar ou doutrinário, digamos, de princípios militares da guerra de guerrilhas. Eu julgo que aí, apesar de tudo, devemos reconhecer às forças armadas portuguesas uma capacidade que não parecia ao seu alcance e que elas conseguiram compreender o tipo de guerra que iam enfrentar e conseguiram opor-lhe uma doutrina que talvez seja em alguns aspectos inovadora.
Fernando Rosas – No campo da contra-guerrilha.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – No campo da contra-guerrilha. É verdade que o adversário, portanto, os movimentos de libertação nas colónias portuguesas só começaram a estruturar-se, portanto a ser mais fortes em termos militares, já passados alguns anos do início da luta armada, mas não é menos verdade que noutros territórios coloniais isso também aconteceu e no entanto rapidamente a guerra evoluiu ou para soluções que não eram só de natureza militar, para soluções de natureza política ou evoluiu para confrontos mais de outra natureza, portanto que ultrapassou a natureza da guerrilha e que obrigou exactamente a encontrarem-se soluções políticas. Nas colónias portuguesas isso não aconteceu, portanto prolongou-se esse estado, digamos, um pouco de irresolução, não é. Portanto, sem se saber de facto em que sentido caminhar. Se para uma solução política, para a exigência, as próprias circunstâncias exigirem uma solução política ou para a continuação do mesmo nível da ...
Fernando Rosas – O senhor tenente-coronel referiu há pouco que as forças armadas portuguesas assimilaram com rapidez a problemática das novas condições desse tipo de guerra. Tinham tido, ao que sei, alguma experiência anterior ao próprio começo da guerra, na Argélia e noutros centros de instrução. Creio que os franceses e os ingleses terão sido as fontes dos conhecimentos principais. A pergunta que eu queria fazer, no entanto, era esta. Acha que a partir de algum momento da guerra da parte das chefias há a noção de que a guerra não tem solução militar e acha que por virtude dessa consciência se terá aberto uma conflitualidade com o poder político?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Quase temos que separar caso a caso, pessoa a pessoa. De facto houve, em primeiro lugar, houve esse contacto prévio com outros teatros de operações, principalmente na Argélia, que trouxeram um conhecimento a esses oficiais que frequentaram.
Fernando Rosas – Antes mesmo de começar...

Tenente-coronel Aniceto Afonso – Antes mesmo de começar a guerra e o facto é que nós, em 1961, o Exército produziu um manual que se manteve em execução até ao final da guerra. Com pouquíssimas alterações que é “O Exército na guerra subversiva” e esse foi o manual de todos os militares que fizeram a guerra e como ele se manteve sempre, praticamente não precisou de alterações é porque, de facto, esses militares perceberam o que é que era essencial numa guerra de guerrilhas porque, digamos que o meio da guerra de guerrilhas não é o terreno e perceberam rapidamente que é a população. Digamos há na manobra militar, há várias manobras e a manobra militar aqui é talvez a manobra menos importante. A grande manobra é a manobra das populações.
Fernando Rosas – Da qual a militar é complementar.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – A manobra militar é complementar e na guerra de guerrilhas, digamos, o Exército português percebeu isso. Julgo eu que percebeu isso duma forma geral muito cedo e por isso a organização do Exército em quadrícula nos teatros de operações foi fundamental para resolver esse problema do enquadramento das populações. Os militares que se situavam numa zona de acção, numa área apercebiam-se rapidamente dos problemas fundamentais dessa área e principalmente das populações dessa área e souberam, portanto arranjaram soluções para, de alguma forma, furtar a população à acção dos movimentos de libertação. Julgo que isso foi fundamental. A outra questão...
Fernando Rosas – Da parte das chefias. Falava eu da questão da consciência das chefias. Se terá ou não desenvolvido
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Esse é outro problema [Fernando Rosas – Irresolução militar da guerra] Esse é outro problema. Houve chefes que compreenderam isso bastante cedo e à medida que nós aprofundamos o conhecimento que temos deles e dos seus documentos vamos percebendo que muito cedo se aperceberam disso e houve chefes que nunca se aperceberam disso. Isto é fizeram a guerra sem se aperceber. [Fernando Rosas – O general Spínola, o general Costa Gomes]. Eu julgo que podemos falar de nomes, eu julgo que podemos falar de nomes. Julgo que os dois que referiu se aperceberam que a solução da guerra não podia ser militar. [Fernando Rosas – E esses homens criaram escola nas Forças Armadas do ponto de vista...?] Mais o general Spínola criou, mais o general Spínola criou escola do que o general Costa Gomes até porque isso está de acordo com as suas próprias características pessoais, a sua personalidade. O general Costa Gomes, já falando em cada um dos casos, o general Costa Gomes digamos aplicou a sua solução no Leste de Angola e quando ele é comandante chefe de Angola e aplicou uma solução de certa forma por antecipação. Ele percebeu que a guerra ia ter uma segunda fase em Angola que era o Leste e antes que se desse a abertura dessa frente, ele instalou as tropas no terreno, fez a sua quadrícula e portanto adiantou-se de alguma maneira ao início da guerra por parte dos Movimentos de Libertação [Fernando Rosas – Dificultou a abertura da frente Leste ao MPLA] Dificultou exactamente, dificultou e muito para além de outras medidas que foram concorrentes com esta, complementares desta. A criação de forças irregulares que foi o acordo a que depois chegou com a UNITA. Portanto a própria existência de mais do que um Movimento facilitou também o papel das Forças Armadas.
Fernando Rosas – Mas ele tinha a consciência de que todas essas medidas eram medidas tendentes a ganhar tempo para uma solução política.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Há isso sempre. Parece-me hoje evidente que mesmo nos escritos oficiais e mesmo naquilo que veio a ser publicado, dito pelo general Costa Gomes na altura que é evidente que ele acha sempre, deixa sempre uma mensagem de que a guerra não se podia resolver só por meios militares.
Fernando Rosas – Mas de qualquer maneira, encontrará, creio que não me engano, se sugerisse ao senhor tenente-coronel que é difícil encontrar mais oficiais generais a partilhando desse ponto de vista na altura.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Vamos do outro que é o general Spínola.
“Há que entrar no âmago do movimento africano, detectar as aspirações comuns e sobre estas construir esquemas de cooperação e interdependência que liguem de facto africanos e europeus e permitam sobre essa solidariedade afirmação de sólida unidade político-económica. Não se nos afigure porém impossível tal solução, senão pela via da construção de sociedades individualizadas, unificadas sob um estatuto que, garantindo a pluralidade, constituem na ordem externa uma unidade suficientemente flexível para que pelo seu seio as diversas partes possam prosperar, afirmar-se e realizar-se”.
(Excerto de discurso do general Spínola)
O general Spínola foi para a Guiné em 1968 como Comandante Chefe e Governador Geral, é uma situação pouco comum. Se reparar bem em todo o... [Fernando Rosas – Concentrar o poder político e o poder civil] Concentrar o poder político e o poder militar na mesma pessoa num teatro de operações. Ele foi para lá nessa situação em 1968 e logo em 19668 ele fez um estudo de situação em que anuncia, de alguma forma, aquilo que virá a ser a sua acção durante os cinco anos que ele lá esteve e em que não nos deixa dúvidas nenhumas ao ler os seus escritos e essas suas directivas, não nos deixa dúvida nenhuma que ele percebeu, desde o princípio, que aquilo era uma guerra sem solução militar e que era preciso conjugar uma solução política, arranjar uma solução política, que necessariamente passaria por negociações com os Movimentos de Libertação, o PAICG, para chegar a uma solução. É claro que essa solução era na altura compreendida, uma solução dentro dum, uma solução portuguesa, se assim quisermos dizer, mas que fosse partilhada com o PAIGC, evidentemente.
Fernando Rosas – Evidentemente, isso no general Spínola vai ela própria evoluindo.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Vai também, vai também. Não tenho é tanto a certeza em que sentido em que ela evolui. [Fernando Rosas – Se para trás, se para a frente] Sim. Não tenho a certeza. Parece-me que ele em 1968 faz um diagnóstico exaustivo da situação e chega exactamente à conclusão que são necessárias negociações.

 Fernando Rosas – E acha que a partir de certa altura ele terá pensado que é possível ganhar militarmente a guerra?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Julgo que não, julgo que no terreno não. Agora poderia ser  [Fernando Rosas – Como explica a Operação Mar Verde no sul da Guiné] Talvez essa seja das atitudes inexplicáveis. Talvez seja porque [Fernando Rosas – Talvez pressão do seu ´staff´] Talvez sim. Também não tenho um conhecimento suficiente, em termos dos acontecimentos, para situar a Operação Mar Verde no conjunto de acções que ele estava a fazer onde a Operação Mar Verde parece não ter lugar.
Locutora - Já agora, desculpem, como é que foi a Operação Mar Verde?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Estamos a falar duma Operação que nós chamamos irregular que é uma Operação feita no exterior, portanto feita no exterior do território do teatro de operações, na Guiné-Conacri, com tropas de certa forma irregulares também, embora sendo constituídas também por militares, eram também, de alguma forma, irregulares. Era uma operação feita no exterior, com finalidades políticas. [Fernando Rosas – Só para os ouvintes saberem, finalidades essas que consistiriam em derrubar o Sekou Touré e aparentemente liquidar fisicamente Amilcar Cabral]. Esse segundo objectivo que tem constado parece tão incongruente que o general Spínola vinha fazendo e com a aproximação que ele vinha fazendo exactamente ao Amilcar Cabral através do Senghor que de certa forma não encontramos uma explicação muito válida ainda hoje não encontramos uma explicação muito válida para saber o que é que ele poderia ter feito, quer dizer, o que é que o general Spínola e mesmo Portugal poderia ter feito com uma vitória, se tivessem alcançado esses objectivos de derrubar o Sekou Touré e matar o Amilcar Cabral, se esse era verdadeiramente o objectivo. [Fernando Rosas – Libertar os presos, etc.] Sim, esse foi o objectivo atingido, mas os outros se tivessem sido atingidos talvez hoje não se perceba muito bem o que é que se teria feito com isso porque o Governo Português, Portugal iria ficar numa situação extremamente incómoda em termos internacionais e o general Spínola também iria ficar ele próprio também numa situação extremamente incómoda, quase insustentável, portanto, continuamos a interrogarmo-nos sobre essa questão da Operação Mar Verde. Mas essa não nos parece ser a linha de pensamento do general Spínola. Parece-nos ser alguma coisa que estaria fora do pensamento dele com [Fernando Rosas – Constato que temos um chefe militar com o pensamento de conjugação da solução militar com a política em Angola, um na Guiné, em Moçambique falta um chefe militar desse género.] Faltou, Julgo que faltou.

Fernando Rosas – E isso teve repercussões na condução da guerra?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Teve muito, muitas repercussões.
Fernando Rosas – Diga-me um pouco como é que observa esse problema.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Esse, portanto, o chefe que se associa à guerra em Moçambique é o general Kaulza de Arriaga. O general Kaulza de Arriaga foi Comandante-chefe a partir de 1970 e desde logo fez uma coisa que os mais prudentes generais, mesmo os menos prudentes generais portugueses já não faziam em 1970. Já tinham aprendido muito com a guerra e já sabiam que neste tipo de guerra não de faziam grandes operações. As grandes operações que se fizeram, fizeram-se no início da guerra, fizeram-se em Angola, foi a operação que levou à reocupação de Nambuongongo, a Operação Viriato, é uma grande operação que envolve grandes efectivos. Fez-se na Guiné com a Operação Tridente de ocupação da ilha de Como, também uma operação conjunta com os três ramos das Forças Armadas e com grandes efectivos. [Fernando Rosas – Estamos a falar de operações de guerra clássica] Um pouco de guerra clássica, não é. Começando uma guerra seguinte como forma de acabar a de guerra anterior, não é. Na segunda guerra e portanto aplicou-se nestes territórios essa grande operação. Em Moçambique também se fez uma grande operação no planalto dos Macondes, em Cabo Delgado, que foi a Operação Águia, também um pouco com esta dimensão [Fernando Rosas – Antes da Nó Górdio] Muito antes, logo no início da guerra. Estamos a falar nas três grandes operações que se fez uma em cada teatro, logo no início da guerra. [Fernando Rosas – Portanto naquilo que se pode chamar uma primeira fase da guerra.] Uma espécie de primeira fase. Isso até é uma fase muito rápida. Rapidamente se percebeu que isso não era o tipo de operações daquela guerra. Aquela guerra era uma guerra de pequenas operações, de grande dispersão de tropas, de presença de tropas no terreno, com forças de quadrícula, ocupando todo o terreno e depois forças de intervenção que fariam as tais operações mais concretas, não é. Kaulza de Arriaga em 1970 parece que ainda não teria percebido este princípio da guerra de guerrilhas e em 1970...
Fernando Rosas – Qual era a filosofia da Operação Nó Górdio?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Em 1970 a filosofia era praticamente igual a esta filosofia que se aplicou em 61 até 64, nestas grandes operações. São grandes operações que se destinam a expulsar o inimigo duma zona e foi o que aconteceu. O que estava em causa era o planalto dos Macondes onde a FRELIMO tinha bases, bases que já vinham desde há vários anos e que toda sabia que elas existiam e onde estavam, mas que na condução duma guerra de guerrilhas eram encaradas duma certa maneira pelas forças portuguesas a quem não incomodava que as bases da FRELIMO estivessem naqueles locais desde que elas não saíssem daquela área ou daquela zona de acção e desde que a guerra não se estendesse para além de certos limites. Os limites que eram fixados, a zona de guerra, digamos, era fixada o que se pretendia principalmentalmente era que a guerra não alastrasse a outras zonas. Digamos era uma guerra morna não é, que se desenvolvia naquelas áreas. Quando o general Kaulza de Arriaga prepara a Operação Nó Górdio, Operação de grande dimensão, com muitos efectivos, que vai actuar nesse planalto dos Macondes onde a FRELIMO estava instalada, com assalto às bases da FRELIMO. É uma Operação preparada com alguma antecedência.
Fernando Rosas – Era possível um Comandante-Chefe de Moçambique ter completa autonomia para desencadear uma operação que contrariava um pouco a doutrina militar em vigor nas Forças Armadas nesse momento.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Eu não posso afirmar se ele teve ou não teve autorização para fazer essa Operação. Julgo que sim.

 Fernando Rosas – O Chefe Maior General já era o general...
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Em 1970 sim. Mas julgo que Costa Gomes. Não, julgo que ainda não era. Eu julgo que o Comandante-Chefe tinha autonomia para fazer esta operação ou outro tipo de operação. Digamos na sua carta de comando não se lhe impunha o tipo de operação que devia fazer. A condução da guerra, digamos, após ser nomeado [Fernando Rosas – Pode-se dizer não havia uma doutrina militar vigente acerca da condução da guerra.] Havia, mas não neste aspecto. Havia, a doutrina militar que havia era nesses aspectos do dia a dia, da ligação, da condução das pequenas operações, das emboscadas, do golpe de mão, de patrulhamentos, portanto todas essas pequenas operações e da relação com as populações. Aí sim, havia doutrina. Se se fazia uma grande operação ou uma pequena operação isso depende do chefe. Se estrategicamente é importante fazer ou não fazer.
Fernando Rosas – Corrigir-me-á, mas o que julgo perceber é que se está instalada uma doutrina militar de quadrícula para a condução da guerra e de repente se mete em cima dessa doutrina uma operação deste género isto desarticula completamente todo o esquema militar que está em vigor.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Até certo ponto podemos admitir que sim. Até certo ponto podemos admitir que sim porque as forças militares que forem empregues nessa operação foram principalmente forças militares de intervenção, portanto não são as forças militares de quadrícula. Portanto, são aquelas forças que estão de reserva sob o comando directo do Comandante-Chefe, embora vários batalhões de quadrícula tenham participado também nas acções que são complementares propriamente dos assaltos e dos golpes de mão às bases da FRELIMO. O que aconteceu é que isto foi sabido pela FRELIMO com muita antecedência porque os sistemas de informação funcionam para os dois lados, e quando se deu o assalto evidentemente as bases da FRELIMO estavam desocupadas, já não estava lá ninguém da FRELIMO e digamos todos os guerrilheiros ou a maior parte dos guerrilheiros estavam fora da área que foi definida para a grande operação e portanto os resultados digamos, em termos da aplicação de meios, os resultados foram bastante diminutos.
“Portugal, anos 60: a guerra colonial”. Com a colaboração do professor Fernando Rosas e do tenente-coronel Aniceto Afonso, tema ainda dos próximos programas.
Fizeram este programa Franklin Rodrigues, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 21 de Novembro de 1997)





2ª Parte


CONTINUA...

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Os Zombo e o futuro (Nzil’a Bazombo): na Tradição, na Colónia e na Independência, by Jose Carlos de Oliveira

 Tese de Doutoramento
Os Zombo Este subgrupo étnico, também conhecido por Bazombo, Bambata (Ba Mbata), foi considerado como a elite mercantil da região de M’Bata e parte integrante do célebre Reino do Kongo . O seu chefe ancestral, Nsaku Ne Vunda ou...   [More]
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quarta-feira, 25 de abril de 2012

"As Portas que Abril Abriu" poema de José Carlos Ary dos Santos








«As Portas que Abril Abriu»
José Carlos Ary dos Santos



Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra. 

Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.

Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração. 


Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.

Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.

Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.

Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.

Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa. 


E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.

Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.

Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão. 


Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.

Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril 

fez Portugal renascer.
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas. 


Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe. 


Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.

Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.

Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.

A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:


minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.

Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.


Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.
Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões. 


Com generais desta apanha
já não há revoluções.

Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.

E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.

Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.

Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.


– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.

Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.

E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:


ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:


Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer. 


Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.

Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão. 


Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.
Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza! 


De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse. 


Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder! 


E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!


Lisboa, Julho-Agosto de 1975