Este blog visa apenas dar visibilidade a textos de autores considerados de interesse para a compreensão da História Colonial de Angola. Por abarcar os mais diversas abordagens, é um blog dedicado aos de espirito aberto, que gostam de avaliar assuntos, levantar questões e tirar por si próprios suas conclusões. É natural que alguns assuntos venham a causar desagrado, e até reacções da parte daqueles cujas perspectivas estejam firmemente cristalizadas.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
Quando, em 1836, a opção africana se impôs na política do Governo português, o ministério de Sá da Bandeira tomou importantes medidas legislativas sobre a abolição da escravatura e a protecção do comércio entre as colónias e Lisboa. As relações internacionais impostas pela complementaridade entre as economias industriais e os fornecedores de matérias-primas determinavam o enfraquecimento do comércio triangular através do Brasil e o reforço da ligação directa à metrópole.
Tais medidas resultaram em grandes perturbações na economia ultramarina e nas relações entre o poder colonial e os poderes africanos.
As autoridades coloniais eram as primeiras a demonstrar incapacidade para executar a nova legislação, visto que a actividade económica se reduzia ao comércio e este, por sua vez, ao tráfico de escravos para a América.
Os grandes comerciantes exportadores, que punham em movimento, a partir da costa, o comércio de longa distância, eram apenas negreiros que não sabiam nem queriam lidar com outro tipo de «mercadoria». A exportação em grandes quantidades do marfim, da cera, da goma copal, da urzela não interessava aos traficantes nem aos seus concessionários, uns e outros habituados aos grandes lucros, com pouco esforço, oferecidos pela escravatura. A inaptidão conduziu ao desespero das burguesias urbanas de Luanda e Benguela, que concentravam nas mãos a ligação ao comércio internacional. Famílias influentes emigraram para o Brasil e com elas os capitais que detinham. É certo que, com a conivência da administração, a exportação de escravos continuaria ainda, por cerca de dez anos. Mas a expectativa da vigilância marítima internacional e as pressões por parte do Governo central faziam prever um fim a médio prazo.
Uma crise profunda instala-se nos centros motores do comércio de longa distância (Luanda e Benguela) e nos entrepostos mais activos (Cassange e Bié). As firmas comerciais ordenam aos seus «aviados» o abandono das feiras e outros estabelecimentos. Em consequência, o fornecimento regular de manufacturas ao mercado africano é suspenso.
No Bié e decerto noutras áreas mais concorridas pelos comerciantes, as populações tinham substituído as quinhangas tradicionais pelos tecidos importados de algodão de fraca qualidade, manufacturados primeiro na índia e depois na Europa, expressamente para o mercado africano. Quando estes faltaram, regressaram rapidamente ao vestuário tradicional.
Tem-se esquecido esta etapa africana de um circuito composto por uma corrente de ida e volta. A pressão exercida pela frente africana e a fragilidade dos meios coloniais revelam-se claramente no facto de a moeda usada pelas autoridades administrativas portuguesas nos pagamentos internos ser de origem africana, «moeda de palha», e ter cotação relativamente à moeda metálica oficial, a macuta. Os libongos, tecidos-moeda de fibra de palmeira e de fabrico africano, constituíam um meio de pagamento em espécie renovável, que correu em Luanda até finais do século XVII e só em 1852 deixou de ser usado pela administração colonial para pagamento aos soldados.
Toda uma gama de soluções terá sido adoptada pelas populações do interior no que respeita a outras mercadorias importadas menos deterioráveis. As contas ou as conchas podiam continuar a servir respectivamente de enfeite ou de moeda, durante muitos anos. As mulheres lunda possuíam colares de execução complexa, compostos por contas de todas as formas, cores e grandezas, «algumas decerto eram de facturas muito antigas, pois o nosso comércio já aí as não leva».
Os responsáveis e participanmtes de uma caravana eram verdadeiros técnicos de transportes; únicos meios de comunicação regular entre o litotal e o interior de África. Neste bilhte postal (fotografia obtida em Benguela) transparece a cosesão do grupo, organizado e armado em volta da figura central o macota, ele próprio acompanhado pelos pombeiros sentados, tendo em frente uma carga acomodada no olomango.
As sociedades africanas, em que estavam inseridos os entrepostos, haviam recebido os agentes administrativos ou comerciais, que aí permaneciam mais ou menos tempo, constituindo famílias luso-africanas. Alguns destes núcleos familiares tiveram origem no século XVIII e sobreviveram, atravessando as crises, como entidades que se diferenciavam, não tanto pela relação com a sociedade local, mas pela capacidade de relacionamento com os elementos da sociedade colonial. É o caso da família Conceição Matos, cujo fundador foi o capitão-mor do Bié, Francisco da Conceição Matos, nomeado em 1791. Português de origem brasileira, tornou-se o fundador e educador de numerosa família, cujos traços originais persistiam ainda no final do século XIX.
A família Coimbra, mais recente, fundada pelo capitão-mor Francisco José Coimbra (1835), apresenta-se como o exemplo de um grupo familiar cujo comportamento não obedecia às regras de nenhuma das duas sociedades. Enquanto a família Conceição Matos constitui um elo de ligação que preza as duas culturas em interacção, o clã Coimbra usa em seu proveito as vantagens do duplo contacto, desrespeitando ambas.
O segundo comportamento tornou-se melhor conhecido, porque os indivíduos que o seguiram usaram de mais violência, sobressaíram pela negativa e deles ficou má memória. Isto, porém, não quer dizer que eles fossem em maior número. Casos e famílias de comportamento semelhante ao primeiro exemplo são menos identificáveis, porque pactuaram, apaziguaram, se aculturaram.
Quando os «aviados» receberam ordem expressa dos seus «armadores» para abandonar as feiras do sertão, deixaram para trás as famílias mestiças. Os filhos jovens rapidamente foram integrados pela linhagem materna. Quando em 1846, Rodrigues Graça chega ao Bié encontra-os «ao desamparo, vestidos à moda gentílica (,..)». Apenas alguns velhos sertanejos, comerciantes por conta própria, resistiram, reforçando a ligação à sociedade africana.
Nos dez anos que decorreram entre 1836 e 1846, a «fronteira flexível» sofreu um refluxo brusco, directamente resultante da desorganização do comercio de longa distância. As culturas africanas recuperaram espaço. Os traços culturais transmitidos pelos núcleos luso-africanos do século XVIII e preservados parcialmente pela convivência com os agentes administrativos e comerciais sofreram um maior desgaste. Mas longe de desaparecerem, foram integrados, tal como os filhos mestiços.
CONTINUA...
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Fronteiras de Angola e sua evolução histórica
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"... As primeiras dificuldades surgem em 1846, quando a Inglaterra contestou a soberania de Portugal nos territórios da costa Ocidental da África, situados entre os paralelos 5º 12' e 8º de Lat. S, isto é, entre a margem direita do Zaire e o sul do Ambriz. Tal objecção ao direito e ao regular exercício da soberania de Portugal, foi o que rigorosamente veio a constituir a questão do Ambriz, e o seu prolongamento, a questão so Zaire.
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Angola e a lª República Portuguesa
A proclamação da República na sessão inaugural das Constituintes
Fotografia de Artur Augusto de Oliveira
Fotografia de Artur Augusto de Oliveira
Ilustração Portugu
esa, n.º 282, Lisboa, 17 de Julho de 1911
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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
História da Colonizacão África (séc. XVII-XX)
Perspectivas que se distinguem na abordagem histórica da colonização ...
Investigação importante que só recentemente começou a ser bem explorada .
Impõe-se na pesquisa e análise histórica, uma mente aberta, liberta dos condicionalismo ideológicos e perturbadores....
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Colégio S. José de Cluny em Luanda (1968-1974)
Em Janeiro de 1883, aportaram a Landana, as primeiras religiosas das irmãs da Congregação das Irmãs de S. José de Cluny.
Foi o princípio de uma presença continuada de 125 anos de uma Congregação, iniciada em França, mais propriamente em 11 de Novembro de 1789, na esteira da vitória dos republicanos e jacobinos na revolução francesa.
A história da fundação desta Ordem, tem origem precisamente num episódio, relacionado com uma pretensa perseguição a membros do clero por parte dos republicanos franceses, o que leva a que a bretã Ana Maria Javouey, tenha feito voto para se dedicar ao missionarismo, tendo sido a sua primeira Madre Superiora.
Segundo o professor Martins dos Santos no seu excelente trabalho “Cultura, Educação e Ensino em Angola” diz a páginas tantas “No dia 15 de Maio de 1885, embarcaram em Lisboa, com destino a Angola, a bordo do vapor África, três religiosas de S. José de Cluny, que nos aparecem no documentos da época sob a designação de Irmãs Educadoras, por se dedicarem especialmente à obra educativa e às actividades escolares. Destinavam-se às colónias do planalto sul. O governador do distrito de Moçâmedes, Sebastião Nunes da Mata, empregou toda a sua influência para as reter na cidade, demovendo-as de se transferirem para o interior. Conseguiu os seus intentos e as religiosas estabeleceram-se ali, abrindo pouco depois a sua primeira escola. Segundo certas indicações que conseguimos obter, foi no dia 8 de Julho desse ano de 1885 que se fixaram em Moçâmedes. Foi a primeira povoação angolana a aproveitar-se da meritória acção das Irmãs Educadoras, se exceptuarmos a missão de Lândana, onde se estabeleceram em 1883, portanto dois anos mais cedo.”
Ainda se podia ler mais: “ No decorrer de 1897, chegaram a Angola algumas religiosas de S. José de Cluny, que se destinavam a Moçâmedes. O governador-geral António Duarte Ramada Curto, com o apoio de outros elementos de influência na cidade, instou com elas para se fixarem em Luanda. Desejava que abrissem uma escola, o que efectivamente fizeram; começou a funcionar no dia 1 de Dezembro desse ano, na Rua da Misericórdia.”
“Ainda a propósito dos referidos exames, o governador-geral Ramada Curto louvou, por portaria de 16 de Maio de 1900, as Irmãs Educadoras, nos termos seguintes: "Tendo eu confiado, em Dezembro de 1897, às Irmãs Educadoras, da Congregação de S. José de Cluny, a regência da cadeira de ensino primário, do sexo feminino, da cidade de Luanda, fechada por falta de alunas, e tendo presenciado o aumento sempre crescente do número de crianças matriculadas, vistas as informações prestadas com respeito à competência das professoras e aproveitamento das alunas, hei por conveniente louvar as Irmãs Educadoras, da referida congregação, que têm regido a escola, e em especial a superiora, Ir. Antónia Maria George, pelo zelo, competência e inteligência que têm demonstrado na regência da escola que lhes confiei". As Irmãs Educadoras agrupavam os seus alunos em cinco classes, conforme o seu adiantamento escolar. Por curiosidade, inserimos aqui o esquema do estudo ministrado: —Leitura, escrita e rudimentos de doutrina cristã; —Prática de ler, escrever e contar, e doutrina cristã; —Ler, escrever e contar, doutrina cristã e trabalhos manuais; —Gramática portuguesa, tabuada, aritmética, doutrina cristã e trabalhos manuais.”
Esta foi de uma forma sintética a relação das “madres” com a educação em Angola até à assinatura da Concordata de 10 de Julho de 1940, entre Portugal e a Santa Sé, onde se anexava o Acordo Missionário, que deu à Igreja Católica todas as facilidades e mordomias várias no ensino nas colónias, em detrimento de muitas outras confissões religiosas que ao tempo já trabalhavam na colónia, com algum empenho, tendo algumas sido perseguidas e os seus pastores e missionários presos ou expulsos dos territórios.
No fim dos anos 40, tendo em conta a exiguidade das instalações na Misericórdia, e com grande empenhamento do Monsenhor Alves da Cunha (aproveito para lembrar que parte das letras da peanha da sua estátua caíram, pelo que não seria mau que fossem lá colocadas de novo), foi-lhes dado um terreno na Rua do Kafako, que é nem mais nem menos que o nome muito antigo da rua que desemboca na Rua da Missão.
Ali se construiu um edifício de gosto revivalista-classizante, exemplar de “Arquitectura do Estado Novo”, vulgarmente conhecida pelo gosto “Português Suave”, que dada a sua volumetria, os seus portais, arcadas, frontões, torreões e pináculos é um edifício marcadamente matizado na paisagem urbana.
Desde 1953 até 1975, no colégio de S. José de Cluny em Luanda leccionou-se a raparigas desde a instrução primária até ao 5º ano do liceu, como era costume dizer-se ao tempo, em regime de externato, havendo também algumas alunas internas.
Esse edifício, que foi a seguir à Independência do País o Instituto Pré-Universitário de Luanda, foi entregue à Igreja Católica, aquando dos acordos entre o governo e o Papa Woityla, na sua passagem por Luanda no início dos anos 90.
Desse acordo, surgiu a possibilidade da instalação da Universidade Católica no edifício que sofreu para o efeito inúmeras obras de reparação e beneficiação.
No Huambo também foi criado no fim dos anos 50 um colégio com as características do de Luanda, também orientado pelas” irmãs de Cluny”, que para além destes colégios mais emblemáticos, tinham outros espalhados pelo território de Angola, como por exemplo em Cabinda, Namibe e Malange.
Muitas alunas passaram pelos colégios e internatos da “Congregação das Irmãs de S. José de Cluny”, o que não deixa de ser relevante em trabalhos futuros que se façam sobre o ensino em Angola, pois a sua presença durante 125 anos, perpetuou uma obra que merece cuidado respeito.
Fernando Pereira
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
Fotos: Batuque, organizado pela Diamang no decurso da visita do Presidente Craveiro Lopes
Dundo, Lunda - Junho 1954 - aldeia do Museu Visita de Sua Excelência o Presidente da República, Craveiro Lopes. Batuque, organizado pela Diamang
Da esq. para a drt. Eng. Sucena, Director General. O 2 º ?, 3 º Ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, a seguir, Presidente Craveiro Lopes. Ao fundo e inclinada para a frente, Maria Joana Almeida Santos.
Da esq. para a drt. Eng. Sucena, Director General. O 2 º ?, 3 º Ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, a seguir, Presidente Craveiro Lopes. Ao fundo e inclinada para a frente, Maria Joana Almeida Santos.
Dundo , Lunda, Junho 1954 - aldeia do Museu Visita de Sua Excelência o Presidente da República, Craveiro Lopes. Batuque, organizado pela Diamang
Dundo, Lunda, 1953 - aldeia do Museu. Visita de Sua Excelência o Presidente da República, Craveiro Lopes. Batuque, organizado pela Diamang
Da Rainha Ginga... ao Presidente Craveiro
Angola, 1954. O Presidente Craveiro Lopes está de visita a Angola. Foram trinta e seis dias muito cansativos , que nos levaram aos sítios mais afastados e recônditos daquele imenso território. Houve vários mas breves encontros com populações nativas cada uma com seus costumes e língua próprios. O entendimento só era possível através de intérpretes das mais variadas origens : funcionários administrativos comerciantes da zona, um ou outro oriundo do mesmo povo ou missionários com longa permanência na Região. O caso a que me reporto, aconteceu no Leste, na Província do Moxico, cuja capital é Luso. Terras de Ganguelas e Luxases. Não sei exactamente em que local terá sido montado um grande palanque onde foram recebidos a Raínha N’hacatole, dos Luxases descendente da Raínha Ginga luzindo os seus trajes tradicionais, e o Rei dos Ganguelas, um homem alto e forte, mas sem nada que o inculcasse como Rei.. Trajava camisa e calça de caqui, tipo militar. Mas naquele palanque não havia nada onde fosse possível sentar. Presidente e comitiva, todos estavam de pé. Mas esta pobreza de meios, parecia radicar em algo passado muitos anos antes. Recuemos pois, trezentos anos. Estamos em meados do Século XVl l. O Governador João Correia de Souza recebeu no Palácio, em solene audiência, a Raínha N’ginga N’bandi ( Ginga ) e a sua comitiva constituída pelas mais importantes mulheres do seu reino. Num grande Salão do Palácio, rodeado de toda a sua Corte, Sua Excelência ocupava um opulento cadeirão senhorial em atitude Majestática que manteve à entrada de N'ginga N'bandi. Olhando em volta, a Raínha, não vendo sombra de cadeira, escabelo ou coxim em que pudesse sentar-se, mandou que uma das suas súbditas se pusesse "de gatas" e sentou-se sobre as suas costas. Em 1621,o exército da Raínha veio a derrotar o do Governador.. Em 1681 morre a Raínha Ginga, católica, batipzada com o nome de Ana de SouzaSaltemos de novo trezentos anos, mas agora em sentido inverso. Estamos de novo com o Presidente Craveiro Lopes,a Raínha KangaN’hetol e o Rei dos Ganguelas. O primeiro discurso coube ao Governador do Moxico, Dr Ramos de Sousa,angolano de origem caboverdiana, usando de um tom de voz forte mas empostado como o dos actores de outros tempos. A Raínha insistiu com o Rei dos Ganguelas para que falasse em primeiro lugar. Logo se verá porquê. O discurso foi tão longo quanto o protocolo e o intérprete o permitiram, rematando com a oferta de um boi ao Presidente Craveiro Lopes. O Chefe de Estado agradeceu a oferta, mas na impossibilidade de a transportar no avião, deixava o boi para que pudesse ser consumido numa grande festa do Povo Ganguela. Nos mesmos moldes falou a N’hacatole, mas terminando com um sorriso "malandro" e com dois dedos em riste, ofereceu dois bois. A gargalhada foi geral... ou quase. Não se riu o Rei dos Ganguelas que se terá sentido diminuído,e o Presidente. Aliás nunca o vi rir em toda a viajem .Mas bem faria em soltar umas boas gargalhadas de vez em quando.
É que fazem tão Bem à Alma !. . .
Não desejaria acabar esta história num tom pessimista, mas.. .não teria Presidente boas razões para não rir ?. . . .
"Memórias Ultramarinas", de Virginia Cabral Fernandes
O Utramar português como era visto por Virginia Cabral Fernandes *
1994
"Memórias Ultramarinas"
Escrevo as minhas memórias singelas para quem nunca esteve no nosso ultramar, veja como nós, os Portugueses, amávamos aquelas populações, e eramos também, por elas, amados e respeitados. Saudade, ternura e amor é o que sinto por todos. Os olhos enchem-se-me de lágrimas, ao recordar toda a vida que vivi em Moçambique e em Angola.Todos queríamos a independencia daquelas nações, mas só na devida altura...
CLICAR AQUI
(*Virginia Cabral Fernandes é filha de um ex-Governador-Geral de Moçambique e de Goa, nasceu em Moçambique e nove dos seus 11 filhos nasceram em Angola)
1994
"Memórias Ultramarinas"
Escrevo as minhas memórias singelas para quem nunca esteve no nosso ultramar, veja como nós, os Portugueses, amávamos aquelas populações, e eramos também, por elas, amados e respeitados. Saudade, ternura e amor é o que sinto por todos. Os olhos enchem-se-me de lágrimas, ao recordar toda a vida que vivi em Moçambique e em Angola.Todos queríamos a independencia daquelas nações, mas só na devida altura...
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(*Virginia Cabral Fernandes é filha de um ex-Governador-Geral de Moçambique e de Goa, nasceu em Moçambique e nove dos seus 11 filhos nasceram em Angola)
domingo, 23 de janeiro de 2011
MERCADOS E NEGOCIANTES IMPERIAIS: UM ENSAIO SOBRE A ECONOMIA DO IMPÉRIO PORTUGUÊS (SÉCULOS XVII E XIX)
João Fragoso*
RESUMO
Análise introdutória dos circuitos comerciais e negociantes, que, entre o século XVII e XIX, ligavam as diferentes partes do império português. Fenômeno que o transformava em um sistema econômico. Tal império, apesar de conter diferentes estruturas sociais e econômicas (da aristocrática-camponesa reinol à escravidão americana), possuía algumas formas de acumulação e práticas comuns. Estas derivadas do Antigo Regime português e presentes em suas várias regiões: Reino, Estado da Índia, América e África lusas.
O artigo que segue tem por objetivo analisar os mercados e os
negociantes que viveram o império português no século XVIII e princípios do seguinte. Parte-se do pressuposto que o império luso – incluindo Portugal– não consistia apenas numa entidade administrativa espalhada pelos vários cantos do planeta, possuindo somente como elo de ligação uma mesma coroa. A hipótese que procuro desenvolver é que, para além de todas as
diferenças econômicas e sociais entre o Reino, a América portuguesa, a África lusa e o Estado da Índia, o império apresentava certas identidades que eram dadas por seus circuitos comerciais transoceânicos, suas formas
de acumulação e mais, pelos negociantes que circularam e fizeram fortunas em meio a este mare lusitano. São fenômenos que permitiriam analisar o império – perdoem-me os traumatizados com esta palavra, mas na falta de uma melhor – enquanto sistema econômico. Entendo, aqui, por sistema não tanto geografias que viviam uma mesma relação de produção ou que estavam subordinadas a um mesmo centro, sendo as suas periferias submetidas à lógica e interesse econômicos políticos de tal matriz. Como veremos, tratava-se de um sistema onde existiam diferentes economias, mas cujos mecanismos de reprodução se ligavam via circuitos internos do império, cabendo as suas comunidades de mercadores
– entre outros agentes e instituições – o papel de fazer esta ligação. Em realidade, este ensaio faz parte de uma pesquisa em andamento, portanto, as idéias aqui expostas estão sujeitas a modificações.
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História: Questões & Debates, Curitiba, n. 36, p. 99-127, 2002. Editora UFPR
Portugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-51)
Valentim Alexandre Análise Social, vol. xxvi (111), 1991 (2.°), 293-333
INTRODUÇÃO
Durante mais de três séculos, o tráfico negreiro constituiu uma das molas fundamentais do capitalismo mercantil, fornecendo a mão-de-obra necessária às plantações do Novo Mundo e representando em si uma forma importante de acumulação de capital. A fazer fé em estimativas recentes, de 1500 a 1800 foram exportados de África para as Américas cerca de 8,3 milhões de escravos. O ponto mais alto deste comércio corresponde ao século xviii, com quase três quartos do total (6,1 milhões)
1. Neste mesmo século coube à Inglaterra a principal fatia dessas exportações, com pouco mais de 2,5 milhões, seguindo-se-lhe Portugal, com 1,8, e a França, com 1.2. Holandeses, Norte-Americanos e Dinamarqueses tiveram ainda um papel significativo neste tráfico, sendo residual a participação de nacionais de outros países
2. Momento culminante do comércio negreiro, o século xviii é também o período que vê nascer as correntes ideológicas que lhe contestavam a legitimidade, alimentadas tanto pelo pensamento iluminista como pela renovação do pietismo religioso
3. Em Inglaterra, essa contestação dá origem, em finais de
Setecentos, ao movimento filantrópico, que alcançou grande popularidade na sociedade britânica, ganhando por isso uma influência política considerável.Por outro lado, o arranque da revolução industrial inglesa, fazendo diminuir o peso económico e político dos interesses mercantis baseados no exclusivo de que gozava o açúcar das Antilhas no mercado da Grã-Bretanha, abriu espaço à campanha dos humanitaristas ingleses contra o tráfico negreiro, a qual, favorecida
ainda por factores conjunturais nos primeiros anos do século xix, conduziu à ilegalização desse comércio, decretada pelo governo de Londres em 18074.
A partir dessa data, a pressão abolicionista passa a ser dirigida contra o tráfico de escravos efectuado por outros países. Nos anos seguintes, o governo português —instalado no Rio de Janeiro— vê-se obrigado a ceder neste domínio, mas fá-lo passo a passo, resistindo quanto possível: pelo Tratado
Anglo-Português de 1810, para além da promessa da extinção futura, aceitava limitar o tráfico luso-brasileiro à Costa da Mina e às zonas de África sobre que Portugal reivindicava a soberania; em 1815, em convenção negociada durante o Congresso de Viena, comprometia-se a declará-lo ilegal a
norte do equador; e em 1817, por convenção adicional, concedia à marinha de guerra inglesa o direito de visita sobre os navios portugueses suspeitos de exportarem africanos de zonas proibidas. Tal é a situação por alturas da declaração da independência do Brasil, em 1822. Na prática, o tráfico de escravos luso-brasileiros pouco afectado fora por estas medidas, mantendo números altos na década de 20, tanto a partir das áreas onde era legal (Congo, Angola, Moçambique), como das regiões em que estava proibido (caso da baía do Benim)
5.Após a desarticulação do império português, as diligências inglesas tomam como principal alvo o governo do Rio, procurando fazer fechar definitivamente o principal mercado importador. Sobre Portugal —que conservara a posse de importantes zonas de exportação de mão-de-obra africana-—, as pressões de Londres têm até 1834 um carácter pontual, perdendo-se no quadro muito agitado da política portuguesa da época. Mas a questão agudiza-se depois da implantação do liberalismo, ganhando um peso insuspeitado na história nacional, pela forma como afecta quer as relações luso-britânicas, quer a definição e a afirmação de um novo projecto colonial para a África.
É esse peso que vamos procurar medir e explicar nas páginas seguintes.
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INTRODUÇÃO
Durante mais de três séculos, o tráfico negreiro constituiu uma das molas fundamentais do capitalismo mercantil, fornecendo a mão-de-obra necessária às plantações do Novo Mundo e representando em si uma forma importante de acumulação de capital. A fazer fé em estimativas recentes, de 1500 a 1800 foram exportados de África para as Américas cerca de 8,3 milhões de escravos. O ponto mais alto deste comércio corresponde ao século xviii, com quase três quartos do total (6,1 milhões)
1. Neste mesmo século coube à Inglaterra a principal fatia dessas exportações, com pouco mais de 2,5 milhões, seguindo-se-lhe Portugal, com 1,8, e a França, com 1.2. Holandeses, Norte-Americanos e Dinamarqueses tiveram ainda um papel significativo neste tráfico, sendo residual a participação de nacionais de outros países
2. Momento culminante do comércio negreiro, o século xviii é também o período que vê nascer as correntes ideológicas que lhe contestavam a legitimidade, alimentadas tanto pelo pensamento iluminista como pela renovação do pietismo religioso
3. Em Inglaterra, essa contestação dá origem, em finais de
Setecentos, ao movimento filantrópico, que alcançou grande popularidade na sociedade britânica, ganhando por isso uma influência política considerável.Por outro lado, o arranque da revolução industrial inglesa, fazendo diminuir o peso económico e político dos interesses mercantis baseados no exclusivo de que gozava o açúcar das Antilhas no mercado da Grã-Bretanha, abriu espaço à campanha dos humanitaristas ingleses contra o tráfico negreiro, a qual, favorecida
ainda por factores conjunturais nos primeiros anos do século xix, conduziu à ilegalização desse comércio, decretada pelo governo de Londres em 18074.
A partir dessa data, a pressão abolicionista passa a ser dirigida contra o tráfico de escravos efectuado por outros países. Nos anos seguintes, o governo português —instalado no Rio de Janeiro— vê-se obrigado a ceder neste domínio, mas fá-lo passo a passo, resistindo quanto possível: pelo Tratado
Anglo-Português de 1810, para além da promessa da extinção futura, aceitava limitar o tráfico luso-brasileiro à Costa da Mina e às zonas de África sobre que Portugal reivindicava a soberania; em 1815, em convenção negociada durante o Congresso de Viena, comprometia-se a declará-lo ilegal a
norte do equador; e em 1817, por convenção adicional, concedia à marinha de guerra inglesa o direito de visita sobre os navios portugueses suspeitos de exportarem africanos de zonas proibidas. Tal é a situação por alturas da declaração da independência do Brasil, em 1822. Na prática, o tráfico de escravos luso-brasileiros pouco afectado fora por estas medidas, mantendo números altos na década de 20, tanto a partir das áreas onde era legal (Congo, Angola, Moçambique), como das regiões em que estava proibido (caso da baía do Benim)
5.Após a desarticulação do império português, as diligências inglesas tomam como principal alvo o governo do Rio, procurando fazer fechar definitivamente o principal mercado importador. Sobre Portugal —que conservara a posse de importantes zonas de exportação de mão-de-obra africana-—, as pressões de Londres têm até 1834 um carácter pontual, perdendo-se no quadro muito agitado da política portuguesa da época. Mas a questão agudiza-se depois da implantação do liberalismo, ganhando um peso insuspeitado na história nacional, pela forma como afecta quer as relações luso-britânicas, quer a definição e a afirmação de um novo projecto colonial para a África.
É esse peso que vamos procurar medir e explicar nas páginas seguintes.
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Povos pastores no Sul de Angola : N'guendelengos e cubais 1935-1939
N'guendelengos, seu gado e seu habitat no Deserto do Namibe 1935-39
Cuvales seu habitat e seu gado no Deserto do Namibe 1935-39
ICTT. Fotos de Elmano Cunha e Costa
OCUPAÇÃO PECUÁRIA DE ANGOLA
Povos pastores
Apesar do contacto com outros povos e das influências que devem ter sofrido, os povos pastores mantiveram os hábitos e formas de sobrevivência, continuando intimamente ligados à utilização do leite e, por vezes, do sangue dos seus animais, para a satisfação das necessidades alimentares, raramente abatendo bovinos, a não ser em ocasiões excepcionais de motivação social, como óbitos ou casamentos, aproveitando, até há pouco, as peles para vestuário, e exibindo as cabeças como troféus, espetadas em paus, como testemunho do evento. Em regra, a carne não era consumida, mas abandonada e aproveitada por povos considerados inferiores, como os Vátuas ou Mucuisses, que ainda recentemente ali acorriam, entretanto. A carne que consomem provém do abate de caprinos ou ovinos que detêm em razoável quantidade e que vendem para fazer face à aquisição de outros produtos. Só muito recentemente praticam uma incipiente actividade agrícola, com a utilização de sorgo ou painço, mais resistentes à carência e irregularidade das chuvas nos territórios que ocupam.
Os povos pastores, apesar dos contactos com outros povos, evitavam, e evitam, a miscigenação. Porém, a sua língua original foi assimilando vários dialectos, tendo-se integrado na cultura linguística bantu, invasão a que não puderam resistir.
Os bois de cornos muito longos também foram desaparecendo das manadas mucubais de Angola, por várias razões, entre as quais o cruzamento com outros bovinos, embora mantendo as pelagens, talvez por selecção, uma vez que as manadas originais foram dispersas, bem como as gentes, por uma intervenção colonialista, como a que aconteceu em 1940, na chamada “guerra dos mucubais”. Ao fim de 20 anos, conseguiram refazer as manadas e regressar às terras donde tinham querido afastá-los, depois de se terem sujeitado a trabalhos que sempre tinham desprezado, demonstrando a vitalidade herdada dos seus antepassados, que há mais de um milénio tinham partido das inóspitas terras do Sahara. Gente que não tem chefe político, nem soba, e sempre viveu e vive exclusivamente para o seu gado, o que lhes causou problemas com as diferentes autoridades coloniais; que possui uma compleição física atlética, que lhes permite, em corrida, derrubar um boi, por mais corpulento que este seja. Quando vão para a pastagem, os bois seguem o pastor e se algum se afasta, basta um assobio característico, modulado por uma palheta de latão que o pastor traz sempre na boca, para que o fugitivo regresse à manada…
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sábado, 22 de janeiro de 2011
As Campanhas de África
VI
UMA POLÍTICA COLONIAL ERRADA
P. — Tomou parte nas campanhas de África. Tudo isso vem, relatado nas suas «Memórias» em páginas admiráveis, de um realismo descritivo perfeito e emocionante. Agora a minha pergunta é esta: que diferença estabelece entre essas campanhas e as guerras que mais tarde foram mantidas pelo regime fascista?
R. — São coisas inteiramente diferentes. Eu penso que a nossa noção de colonialismo foi interpretada magistralmente por Norton de Matos. O Norton queria fazer uma nação chamada Angola, como se fez uma nação chamada Brasil e que faria parte de uma federação de nações de língua portuguesa, que se alargaria a Moçambique, à Guiné, a Cabo Verde, e, possivelmente ao próprio Brasil, se fosse essa a vontade do povo brasileiro. Política hábil, para conseguir que esses países novos, aos quais teria de se conceder um dia a independência, continuassem ligados à mãe-pátria por laços sentimentais e por interesses recíprocos. Pensou em situar a capital de Angola no Huambo, a que deu o nome de Nova Lisboa, ficando a cidade de Ulisses como capital federal. E pôs em execução o seu projecto grandioso, que os governos fascistas destruíram. Era uma política de emancipação que a República pretendeu levar a cabo, dando às colónias uma autonomia cada vez mais larga de modo a conduzi-las mais tarde à independência, como aconteceu ao Brasil. O começo do drama que passou a representar-se e levou à triste situação em que se encontram hoje as nossas relações com os países africanos ditos de expressão portuguesa foi o Acto Colonial de 1933. As guerras de pacificação que sustentámos foram legítimas e contribuíram, até, para melhorar as relações entre povos indígenas desavindos. Degladiavam-se as duas tribos de raça ovampa: os Cuanhamas e os Cuamatos, que viviam nas margens do Cunene. Os Cuamatos eram nómadas, que ora se fixavam em território português, ora se passavam com os seus gados para a Damaralândia, ou seja o antigo Sudoeste Alemão, hoje Namíbia. Essa gente não queria aceitar a soberania portuguesa. Aí tinham as suas palhotas, apascentavam o seu gado, faziam as suas culturas. Mas quando o tempo não favorecia a agricultura, não estavam com meias medidas: invadiam e roubavam os povos que já eram sedentários, que se tinham fixado no vale do Cunene, mais para o Norte, dominando-os e reduzindo-os à escravidão. Foi então que o Governo português resolveu intervir. A primeira expedição, ainda no tempo da monarquia, não foi coroada de êxito. Ficou lá o 2.° tenente João Roby e morreram 500 portugueses. O Governo, ainda em regime monárquico, mandou outra expedição, comandada pelo capitão Roçadas e de que fazia parte o Paiva Couceiro, a qual conseguiu pacificar a região, levando a cabo a ocupação do território povoado pêlos Cuamatos. A segunda expedição, no tempo da República, empreendida contra uma nova rebelião dos Cuanhamas, que receberam apoio dos alemães, partiu no começo da guerra de 14-18. O seu comando foi entregue ao tenente-coronel Roçadas, cuja experiência, adquirida na expedição anterior, lhe conferia especial autoridade para exercer esse comando. Houve, no entanto, uma surpresa. Na Metrópole pensavam que se tratava, apenas, de uma revolta de pretos. E o Roçadas, supondo que ia defrontar-se com indígenas amotinados, encontrou pela frente uma organização militar perfeita e aguerrida de tropas alemãs da Damaralândia. E foi derrotado. Os alemães aproveitaram a animosidade que existia contra os portugueses, atravessaram o Cunene e chacinaram as guarnições portuguesas. Internaram--se, mesmo, até Naulila, onde a resistência das nossas tropas foi heróica, e tomaram a posição. Distinguiu-se no combate o tenente Francisco Aragão, que se aguentou enquanto lhe foi possível, até à exaustão, à frente dos seus dragões.
P. — Recorda-se de que o Roçadas fora ajudante de campo do rei D. Carlos, o que não impediu que um governo da República o escolhesse para o comando da difícil missão.
R. — Porque ele era um militar competente e nesse tempo não se olhava à filiação partidária, às ideias políticas quando era preciso escolher os homens para os lugares de maior responsabilidade. Estivessem eles onde estivessem. Na tropa não se queria saber se este ou aquele oficial tinham sido monárquicos, mas apenas se tinham competência e se estavam dispostos a servir a República. O meu tio, general António Carvalhal, que era o governador militar de Lisboa quando se implantou a República, continuou no seu posto. E no dia 6 de Outubro dirigiu à população da capital uma proclamação pedindo disciplina e obediência ao novo regime. Que aconteceu, então, em Angola? O desastre do Roçadas produziu grande abalo no país, onde se desconheciam as condições em que a guerra se desenvolvia, as dificuldades que tinham de se vencer. Eu oferecera-me como voluntário para tomar parte na expedição que ia partir para Angola. A viagem do «Cabo Verde», que transportou o 3.° esquadrão de Cavalaria 9, de que eu fazia parte como alferes, as muares duma companhia de metralhadoras e as montadas dos oficiais do Estado-Maior da expedição, foi uma verdadeira tragédia. Não havia um médico para os homens, embora houvesse um veterinário para os animais. E, depois duma viagem tormentosa, chegou o contingente a Moçâmedes onde assinalaram o desembarque peripécias de toda a ordem. E a coluna rumou para o Sul, já sob o comando do general Pereira de Eça.
A guerra em África não era nenhuma brincadeira. O terreno é difícil. As distâncias imensas. E os recursos de que dispúnhamos eram insuficientes. Basta dizer-lhe que, em determinada altura, fui encarregado de ir a Ruacana para fazer um reconhecimento até onde fosse possível. E deram-me quinze dias para ir e voltar. Em quinze dias ainda lá não tinha chegado — através da selva, que era preciso vencer, que era o pior inimigo. Quando o Roçadas chegou a Angola, viu este triste espectáculo: as guarnições portuguesas, brancas e pretas, tinham sido chacinadas. Não escapou um homem. Num recontro com os alemães da Damaralândia, as suas forças foram derrotadas.
Roçadas foi, depois, substituído pelo general Pereira de Eça, militar de grande prestígio que desempenhava, ao tempo, as funções de ministro da Guerra e que não hesitou em deixar o seu cargo para comandar uma expedição africana. Esta guerra teve características diferentes da guerra colonial que Salazar sustentou em África para manter a soberania portuguesa ameaçada pêlos movimentos de libertação. Fomos enfrentar um inimigo que se igualava connosco e talvez superior, com armamento moderno e grande eficiência militar, sem contar com o inimigo local, a quinta coluna que tínhamos dentro do nosso território constituída pêlos pretos que aderiram à causa dos alemães e que aproveitaram aquela chacina para roubar e depredar o que ainda restava. Não quero justificar com o ódio aos alemães, que tinham procedido selvaticamente, as barbaridades que se cometeram. A guerra é mesmo guerra. Não é conversa fiada. A campanha durou ano e meio. Durante esse tempo, nunca me deitei numa cama. Dormi sempre no chão ou numa tarimba, uma destas camas de campanha que nos deixam os ossos num feixe.
P. —-Foi em meados de Agosto de 1915 que a coluna Pereira de Eça iniciou a marcha para o Sul e as operações completaram-se em Fevereiro de 1917 com a entrada das tropas portuguesas em N'Giva, quartel-general do soba Mandumbe e capital do Cuanhama. Assistiu ao combate da Môngua?
R. — Não assisti. Antes dessa marcha para o Sul, o general Pereira de Eça mandou fazer dois reconhecimentos: um comandado pelo tenente Sebastião Roby, descendo pelo vale do rio Cunene. E outro pelo comandante dos boers, que era eu, a corta-mato direito a Ruacaná e a Naulila, que eram postos ocupados pêlos alemães. Do sul de Angola não havia nenhum mapa e, naquele tempo, o que era pior, não havia uma ponte, uma estrada, uma via de penetração no mato. Era tudo selva virgem. Infestada de leões e de caça grossa. Os boers, na sua linguagem pitoresca, chamavam-lhe o kaucfelt. E eu fui nessa missão de reconhecimento. O Roby caiu numa emboscada e foi morto — o segundo Roby que morreu em África, irmão do outro que também lá ficou. Eu não apareci no prazo estipulado porque o Estado--Maior não tinha feito bem os cálculos. Decorrido o tempo que estava previsto, ainda esperaram mais um mês. Apareceu, então, no Quartel-General um preto que fazia parte do contingente a dizer: «Morreram todos. Só escapei eu.» E deram-me como desaparecido, receando que tivesse ficado prisioneiro dos alemães. Foi alertada a Cruz Vermelha, que informou, depois das investigações a que procedeu, que não havia nenhum prisioneiro com o meu nome. Afinal, eu tinha cumprido a missão que me fora determinada : verificar a ocupação dos postos de Ruacaná, de Dongoena, de Naulila e de Roçadas, posições que tínhamos abandonado e que haviam sido ocupadas pêlos alemães.
Cumprida a minha missão, meti-me a caminho, cie regresso ao Quartel-General. Eu levava um carro de abastecimento e cheguei à conclusão de que me embaraçava a marcha. Resolvi mandar o carro para Otchinjou e sustentar-me, eu e os meus homens, dos recursos naturais: caça, pesca, frutas do mato e duma certa cultura de mandioca que os pretos faziam. E conseguimos sobreviver. Cada um dos meus homens levava uma porção de sal, que era uma coisa preciosa, e algum arroz, embora em pequena quantidade, para não sobrecarregar os animais. Nos cantis levávamos reserva de água, que em África é difícil de obter. As distâncias a percorrer eram enormes e só raramente se encontrava água. Obtidas todas as informações de que necessitava, pus-me a caminho, de volta. Como tinha pressa de chegar, disse ao sargento: «Tu ficas como superintendente e eu vou adiante para ganhar tempo.» E, como o meu cavalo era mais veloz, aí vou eu pelo sertão fora sem mais companhia. Eles só chegaram ao acampamento dois dias depois de mini. Calcula o estado em que eu vinha: roto, sujo (não havia água para beber, quanto mais para me lavar), com a barba crescida, num mísero estado. Quando me viram assim, calcularam que a missão tinha redundado em desastre e que eu conseguira escapar. E perguntaram-me pelo resto da tropa. «O resto da tropa vem aí.» Julgaram que vir ali era daí a dez minutos ou uma hora. Passou um dia e a tropa sem aparecer. «O Pimentel não conta a verdade —pensavam.— Esconde qualquer coisa.» Mas os pretos têm processos de comunicar rapidamente, e, um dia antes de chegar o resto do destacamento, soube-se, pelo telégrafo indígena, quê os boers vinham, realmente, ali. Foi uma festa quando eles chegaram. Uma festa que me comoveu, que me enterneceu.
Apresentei-me ao chefe do Estado-Maior, o major Ortigão Peres, que era um homem bom. «O general recebe-o amanhã»—disse-me. Mas eu não tinha indumentária para substituir os farrapos que me cobriam o corpo. Um deu-me uma camisola, outro umas calças, outro um jaleco. E assim me apresentei ao general Pereira de Eça, encadernado de novo. Devo dizer que fiquei desapontado pela frieza com que o general me recebeu. Comecei a expor o resultado da minha missão com aquela loquacidade que me caracteriza e, a certa altura, Pereira de Eça cortou-me a palavra: «Deixa-te de discursos e diz só o que interessa.» Contei isto aos camaradas dizendo que não valia a pena fazer sacrifícios, passar fome e sede, arriscar o pêlo, para chegarmos ao fim e termos aquela recompensa. Eu vinha magro como um palito. O médico, o dr. Vasconcelos e Sá, que era muito meu amigo e um excelente camarada, observou-me e submeteu-me a um tratamento rigoroso para me restabelecer. No dia seguinte foi publicada a ordem de campanha onde vinha a notícia da minha apresentação e a proposta do general Pereira de Eça para ser condecorado com a medalha de Valor Militar. Fiquei todo inchado e foi a minha desgraça, porque, quando regressei a Lisboa, o José de Serpa pescou-me para o Quartel-General do Gomes da Costa, em vez de ir para a terra a gozar a licença a que tinha direito. Levaram-me para a Flandres e enterraram-me lá nas trincheiras. Sepultados em África, entre outros, ficaram o Passos e Sousa, os dois Robys, o Viriato de Lacerda, o Afonso Pala, o Damião Dias e o Humberto de Athaide, que acabou por se suicidar.
P. — O Ferreira do Amaral comandava os auxiliares pretos. Contam-se dele coisas espantosas
R. — Era muito engraçado. E nunca virou a cara ao perigo. Eu conto nas minhas «Memórias» algumas peripécias que se passaram com ele, como a história daquele corno simbólico que ele enfiou num pau, pondo-o em frente da barraca. Na véspera, numa reunião de oficiais em que se deu balanço aos mantimentos para a marcha contra a região sublevada dos Cuanhamas, o general Pereira de Eça perguntou a cada um dos comandantes o que lhe faltava. Todos disseram, mais ou menos, que não faltava nada, excepto os da Intendência, que se queixaram da falta de rações de reserva. E o Pereira de Eça, sem mais tirte--nem-guarte, respondeu-lhes: «Ah! faltam rações de reserva. Comam cornos!» Chegámos a um certo sítio e acampámos. No dia seguinte, quando passava revista aos comandos, o general viu à porta da barraca onde se instalara o comandante dos auxiliares pretos um corno hasteado num pau, como se fosse o pretos um corno hasteado num pau, como se fosse o guião daquele destacamento. E, voltando-se para o comandante dos auxiilares, perguntou-lhe: «Ó Ferreira do Amaral, que é aquilo?» E o nosso homem, sem se perturbar, respondeu: «É a minha ração de reserva.» Era um homem valente, desembaraçado, amigo de fazer justiça. Mas um tanto pitoresco. Nós contávamos com ele para a revolução que estalou no Porto em 3 de Fevereiro de 1927 e devia ter sido secundada em Lisboa, o que só aconteceu quatro dias depois, já com poucas probabilidades de êxito. Quando lhe telefonei a pedir a sua adesão, desculpou-se. Que não tinha maneira de nos acompanhar. E foi com os outros.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
Em 1970, um outro Papa...
A ler:
Luís Graça, Há 40 anos o Papa Paulo VI recebia em audiência privada, em 1 de Julho de 1970, Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos
Posted by Joana Lopes under História
Brancos para Caxias, Pretos para o Tarrafal
Quinta-feira, 11 de Fevereiro de 1971. No Tribunal Plenário – 4º Criminal – de Lisboa, começa o julgamento de dez pessoas acusadas de apoio ao MPLA, Movimento Popular de Libertação de Angola. Preside ao Tribunal Fernando António Morgado Florindo, acolitado por Bernardino Rodrigues de Sousa e João de Sá Alves Cortês. Costa Saraiva é o acusador público. Na defesa, ao lado de homens tão experimentados no Plenário como Manuel João da Palma Carlos, jovens advogados como Brochado Coelho, José Augusto Rocha ou Macaísta Malheiros.
A presença entre os arguidos do Presidente de Honra do MPLA, Padre Joaquim Pinto de Andrade – antigo chanceler da arquidiocese de Luanda e à data da prisão a frequentar a Faculdade de Direito de Lisboa – garante a curiosidade internacional: delegados da Amnistia Internacional, Associação Internacional dos Juristas Democratas, Liga Belga dos Direitos do Homem, Federação Internacional dos Direitos do Homem e Associação Internacional dos Cristãos Solidários batem-se pelo direito de assistir ao julgamento, na sala do Plenário em que, por norma, a polícia política preenche, desde logo, grande parte dos lugares.
A perseguição que o regime de Salazar movia a Joaquim Pinto de Andrade justificava o interesse dessas organizações: já em 1950, com patriotas angolanos (seu irmão Mário, Agostinho Neto) ou de outras colónias portuguesas (o guineense Amílcar Cabral e a santomense Alda do Espírito Santo), sonhava e planeava «o futuro das nossas pátrias africana» [1] Mas foi a partir de 1953, após regressar de Roma, onde se formara em Teologia, que as perseguições se sucederam, como a sua defesa recordou, aliás, no Tribunal Plenário: envolvimento no chamado «processo dos 50», prisão em 25.7.1960, exílio e prisão no Aljube de Lisboa em 4.7.1960; envio num navio de carga para o desterro na Ilha do Príncipe; regresso ao Aljube de Lisboa em 1961; residência fixa e clausura no Mosteiro de Singeverga; nova prisão na PIDE da cidade do Porto e posterior transferência para as celas do Aljube, em Lisboa, os tristemente famosos «curros». Em 5.1.1963, é libertado apenas para ser sujeito a nova prisão na cadeia de Caxias – «Completava eu 177 dias de prisão preventiva e sem culpa formada. Faltavam três dias para o máximo permitido por lei. Fui posto em liberdade, mas… preso imediatamente a seguir à porta da cadeia do Aljube e transferido para Caxias! No dia 8-1-63, conduzido à sede da P.I.D.E., fui ali informado de que fora posto em liberdade três dias antes e preso de novo à porta da cadeia… porque novas actividades subversivas haviam sido desenvolvidas dentro da cadeia ou à porta da cadeia.» [2] Após 389 dias de prisão ininterrupta sem culpa formada, é colocado em residência fixa no interior do Alentejo. Nova prisão em 24.1.1964, nova colocação em residência fixa num seminário de Vila Nova de Gaia. Preso de novo em Abril de 1970 é finalmente levado, nesse 11 de Fevereiro de 1971, a tribunal.
Com Pinto de Andrade, de 44 anos, sentam-se, no banco dos réus, sete outros homens e duas mulheres, todos jovens e com tons de pele variando entre o negro e o rosado: Álvaro José de Melo Sequeira Santos (Zefus), funcionário bancário, de 34 anos, Raul Jorge Lopes Feio, aluno da Faculdade de Medicina de Lisboa, de 24, José Ilídio Coelho da Cruz, gerente comercial, de 27, Maria José Pinto Coelho da Silva, aluna do ISCEF, de 26, Diana Marina Dias Andringa, redactora de publicidade, de 23, António Manuel Garcia Neto, aluno da Faculdade de Direito de Coimbra, de 26, Rui Filipe de Matos Figueira Martins Ramos, aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, de 25, António José Ferreira Neto, médico dos Serviços de Saúde e Assistência de Angola, de 28 e Fernando Emílio de Campos Pereira Sabrosa, aluno da Faculdade de Medicina de Coimbra, de 29. À excepção de José Ilídio, nascido em Santa Isabel, Cabo Verde, e de Maria José, nascida em Lisboa, todos eram naturais de Angola.
A variedade dos tons de pele fora, aliás, salientada pelo MPLA, num Apelo ao Povo Português lido alguns meses antes aos microfones da Rádio Voz da Liberdade pelo seu representante em Argel, Castro Lopo: «O Governo de Marcelo Caetano deu-nos a extraordinária oportunidade de poder patentear aos olhos do próprio povo português a amplitude verdadeiramente nacional do MPLA. Ao julgar em Lisboa dez angolanos acusados de filiação ao nosso Movimento, é toda a matiz das camadas sociais angolanas mobilizadas em torno da nossa bandeira que se exibe, é um testemunho de extrema gravidade que indica bem que todas as camadas sociais do nosso povo são objectivamente por uma Angola livre e independente: um sacerdote, médicos e estudantes, trabalhadores, brancos, negros e mestiços, comparecem ante os tribunais sob a mesma acusação, a de lutarem pela independência de Angola».
Brancos, negros, mestiços, mas não só: pertencentes também a diferentes orientações políticas. Na extensa Nota de Culpa, se Pinto de Andrade, Ferreira Neto, Rui Ramos e Raul Feio são relacionados simplesmente com o MPLA, Garcia Neto e Fernando Sabrosa são acusados também de pertença ao Partido Comunista Português – enquanto que, no decurso dos interrogatórios, a polícia política tentara, sem êxito, conotar as duas rés com um movimento dissidente daquele, a Frente de Acção Popular.
As diferentes posições em relação aos partidos portugueses e ao subjacente diferendo sino-soviético não dividem os réus: ali, é de Angola e do colonialismo português que se trata e vários dos presos aproveitam para, nos seus depoimentos, explicar como foi a sua experiência de vida que os levou a defender o direito do povo angolano à independência e a justeza da sua luta. Negro, Garcia Neto recorda o professor que, no primeiro ano do liceu, lhe chamou «filho de terrorista»; branca, Diana Andringa recorda que, no seu Dundo natal, as escolas eram tão segregadas como na África do Sul. E lembram aos juízes que o direito dos povos sob dominação colonial à independência está longe de ser apenas uma reivindicação «comunista»: defendem-no, também, resoluções das Nações Unidas e, até, encíclicas papais.
Tendo, pela primeira vez nas suas múltiplas prisões, possibilidade de se defender em Tribunal, Joaquim Pinto de Andrade aproveita a ocasião para, através de um longo depoimento lido pelo seu advogado, Mário Brochado Coelho, bem como das declarações das suas 21 testemunhas, fazer o processo do colonialismo português em Angola.
Com parte da sala cheia por agentes da polícia política, apenas alguns familiares e amigos dos réus podem assistir ao desenrolar do julgamento. A extensa leitura é seguida em profundo silêncio e muitos são os que choram ao ouvir a belíssima defesa de Pinto de Andrade. Lágrimas que surgirão também quando uma das suas testemunhas narra as perseguições que, em Luanda, se seguiram ao ataque às prisões, a 4 de Fevereiro de 1961.
Mas enquanto no Plenário decorria o julgamento dos angolanos detidos em Portugal e dos dois brancos presos em Luanda – Ferreira Neto e Rui Ramos – e há um ano enviados para a Cadeia do Forte de Caxias, outros jovens – mestiços e negros – presos em Angola, embora ligados ao mesmo processo, tinham já sido enviados, sem julgamento e por simples medida administrativa, para campos de concentração em Angola e Cabo Verde.
Dessa diferença de tratamento se fizera eco a recém-criada Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Na sua segunda Circular, de 30 de Abril de 1970, referia que, em Outubro e Novembro do ano anterior, tinham sido presas cerca de 70 pessoas em Angola «todos africanos, com excepção de dois angolanos brancos que foram enviados para Lisboa». Não se conhecia, adiantava a Comissão, o destino dado aos restantes, receando-se «que venham a ser enviados para o Tarrafal».
Preocupada com a possibilidade de os presos serem deportados por simples medida administrativa, a Comissão reclamara junto do Ministro do Ultramar por telegrama: «Tendo chegado nosso conhecimento haver sido ordenada deportação e internamento presos angolanos detidos Luanda aguardando julgamento para campos prisionais Tarrafal e Moçâmedes lavramos vivo protesto contra arbitrariedade e descriminação que significa em relação outros presos detidos Lisboa com processo enviado Tribunal. Solicitamos imediata revogação decisão e concessão presos direitos normais de defesa.»
O protesto de nada valeu. A 29 de Abril de 1970, duas semanas depois de, em Lisboa, a DGS ter anunciado a entrega ao Tribunal Criminal dos 10 acusados presos em Caxias, vários dos jovens presos em Angola no âmbito do mesmo processo foram transferidos da Cadeia da PIDE/DGS em Luanda e embarcados, sob prisão, no cargueiro «Manuel Alfredo»”, que os levou a Bissau. Aí passaram 3 dias na cadeia da cidade, voltando depois para o navio, rumo a Cabo Verde. Em S. Vicente foram mudados para uma fragata da marinha de guerra e levados para a ilha de Santiago, onde ficaram internados no chamado Campo de Trabalho de Chão Bom – irónico nome do campo de concentração do Tarrafal onde, nas décadas de 30 e 40, perderam a vida diversos antifascistas portugueses e o regime encerrava agora os patriotas africanos. Só aí os jovens prisioneiros tomam conhecimento de que lhes haviam sido aplicadas administrativamente penas de prisão maior, de 6 a 10 anos.
Segundo a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos[3], foram então deportados os estudantes de Engenharia Eduardo Santana Valentim e Alcino Borges, os estudantes de Medicina Alberto Correia Neto e Justino Pinto de Andrade, o irmão deste, Vicente Pinto de Andrade, e Jaime Gaspar Cohen, ambos alunos do Instituto Comercial; Gilberto Saraiva de Carvalho, ex-aluno de Medicina e alferes miliciano; Justino da Conceição, também no serviço militar, Bernardo Lopes Teixeira, aluno do Instituto Industrial, Paiva Domingues da Silva (que acabara de cumprir 9 anos de internamento no campo de S. Nicolau), Francisco Caetano, Makiala, Aldomiro da Conceição, Tito dos Santos e António José Capita.
Ao mesmo tempo que os seus camaradas presos em Angola eram deportados, os presos em Portugal viam-se no centro de um debate jurídico entre o Delegado do Procurador da Republica e os juízes do Plenário: deveriam ser acusados de um crime de «traição à Pátria», «contra a segurança externa do país» (passível de 20 a 24 anos de prisão) ou do mais comum crime «contra a segurança interna do Estado português» (punido com 8 a 12 anos de prisão)?
Terminados os interrogatórios em Abril de 1970, os presos – quase todos na casa dos vinte anos – confrontavam-se com a hipótese de permanecer na prisão quase pelo mesmo tempo que levavam de vida. Hipótese que parecia tanto mais séria quanto Maria José Pinto Coelho, libertada sob fiança em 17 de Março pela DGS, voltara a ser presa, por ordem do Tribunal. Por outro lado, alguns dos presos percebiam, finalmente, a sanha com que a polícia política – que se intitulava DGS em papéis com o cabeçalho PIDE – os interrogara sobre eventuais amizades com elementos da Embaixada de Cuba, que tinham visitado algumas vezes. É que o crime de traição pressupunha a ligação com potências estrangeiras – e haveria, talvez, a hipótese de insinuar a participação de Cuba nas actividades dos detidos.
E de que eram estes, afinal, acusados? Alguns – Zefus, Rui Ramos, Ferreira Neto, Pinto de Andrade – de serem «militantes do MPLA». Outros – Raul Feio, José Ilídio, Diana – de serem «simpatizantes da linha política de acção violenta do MPLA». Garcia Neto e Sabrosa de serem militantes do PCP e simpatizantes do MPLA.
Quanto às acusações concretas: os 3 primeiros, de ter integrado em Luanda um grupo destinado à defesa da causa da independência – Kimangua – que virá a transformar-se no Comité Regional de Luanda e estaria em contacto com o MPLA no exterior e, sobretudo, com a 1ª Região Militar do Movimento; dedicavam-se à doutrinação política, distribuindo livros, brochuras, panfletos; teriam enviado roupa, medicamentos e munições para a 1ª Região; teriam auxiliado a fuga de desertores; teriam levado a cabo distribuições de panfletos em Luanda durante a visita a Angola de Marcelo Caetano e tentado provocar, através de pequenos engenhos explosivos, instabilidade durante a mesma visita (no que confessavam ter lamentavelmente falhado). Os restantes, de lhes ter prestado auxílios diversos, em dinheiro, papel, livros, medicamentos, fotografias, transporte de desertores. Num processo em que, visivelmente, a polícia política perde o pé – em pleno julgamento, a única testemunha de acusação, um agente da PIDE/DGS, acusa um dos presos de ter desviado um avião para Ponta Negra, embaraçando-se mal a defesa, curiosa, perguntou: «E depois voltou para ser preso?» – em desespero de causa, uma das rés é mesmo acusada de ter levado roupas para um angolano preso em Peniche, como se de um crime se tratasse… Maria José tem uma única acusação: ter levado para Paris, e ali posto no correio, uma carta destinada ao Comité Director do MPLA.
A 30 de Março de 1971, os três juízes do Tribunal Plenário de Lisboa ditam a sentença: 4 anos e meio de prisão maior e 2 anos de multa para Álvaro Sequeira Santos e Garcia Neto, 3,5 anos de prisão e 2 de multa para Rui Ramos, 3 anos de prisão e 2 de multa para Joaquim Pinto de Andrade, 2,5 anos de prisão e 2 anos de multa para Ferreira Neto, 20 meses de prisão e multa para Diana Andringa, 18 meses de prisão e multa para Raul Feio e Fernando Sabrosa, 16 meses de prisão e multa para José Ilídio Cruz. Os condenados a pena maior sofrem também privação de direitos políticos por 15 anos e os restante por 5 anos. Maria José é absolvida, após 13 meses na prisão.
Entretanto, continuam presos no Tarrafal os jovens detidos em 1969 em Luanda. Familiares e advogados empenham-se numa luta pela aplicação de habeas corpus. A 27 de Junho de 1973, a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça – composta por José Osório da Gama e Castro Saraiva de Albuquerque, Adriano Vera Jardim e Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos – analisa os pedidos de Bernardo Lopes Teixeira, Jaime Cohen e Gilberto Saraiva de Carvalho e conclui que estão efectivamente presos no Campo de Chão Bom (Tarrafal) e que tal prisão é ilegal, visto que a medida administrativa que lhes fora aplicada «não consente a prisão, mas apenas a fixação de residência» e decide por isso ordenar que sejam imediatamente postos em liberdade, «sem prejuízo na medida de segurança de fixação de residência que lhes foi aplicada». A decisão é comunicada ao director do Campo do Tarrafal no dia seguinte, 28, mas os presos não são libertados. A 5 de Julho, o director chama-os para lhes dizer ter recebido um telegrama mandando-os apresentar na Direcção Geral de Segurança. Passam essa noite sob prisão na delegação da polícia política na Cidade da Praia. No dia seguinte, sempre sob prisão e em avião especialmente fretado, seguem para a Ilha do Sal e daí para Portugal, onde ficam na Cadeia do Forte de Caxias. Partem, a 10 de Julho, para Luanda, onde são conduzidos para o Pavilhão Prisional da DGS. Aí lhes é comunicado pela polícia que vão ser internados no Campo de Recuperação de S. Nicolau, em Moçâmedes, por 3 anos. O despacho que determina o seu internamento tem a data de 13 de Julho e é assinado pelo Secretário Geral de Angola, Soares Carneiro.
Como pode ler-se «Angolanos no Tarrafal: alguns casos de habeas corpus»[4], «foi, portanto, a S. Nicolau que os três beneficiários do habeas corpus foram dar. Imediatamente metidos na “prisão” do Campo, aí jazeram dois dias, dormindo no chão, sem quaisquer condições de higiene nem de alimentaç㻓.
Transferidos para S. Nicolau III, são depois sujeitos a trabalhos forçados nas salinas: «Das 6,45 às 12 e das 13,20 às 17 horas, transportam terra ou sal em gamelas de madeira, à cabeça ou aos ombros, sob a vigilância permanente de um encarregado», narra-se, no livro citado. Para terminar com uma pergunta: «Quantas gamelas de sal terão ainda que carregar, até que lhes nasça o dia da justiça?»
A libertação chega no ano seguinte, na sequência do 25 de Abril. O sonho que tiveram para Angola, esse, tarda a cumprir-se.
[1] Excerto de uma carta de JPA a Agostinho Neto
em 3.5.1976, citada por Mário Brochado Coelho, em texto de homenagem a Joaquim Pinto de Andrade, 2003.
[3] Circular nº 5, de 10 de Agosto de 1970.
[4] Abranches-Ferrão, Fernando, Francisco Salgado Zenha, Levy Baptista, Manuel João da Palma Carlos, “Angolanos no Tarrafal: alguns casos de habeas corpus Colecção bezerro d’ouro, Afrontamento, Porto 1974.
(Publicado no nº 27 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)
Posted by Diana Andringa under História