quarta-feira, 24 de novembro de 2010

RIO CUANZA, O ELO ENTRE O SUL E O NORTE, ENTRE O PASSADO E O FUTURO.RIO QUEVE O PEQUENO GIGANTE : LUIZ CHINGUAR

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                                           Barragem de Cambambe
     
                                                                  
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                                                  O rio Queve
                                                                
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                                              Cachoeiras do Binga.
 

LUÍS XINGUAR



.RIO CUANZA, O ELO ENTRE O SUL E O NORTE, ENTRE O PASSADO E O FUTURO

. RIO QUEVE O PEQUENO GIGANTE

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RIO QUEVE O PEQUENO GIGANTE

Minha grelha de leitura da História de Angola : Manuel Secca Ruivo

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Manuel Secca Ruivo


Minha grelha de leitura da História de Angola

A Limitação do ideológico


Houve tempo em que dei aulas numa escola a crianças da primária. Escola com uma prática pedagógica diferente. Foi no último ano que lá estive. Desde os primeiros dias, com este meu último grupo de crianças combinou-se o que iríamos apresentar aos pais como prova final de avaliação. Não interessa para aqui o como, mas foi escolhido fazermos uma performance sobre a História de Portugal. Trabalhámos o tema o ano lectivo inteiro. Em determinada altura (no que se metem os professores e não só) uma das crianças deu o palpite que se devia começar pelo Big Beng. E começou-se. Na última semana de aulas, dias antes da apresentação aos pais, perguntou-me uma das crianças doridamente: Então Manuel, quando é que aparece Jesus Cristo!!!???...
Não há quem, não há pessoa alguma que possa fazer o tempo voltar para trás. Algumas podem ultrapassar limites e ferir, violar egoisticamente a sensibilidade de outras: aqui acaba a liberdade. Só o desapego em relação a qualquer protagonismo, a qualquer forma de poder, só o bom-senso e alguma sabedoria podem fazer intuir os limites desse limite.
Outra coisa é fazer o jogo do faz de conta. Já lá vai o tempo em que me juntava com amigos e com amigas, fazíamos rodinhas, cantávamos as modinhas e sentíamo-nos felizes. Como qualquer criança, ingenuamente e como um felizardo, vivi o meu tempo; só que a história é escrita com o tempo dos adultos. Entre amigos posso blindar-me. Respondo se quiser; passo à frente quando vir quem é quem; rio e brindo com quem quiser e com um copo de vinho tinto ( nada é melhor do que um bom vinho tinto ); reencontro-me com aqueles que têm dúvidas, certezas e incongruências - não necessariamente as mesma. Tenho só uma certeza, é que choraram as mesmas lágrimas, ainda que de forma diferente.



Do sec. XV a fins do sec.XIX


Não pretendo ser historiador. Tenho lido, sintetizado, apropriando-me das perspectivas de outros, caldeando tudo na minha memória e na minha experiência, fazendo a minha "teoria" sobre Angola.

A grelha de leitura que exponho, e me expõe, é no mínimo arriscada ao pretender num "telegrama" dar conta da complexidade das relações entre povos diferentes, sendo um opressor e o outro oprimido.

1 - Angola nunca foi nossa ( de Portugal, ainda que seja nossa nos limites de angolanos ). Angola não existe há quinhentos anos. Por interesse mútuo, os povos africanos condescenderam com a nossa presença e fomos guerreando-os, convivendo e conhecendo-os superficialmente ao longo de centenas de anos.

2 - Diogo Cão, em 1482, ancorou a sul do rio Zaire, sabendo ao que ia. A sua missão era encontrar a Etiópia, o reino de Prestes João, por isso tentou a subida do rio Zaire; era dominar-conhecer a rota para o mundo das especiarias; era alargar pontos de tráfego da escravatura.

3 - Ficaram uns missionários e uns mercadores na feitoria então criada de Pinda. Iniciou-se mais uma cruzada da Fé, mais um ponto de mercado de escravos, ou de peças como lhes chamavam então. Ainda que saiba não dever ler as épocas à luz de padrões actuais, não deixa de arrepiar: peças …!!! Em todo o caso, não era meia dúzia de missionários e de mercadores, independentemente do branqueamento que os africanos queiram fazer da escravatura, que conseguiria impor-se a centenas de milhares de pessoas. Um sopro bastaria para acabar com a invasão. A escravatura interessava e interessou a ambas partes.
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4 - Até ao último quartel do século XVI, era esta a presença de Portugal. Entretanto, entre 1560 e 1570, as datas valem o que valem, o reino do Congo foi invadido pelos Jagas. Não conseguindo responder ao ataque, o rei do Congo refugiou-se numa ilha na foz do Zaire. Com o auxílio pedido ao rei D. Sebastião, que enviou apoio militar, conseguiu expulsar os invasores. Estes, em vez de regressarem às terras de origem, foram ocupar a zona que passaria a ser, grosso modo, a zona dos Ambundos. As migrações, palavra simpática para não dizer as colonizações, dos povos africanos para as áreas correspondentes à actual Angola não ficaram por aqui. No século XVII, os GangueIas; nos séculos XVIII, os Kiocos e os Ambós; no século XIX, os Makokolos e os Kuangalis; e já antes os Kikongos no século XIII e os Nhanecas no século XV foram sucessivamente ocupando as terras onde hoje vivem. 
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5 - Em 1571, depois de uma estadia anterior (breve: com uma prisão, com um enamoramento e uma fuga ajudada) por terras de NGola, Paulo Dias de Novaes regressa, fixa-se na ilha e acaba por fundar Luanda, em 1576. Levaram-se anos a rasgar a primeira "estrada ( o rio Kuanza ) e a criar os presídios que permitiram a penetração em terras dos NGolas: Muxima e Massangano. Começa-se a falar no reino de NGola. Angola como os portugueses passaram a dizer. Não tinha rigorosamente nenhuma relação com a delimitação actualmente conhecida. E é fundada Benguela, em 1617. Primeiro como Benguela Velha em Porto Amboim, depois a Benguela no reino de Benguela.

6 - Durante centenas de anos coexistiu-se nesses espaços: reino de Angola; reino de Benguela. Com interesse comum. Mercanciar num duplo sentido: num, bugigangas, tecidos, bebidas alcoólicas, armas e pólvora; noutro, escravos, marfim, ferro e cobre quando apareciam e mais umas minudências. Porém, não foram pacíficas estas relações. Nunca foram. Nunca houve vassalagem. Estribaram-se sempre nos interesses das partes. Quando não satisfeitos, guerra. Os portugueses ( os que falavam e tinham adquirido hábitos portugueses) jogaram com as identidades de cada reino e de cada soba. Conjunturalmente, estabeleceram-se alianças, criaram-se redes de influência, alimentaram-se clientelas e tacticamente utilizou-se a guerra do Kuata Kuata na zona centro, contribuindo ou não com alguns militares, muito poucos, porque os não havia. O enquadramento era sempre português, de primeira ou de segunda linha: coordenavam as invasões, tinham como objectivo primeiro os escravos, permitiam a rapina. Mas não contribuíram directamente para a desintegração das comunidades africanas: as suas línguas; as suas relações internas do poder; as suas crenças e os seus valores; e as suas práticas de comércio.

Em termos gerais, quem detinha o poder eram os povos africanos. Os portugueses em número reduzido, ínfimo comparativamente, não estavam bem armados, não tinham facilidade de deslocação e sofriam com as doenças tropicais. Paralelamente, dependiam dos interesses do Brasil.

7 - Este modelo que durou cerca de quatrocentos anos, é temporariamente interrompido pelos holandeses ( 1643 - 1648 ). Refazem-se alianças. A rainha de Matamba, Nzinga Mbandi (rainha Ginga, ou se gostarem, Dona Anna de Souza na terminologia portuguesa desajustada ) alia-se aos holandeses. Os portugueses retiram para Massangano e Muxima. (Nota de reportagem: na retirada, pelo rio Bengo, diz-se que portugueses foram atacados e que uns barcos se afundaram, tendo-se perdido toda a informação histórica de então). Chegado do Brasil, 1648, Salvador Correa de Sá reconquista Luanda.

8 - Cem anos depois da chegada de Paulo Dias de Novaes cria-se o presídio de Pungo Andongo (1671 ), o de Ambaca fora criado em 1617. A ocupação mercantil portuguesa é lenta. Atrever-me-ia a dizer que em termos de escala foi quase inexistente. Em 1878, quatrocentos anos depois, havia duas faixas de ocupação: uma, perpendicular à costa, que ia de Luanda ao Pungo com uma largura aproximada entre os rios Bengo/Zenze e o rio Kuanza; outra, em coroacircular , que tocava os pontos Benguela, Caconda e Moçâmedes.
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9 - "Independência ou Morte" ( onde é que já se ouviu algo semelhante ) foi o grito de guerra de D. Pedro, que conduziu à independência do Brasil, em 1822. Ainda não refeito das Invasões Francesas, Portugal começou a mudar, pela força dos seus interesses, a sua perspectiva e a sua política para com África.

10 - No final de 1836, surge o "decreto de abolição do tráfico transatlântico de escravos por navios portugueses a partir" da zona de presença portuguesa; 1842, "tratado anglo-português que considera como pirataria o tráfico de escravos sob pavilhão português"; 1844, "comissão e tribunal de arbitragem misto luso-britânico em Luanda"; 1854, "abolição parcial da escravatura"; 1858, "a supressão da escravatura é marcada para 1878"; 1878, "fim oficial da escravatura"... no papel.
Em 1910, ainda há notícias de quintais de escravos em Benguela. Os portos angolanos eram vigiados por barcos de guerra ingleses. Mas não se comerciava a partir dos portos conhecidos. Vários pontos da costa angolana serviam os negreiros portugueses, brasileiros, holandeses, espanhóis, americanos (fica-me uma dúvida: e os ingleses? ).


Fim do sec. XIX princípio do sec. XX


Todo o século XIX e os primeiros trinta anos do século XX foram significativos para as novas relações entre Portugal e os Reinos de Angola, de Benguela e, finalmente, de Angola. A vários níveis: económico, político ( pressões internas e internacionais ) e militar.

11 - Nos últimos cinquenta anos do século XIX, África foi alvo das rivalidades predadoras das potências imperialistas europeias: Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha, Portugal, Bélgica e, ainda que em menor escala, Espanha. A palavra de ordem passou a não ter em conta as pretensões de ordem histórica, como queria Portugal, e passou a pautar-se pela ocupação efectiva. Foi a era dos exploradores, que não tiveram conhecimento, ou fizeram tábua rasa da travessia de Angola (Ambaca) a Moçambique (Tete ), por Pedro João Baptista ( ambaquista) e Anastácio Francisco ( um liberto de Kassanje ). Menosprezava-se mesmo Portugal.
No que respeita a Angola, esta foi delimitada por sucessivas aproximações: 1884, tratado luso-britânico sobre o Congo; 1885, conferência de Berlim; 1885, Tratado entre a Associação Internacional do Congo ( Bélgica ) e Portugal; 1886, convenção franco-portuguesa ( Cabinda ); 1886, Convenção luso-alemã ( Sul de Angola );1890-91, Tratado luso-britânico ( Leste ); 1905, fixação da fronteira com a Rodésia do Norte.
Grosso modo, não obstante a diplomacia portuguesa, a pretensão do Mapa Cor-de-Rosa ( 1886 ) posta em causa logo de início pelo projecto CC inglês ( Cabo ao Cairo ) foi arrasada. Devido aos esforços de Henrique de Carvalho, de Serpa Pinto, de Roberto Ivens e de Hermenegildo Capelo, em 1890, os contornos de Angola foram delimitados a Norte por uma linha que se cruzava com uma linha vertical, que passava a leste, aproximadamente, pelo actual estremo leste Luena, incluindo a margem direita do Zambeze. A Sul, ia até ao Zambeze. Era sensivelmente um imenso quadrado. Em 1891, ficou-se sem parte do leste a norte do Luena. Ficou-se com o limite actual. Em 1905, a parte sul do Luena recuou até ao que hoje é a fronteira de Angola. Povos e famílias separadas por um arbítrio, nada interessou.
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"Os apetites"

Aqui já fora referido que a Inglaterra e a Alemanha haviam redefinido secretamente novas fronteiras para Angola, enquanto Portugal ia "discutindo" sobre as fronteiras do leste. A eclosão da 1ª Guerra Mundial deixou Portugal "em paz".
Curiosa era a divisão que "as comadres" propunham. A de Moçambique consigo compreender, pois dividia-a a meio, ficando a parte norte afectada à Alemanha aumentando assim a Tanzania e a parte sul afectada à Inglaterra aumentando a dimensão da "sua" África Austral. No que concerne Angola era um acordo, no limite, bizarro: tirando as linhas de fronteira do leste e do litoral, quatro linhas rectas conformavam a parte apetecível pela Inglaterra. Uma primeira, a norte, por alturas do Ambriz penetrando cerca de 100Km em território angolano. Uma segunda, vertical, descia até aos limites dos Dembos (sempre eles), ao nível de Luanda. Uma terceira, ia até à fronteira do leste. Por fim, uma quarta mais ao menos a Sul do Sumbe ia também até à fronteira do leste, passando um pouco acima de Kazombo.
Todo o resto de Angola ficaria a pertencer à Alemanha, incluído a parte norte de Angola: Bacongos, Bondos e Lundas.
Especulando, resta-me uma questão: à Inglaterra, num gesto platónico, interessava-lhe a parte calcorreada por Livingstone; ou interessava-lhe esse pedaço porque era a parte melhor conhecida; ou ambas?
No limite, uma demonstração da falta de pudor político por parte das potências imperiais europeias.

12 - Paralelamente, para além desta pressão por parte das potências europeias e dos conflitos internos ( guerra civil, movimento republicano e implantação da Republica ), no espaço angolano, entre 1846 e 1926, houve cento e oitenta e sete acções militares, guerras com os povos de toda a Angola: cinquenta com os Bakongos ( incluída Cabinda ); cinquenta e três com os Ambundos; dezoito com os Lundas-Quiocos; vinte e nove com o Ovimbundos e Ovimbundizados; quinze com os Ganguelas; três com os Hereros; dezasseis com os Nhanecas-Humbes; e treze com os Ovambos.
Militarmente não foram fáceis estes tempos para Portugal, nem para os povos atacados. Destas cento e oitenta e setes guerras, pelo menos cento e quatro tiveram as seguintes causas: económicas vinte e sete; políticas cinquenta e uma; religiosas uma; e específicas (venalidade do pessoal administrativo, intervenção nos problemas dinásticos, e carregos e escravatura ) vinte e três. Entre 1880 e 1926 poderão ter estado envolvidos trinta mil e oitocentos soldados nos teatros de guerra.

Investiu-se em homens e tempo:

No Congo, cerca de dois mil e quinhentos soldados durante setenta e três meses acumulados; nos Dembos e Golungo Alto, dois mil soldados e vinte meses; na Lunda cinco mil e setecentos soldados e cinquenta e cinco meses; nos baluartes meridionais, dois mil e setecentos soldados e vinte e cinco meses;

Nos Ovimbundizados (Seles e Sumbes ), dois mil e cem soldados e vinte e dois meses; nos Reinos Umbundos, mil e quinhentos soldados e mais de dez meses;

Nos Ganguelas Ocidentais, duzentos e vinte soldados e mais de quinze meses; no Leste de Angola, seiscentos soldados e mais de oito meses;

No Sul de Angola, treze mil e quinhentos soldados e mais de vinte e nove meses.
No Sul, em 1904, no Vau do Pembe, pela segunda vez, os militares portugueses sofreram a terceira maior derrota militar europeia de toda a África, frente aos Cuamatos, que tinham um poder de fogo superior. Os números valem o que valem: perderam-se em pouco mais de duas horas trezentas e vinte e quatro vidas, fora os desaparecidos.

Em termos de reportagem: em Isandhlwana, 1879, os ingleses frente aos Zulus perderam mil cento e cinquenta soldados; e os italianos, em Adowa, 1896, perderam seis mil soldados, tiveram mil quatrocentos e vinte e oito feridos e mil e oitocentos soldados foram feitos prisioneiros.
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13 - O último quartel do século XIX foi o da consolidação do colonialismo português em Angola. Resultante dos confrontos militares, de uma estratégia de ocupação, foi destruído o poder dos últimos reis africanos.
Surge legislação que não teve em consideração a cultura dos povos africanos. Um "direito indígena" distinto do direito português. Acaba-se com o dízimo, cria-se o novo imposto da cubata. Mais tarde a caderneta indígena e correspondente imposto. (Eu nunca paguei imposto. Ironia da história que os homens foram fazendo: eu, muitos angolanos fomos brancos de segunda, mas nunca fomos indígenas, nem ao menos nos chamaram de aborígenes, essa descriminação sem limites a que sujeita(ra)m o único povo que não tem nome: os aborígenes australianos ). Para o seu cabal pagamento aparecem reformas administrativas, coadjuvadas por um aparelho repressivo Administrativo. Anterior à PIDE.

14 - Sobrepondo-se à existência de escravos, o Código de Trabalho de 1878 e de 1899 cria a "obrigação moral e legal dos indígenas" terem de trabalhar. Ainda que o trabalho "livre" assumisse a forma do contratado ou de carregador.

15 - Não resisto, abstendo-me de comentar, a dar a definição de indígena de então: "os indígenas são os indivíduos de cor ( preto ou mulato ) que satisfazem cumulativamente as seguintes condições: ter nascido na província, não falar português correntemente, ter hábitos e costumes indígenas". Arre xissa ( não sei se é assim que se escreve; a palavra substituta dada pelo Word não me agradou: missa; também por lá andaram e contribuíram de que maneira) .

16 - As primeiras levas de colonos foram para a região de Moçâmedes, originárias do Brasil, da Madeira e da região do sul de África: os Boers.

17 - Tenho para mim, que o facto de se ter reprimido nas cidades a burguesia litoral angolense contribuiu fundamentalmente para a Angola que conhecemos. Era uma burguesia alicerçada em centenas de anos, com ligações a filhos e filhas dos reis, com riqueza acumulada, com uma literacia superior à maioria dos portugueses que lá se fixavam e uma cultura diferente da dos restantes povos da zona. Eram altos funcionários e alta burguesia. A legislação restritiva de 1921 secundarizou-os. Não mais puderam passar de determinados níveis médios do poder ( Assim como também nós, os descendentes de portugueses lá nascidos ). Parte desta mesma burguesia, acompanhada por parte da burguesia portuguesa residente tentou a independência de Angola, nos finais do século XIX.

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18 - Entre 1890 e 1920, verificou-se o período de apropriação das terras, a maioria já agricultada. A zona do Golungo Alto foi exemplo, no que se refere ao café, assim como o Amboim e Seles.



Rainha Ginga


19 - A par de seu pai N'Gola Kiluanje, a Rainha Ginga é simbólica e politicamente, a maior personagem da resistência à presença portuguesa no Reino de N'Gola. O seu poder estendia-se ao Reino de Matamba (também Mutamba e aqui o porquê do nome da praça dos maximbombos de Luanda) e ao Reino de N'Gola. Lutou simultaneamente contra o Jaga de Cassanje e os Portugueses, na defesa da sua posição estratégica na rota de escravos da África Central. Não significa que não tivesse interesses na contrapartida da escravatura. A Rainha Ginga não pode ser uma figura a menosprezar. Os portugueses de então respeitavam-na. Temos que compreender as relações e jogos do poder de então. Tendo ido a Luanda para negociar com João Corrêa de Souza, em 1621, " Nella foi recebida, pelos Magistrados, e Pessoas principais: e conduzida, por entre alas das tropas, e com descargas de mosquetaria, às casas de Rodrigo Araujo, destinada para seu apozento: onde foi à custa da Fazenda Real, com a decência e grandeza devida à sua pessoa". ( Cavazzi, nota de José Mathias Delgado, na obra de Cadornega ). Mas acabou por ser derrotada e refugiar-se na Zona de Pungo Andongo e, mais tarde, na zona de Calandula.

20 - Ficaram as lendas: o "seu" gigantesco pé, esculpido, hipoteticamente, por um habitante do Presídio Pungo Andongo, com cerca de cinquenta, sessenta ou setenta centímetros ( a memória há-de acertar em tão grande variação ); a sua dignidade, quando na visita-acordo, com o governo de Luanda, diz-se, que não lhe tendo sido dada uma cadeira para se sentar, terá ordenado a um membro da comitiva para se ajoelhar e colocar as mãos no chão, sentando-se nele (a propósito, quando Mouzinho mandou Gungunhana sentar-se no chão, este terá retorquido: "chão está sujo") e que quando acabou o encontro, perante o aviso do Governador português para levar o "seu banco", teria respondido que não valia a pena, que ficaria para uma próxima visita; e, dizem que espectacular, nunca a vi, era a Mesa da Rainha Ginga, rocha gigantesca que se impunha à distância e que ficava entre Kalandula e Santa Maria. Diz-se que era aí que se reunia com os seus conselheiros, depois da retirada para o seu reino: a Matamba. A título de esclarecimento, a Matamba correspondia ao povo Ginga, da zona actual de Malanje, aos povos do norte das quedas Kalandula, Forte República, Cambo Camana, Brito Godins, etc ...

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Alguns números


21 - Os dados, referentes à distribuição da população, em 1845, dizem respeito aos:
Reino de Angola: cidade de São Paulo da Assumpção de Luanda; presídios: Muxima, Massangano, Cambambe, Pungo Andongo, Ambaca e S. José do Encoge; distritos: Icolo e Bengo e Barro do Bengo, Dande e Barra do Dan¬de, Golungo alto incluindo Zenza Quilengues e Dembos, e Barra do Calumbo.
Reino de Benguela: cidade de S. Filipe de Benguela; presídios: Novo Redondo, Caconda, Moçâmedes de formação recente; distritos: Dombe Grande da Quijamba, Bailundo, Hambo ( Huambo ) Galengues e Sambos, Bihé Quilengues Sambos e Huíla.
Evidenciam-se, desde já, as zonas da interacção entre os portugueses e os povos africanos.
Das 386463 pessoas da população quantificadas:

Leitura 1 :
Reino de Angola 246009 (63,7%); Reino de Benguela 140454 (36,3%).

Leitura 2 :
Branca 0,4 %; Mestiça 1,5%; Negra 98,1%.

Leitura 3 :
Branca: Luanda 87,5%; Benguela 2,1%; Pungo Andongo 1,8%; Ambaca 1,3% e Massangano 1,2%. Mestiça: Caconda 51,8%; Pungo Ándongo 19%; Luanda 8,5%; Golungo 5,8% e Cambambe 5,4%. Estão indicadas 13 pessoas como escravas, todas mulheres: 7 em Luanda, 4 no Pungo Andongo e 2 em Caconda. Negra: Ambaca 19,3%; Golungo Alto 16,9%; Bailundo 13,3%; Bihé Quilengues Sambos Huíla 10,3%; e Cambambe 5,7%.
Estão indicadas 86693 pessoas como escravas, dos quais 53,7% mulheres.
Do total de escravos: Ambaca 46,1%; Bihé Quilengues e Sambos Huíla 14%; Bailundo 11,8%; Caconda 3,9% e Danda e Barra do Dande 3,6%.

Leitura 4 :
Fogos (número de casas e cubatas) de um total de 48910: Ambaca 19%; Caconda 5,2%; Cambambe 5,8%; Muxima 5,2%; e S. José do Encoge 4,4%. Curiosamente Luanda com 1176 fogos ocupa a oitava posição; Benguela com 605 a nona posição; e Moçâmedes com 600 a décima posição.

Leitura 5:
Sobas feudatários (aqueles que prestavam "vassalagem a Portugal), de um total de 371:
Reino de Angola 91,6%; Reino de Benguela 8,4%
Do Reino de Angola, 340 sobas feudatários: Ambaca 38,2%; Golungo Alto 23,2%; Cambambe 8,8%; e Massangano 8,2%
Do Reino de Benguela; 31 sobas feudatários: Caconda 90,3% e Moçâmedes 9,7%
Todos estes números assumiriam valores diferentes se efectivamente se conhecesse o total da população negra.

22 - Alguns números da população de Angola, entre 1897 e 1930 ( o números servem só para uma indicação, não os defendo ):
1897: Negros 843406; Mestiços - ; Brancos 5557
1899: Negros955010; Mestiços -; Brancos 11481
1900: Negros 4777636; Mestiços 3112; Brancos 9198
1927: Negros 2935665; Mestiços 10800; Brancos 42843
1930: Negros 2503794; Mestiços 13500; Brancos 30000

A quebra da população negra deveu-se a uma série de pestes: varíola, doença do sono, tuberculose, etc. Em 1898 e entre 1911 e 1916, uma praga de gafanhotos (de que a minha avó me falou) e fome por falta de chuva, provocaram cercam de 250000 mortos no Sul.



Os carregadores

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23 - Neste texto, temos dominantemente referido a escravatura, esquecendo os carregadores. Para não perder com a síntese, transcrevo: "os sofrimentos de um carregador que vai para o sertão", extractos de um manuscrito de João Saraiva da Fonseca; viagem Luanda Ambaca, em 1843; do livro de Valentim Alexandre, Origens do Colonialismo Português Moderno.

[Depois de conseguir do chefe administrativo da zona, mediante pagamento, portarias para requisição de «carregadores», o «feirante» (negociante do interior) vai com elas aos sobas.]

"Os Sobas dizem que sim, chama os seus Macotas, faz-lhe ver que veio uma ordem do Sr. Chefe para dar tantos carregadores: os Macotas respondem: que lhe havemos de fazer, cumprir a ordem se não vamos para a cadeia, e gorrilha; portanto vamos tratar de os aprontar. Responde o Soba, pois bem, agora resta agasalharmos o branco: manda-lhe dar uma casa, uma galinha, e fuba, isto diariamente enquanto ali está o branco à espera de carregadores. Ora há branquinho que não se satisfaz com isso, exige porcos, cabras, etc., para os seus pombeiros, e lhe não dão por bem, vai à força. Afinal recebe os carregadores, depois de ter feito quantas violências lhe têm vindo à cabeça; vem para a sua morada, trata de moer os carregadores três meses em reparar casas, currais, muros, etc. etc.; findo os três meses passa a dar-lhes ração para irem buscar sustento para a jornada, assim como ao seu ajudante (quibesse), marca-lhe o tempo para isso, e afinal recolhem-se os carregadores. Dá cargas, que o seu peso são 85 a 90 libras; a ração que cada carregador recebe são 6 côvados de chila ou nanguina (tipo de fazenda que se usavam no negócio do interior, servindo como moeda); marca o dia da partida, ele chega, partem.
Logo que estes miseráveis chegam ao pouso, arreiam cargas, cortam palha, e cobrem as cargas. O feirante chama o cabo destes carregadores, e diz-lhe: quero uma casa de tantos pés de comprimento, cama, muro, cozinha, água, lenha, e mungungo (uma casa comprida) para os meus pombeiros. O cabo chama os carregadores à forma, eles se formam em uma linha, o cabo divide o serviço, e vão os carregadores buscar o que o cabo lhes determina.

( ...)
Enfim chegam ao sertão (geralmente é Cassange), arriam cargas, fazem uma casinha para o feirante com mais solidez do que as que fazem pelo caminho; fazem as suas macacas em que ficam dois a dois. No terceiro dia dá o feirante (os que as dão) rações aos carregadores, escolhe o lugar para fabricar a casa, divide os carregadores [...] Enfim fazem a casa, cozinha, mungungo, muros, currais, etc. etc. Neste serviço é o carregador moído 70 a 90 dias, depois vão dois dias à lenha, e dois ou três dias ao bombó seco, e deixam uma porção de madeira e cordas para qualquer eventualidade que aparece, arrumando-lhe depois uma carga de 80 a 90 libras para trazer de Cassange para Ambaca ou Golungo Alto, e o pagamento que recebe é de três beirames de Cassange (medida de porção de fazenda), que seu valor é de 600 réis. Eis um mísero preto fora de sua família 6 e 7 meses em um serviço activo, e quando se recolhe para sua casa não tem um real, e até muitas vezes empenhado. Ocorre mais se acaso foge algum carregador no caminho ou em Cassange, de pronto o feirante passa a prendê-los a todos em limbambos (gargalheiras), e assim acorrentados fazem o serviço acompanhados por pombeiros, e à mistura de tudo isso levam uma surra, e chicote não lhes falta dado pelos pombeiros do feirante a que eles pertencem. Depois de recolhido o mísero carregador ao centro de sua família com menos saúde, mais idade, e sem lucro algum, não se medeiam vinte dias que não sejam chamados novamente para o carreto (serviço de transporte de mercadorias): e como será possível um homem destes tomar amor ao seu país natal, vendo-se ele perseguido diariamente já com o Dizimeiro (cobrador do imposto do dízimo), já com os arrolamentos dos soldados, e meirinhos, e já com o carreto? Decerto que hão-de ir refugiar-se em parte que vivam descansados: para onde vão? Para o gentio -- Cassange, Bondo, Ginga, Libolo, Quissama, Songo, Bié, etc., etc., onde com uma pequena oferta que fazem ao dono da sanzala ficam sossegados e têm todas as garantias possíveis."

24 - Pensei ser mais "fotográfica" esta transcrição do que ter escrito unicamente: pressão administrativa colonial; conluio e passividade do poder africano; condições duras de vida; violência corporal e atentatória da dignidade humana;lógicas de exploração-dependência próximas das que se verificaram, mais tarde, no nosso tempo, nas cantinas espalhadas pelas zonas rural e urbana.

25 - Pensei ser mais "fotográfica" esta transcrição do que ter escrito unicamente: pressão administrativa colonial; conluio e passividade do poder africano; condições duras de vida; violência corporal e atentatória da dignidade humana; lógicas de exploração-dependência próximas das que se verificaram, mais tarde, no nosso tempo, nas cantinas espalhadas pelas zonas rural e urbana

26 - Duas "validações" do anteriormente dito, com base num trabalho de Manuel Domingues:

Exoneração do Comandante da Companhia Móvel de Talla Mugongo, por decreto do Secretário de Estado da tutela, publicado no BOGGPA(*).

«Constando a sua Majestade El-Rei, por ofício do Governador Geral da Provincia de Angola, de 21 de Junho último, que António Rodrigues Neves, Capitão da Companhia Móvel do Distrito de Talla-mugongo, fôra o principal autor, dos maus tratos cometidos nas pessoas de muitos pretos livres carregadores, os quais em contravençao das ordens estabelecidas, foram mandados desde Cassange presos com correntes ao pescoço, para fora dos domínios portugueses, a fim de carregarem com fazendas(**) pertencentes a especuladores, de cujos maus tratos resultou a morte a vinte e dois deles, e muitos sofrimentos a muitos outros; Manda o mesmo Augusto Senhor, pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, que o referido Governo Geral, em satisfação aos preceitos da Religião, e aos direitos da humanidade tão atrozmente ofendidos, demita, imediatamente, do dito posto de capitão ao mencionado Antóno Rodrigues Neves, não podendo,nunca mais, ser nomeado para exercer funçoes públicas, ainda mesmo as de menos importância, sem que para esse fim preceda autorizaçao de Sua Majestade.
Paço, em 26 de Setembro de 1856. - Sá da Bandeira.»

(*) Boletim Oficial do Governo Geral da Provincia de Angola.
(**) mercadorias, também designadas por "facturas".

Portaria Circular n.º 2 (BOGGPA, Janeiro de 1863)

« - Sendo de conveniência e utilidade do serviço público, que os funcionários do Estado de qualquer graduação se não dêm ao trato comercial, assim para que não possam desviar-se da atenção devida às funções de seus cargos, como para se evitarem as complicações a que poderia dar ocasião o mesmo trato; o qual para além disto é expressamente proibido, não só a todos os governadores , como também a outros empregados, pelo alvará de 14 de Abril de 1785, e em especial aos oficiais de fazenda pelo art.º 28.º do código comercial: manda Sua Majestade El-Rey, que os governadores gerais das provincias ultramarinas por nenhum modo permitam que os empregados públicos, mormente os fiscais, sob qualquer forma se dêm ao comércio, suspedendo-os das suas funções em caso de contravenção e dando conta de assim o haverem feito para se proceder como pede o bem do serviço;....

Paço, em 17 de Janeiro de 1863. - José da Silva Mendes Leal».

Não obstante a bondade da Portaria, este foi um problema insolúvel - e que deu azo a muitas prepotências, incluindo também algumas das praticadas com carregadores -, quer com administrativos, quer com militares.



O Terceiro Império


(Reportagem 1: De passagem pela TV, pasme-se o que ouvi há dias: o Subsecretário do Mar e imediatamente a seguir à decisão comunitária em considerar o Mar como parte da estratégia comum europeia, com um ar beato, messianicamente "passado" afirmou a sua Verdade: iria lutar para conseguir aumentar a nossa área marítima; assim, Portugal teria uma dimensão daqui até à Rússia. Esta ainda é pior do que a "boca' do ministro que mandou avançar as canhoeiras até Malanje. E continuou lá, no governo de Portugal, não justamente, mas como um justo adormecendo enrolado no seu Quarto Império, travesseirando-se na luta contra o barco holandês que, em frente à Figueira da Foz, defende a interrupção voluntária da gravidez. Força Portugal..)

(Reportagem 2: Os Impérios Terceiro (porque a seguir ao da índia e ao do Brasil) e Quarto (mais recente, de um qualquer Subsecretário de Estado) referido anteriormente, não têm ligação ao Quinto Império (quinto, porque a seguir aos impérios Persa, Assírio, Grego e Romano) das perspectivas particulares de Padre António Vieira, de Fernando Pessoa e de Agostinho da Silva. Não se trata de uma visão messiânica no seguimento do sebastianismo de Bandarra. Nem se estriba na defesa de um Portugal, e do seu povo, com uma missão única na Terra. É mais pragmático, porque se reduz a uma tendência doentia para a antropofagia territorial.)

27 - Algumas ideias:

a) Lapaliçando: a colonização implica a existência de colonos, a ocupação e o cultivo de um território. Há muitos sítios onde houve e há colonos sem haver colonialismo.

b) Atendendo à distribuição dos portugueses por Angola e por actividade, direi que não houve colonização em Angola, não obstante:

-- a existência de uns núcleos não significativos de colonos. Segundo a junta Provincial do Povoamento, em De­zembro de 1968, havia 840 colonos europeus, 428 cabo-verdianos e 528 africanos.
-- a tentativa de instalar colonos judeus russos, no distrito de Benguela;
-- e as falhadas implantações de colónias penais agrícolas (CPA). A primeira CPA foi fundada em 1593, Quissama; em Malanje, criou-se a Colónia Penal Esperança, em 1884, em seguida outra no Pungo Andongo, mas cedo acabaram, assim como todas as outras tentativas em vários locais de Angola, devido à dificuldade em "recrutar" colonos degredados e à elevada taxa de mortalidade.

Em 1830, 90% dos portugueses estavam em Luanda. Nos meados do século XIX, a maioria eram soldados, comerciantes, administradores e degredados -- não colonos. Em 1950, só 2746 portugueses, menos de 10%, trabalhava na agricultura. Em 1970, mais de 50% dos portugueses vivia nas cinco maiores cidades (Luanda, Nova Lisboa, Lobito, Benguela, Sá da Bandeira); enquanto só 10% da população Negra vivia nos centros urbanos.

c) Se não houve dominantemente colonos em Angola, penso ser forçada a utilização da palavra colonização. O que não significa que não tenha havido uma forma de dominação; e que à falta de melhor palavra eu utilize a expressão colonialismo-sem-colonos.

d) Colonialismo-sem-colonos como suporte ideológico, político-militar e económico, que garantiu a imposição repressiva de um povo sobre outro.

e) O colonialismo-com-ou-sem-colonos não se mede às dozes, nem com um colonialómetro ( hoje está a 3,52, mas é bom, ou melhor, porque o inglês está a 5,91, o francês a sei lá quantos, etc). Ou há, ou houve; ou não há, ou não houve. E houve colonialismo-sem-colonos português, em Angola.

f) Fomos, não sendo. Houve uma Angola a "duas velocidades": uma, urbana; outra, rural. E se na primeira vertente, admito que muitos não se tenham "apercebido" do colonialismo-sem-colonos, na segunda, se uns não o terão sido, outros, foram no seu dia-a-dia déspotas e, às vezes, energúmenos.

28 - Esta realidade é confusionada e ampliada por intervenções outras. E eu:

-- sorrio-me, habituado às posições dúbias da Igreja, com João Paulo II falando politicamente correcto em MBanza Congo, 1992: " ... Angola tem quinhentos anos de encontro de culturas, situação que a maioria dos povos de África não conhece. Isso fez do vosso país um povo distinto que não se pode incluir simplesmente numa de­terminada corrente que arrasa os países da África Austral. Nuns, os colonizadores viveram entre os colonizados. Aqui, os colonizadores, apesar de tudo, conviveram com os povos que encontraram. Daí a diferença específica que distingue o povo angolano ... ";

-- enterneço-me com DuBois, que de passagem por Lisboa para assistir ao Terceiro Congresso Pan-Africano e, eventualmente, na sequência de um tratamento VIP a que não estava habituado no seu Estado de origem americano, escreveu " Entre os Portugueses e os Africanos e quase Africanos não existe naturalmente antipatia `racial' -- não há ódios históricos acumulados, aversões, menosprezos.";

-- boquiaberto-me com Njoroge Mungai, Ministro do Negócios Estrangeiros do Quénia, em 1973, que numa alocução na ONU terá dito "Portugal é uma Nação onde não existe racismo";

-- aparedo-me (trepo paredes) com o cinismo do governo Norte Americano, que tinha a Secretário de Estado reunida com Holden aquando dos acontecimentos de 1961; e, em 1970, com a 'ingenuidade' do Secretário de Estado que informava Nixon de que " a política portuguesa declarada de tolerância racial é factor importante nesta equação [de progresso para a autodeterminação]. Pensamos que isto contém genuína esperança para o futuro".

29 - Outras visões provincianas dos "únicos" que nós somos, não se esgotam com os "espantos" diários de alguns pretensos fazedores de opinião: "a maior árvore de Natal natural; a maior árvore de Natal da Europa, com não sei quantos milhões de lâmpadas ..." ; no limite, a mais antiga aliança mundial - Portugal e Inglaterra.

A propósito de Angola, quando afogueados e patrioticamente empenhados nos batíamos pela validação das "nossas" fronteiras, as de Angola, já a Inglaterra e a Alemanha negociavam a forma de nos tornearem. Valeu-nos BismarcK e a sua voracidade rapace na Europa, consequentemente a Primeira Guerra Mundial, para desviar os "apetites". Mesmo assim, houve confrontos com os alemães na fronteira do Sul de Angola. Muito maiores em Moçambique.

Nessa altura, a posição da Inglaterra era inequívoca em relação a Portugal: um país cujo povo se situava entre os macacos e os outros. Como nos viam ... E nós não fomos capazes de ver os outros!!!

30 - Ideologicamente, o colonialismo-sem-colonos estribou-se num duplo pressuposto, que comandou e formatou a sociedade angolana:

: o povo africano era de menoridade mental, mesmo incapaz de compreender o trabalho e de ser responsável;

: as relações multiraciais eram expurgadas de racismo.Como se o primeiro pressuposto não estivesse em si eivado de um preconceito racial, que contradita o segundo alicerçado no luso-tropicalismo.

Pelo menos, nos fins do século XIX e princípios do século XX, não se pode liminarmente dizer que esta foi a posição dominante de dirigentes e de intelectuais portugueses.
Embora, em 1867, o governador Calheiro de Menezes afirmasse que "a simples presença de um europeu no interior induz já à civilização ", mesmo que fosse o mais temível degredado; Oliveira Martins que defendia os africanos, no entanto afirmava que eram "um typo anthropologicamente inferior" e, quando atacava os missionários em África, perguntava "porque não há de ensinar-se a Bíblia ao gorila ou ao orango, que nem por não terem falla, deixam de ter ouvidos, e hão de entender, quasi tanto como entende o negro, a metaphisica da encarnação do Verbo e o dogma da Trindade".

Nem a República se ultrapassou e cumpriu a expectativa angolense. Ainda estigmatizava e não conseguia ultrapassar a legislação dos fins do século XIX que estabelecia que os africanos tinham a obrigação legal e moral de trabalhar.
A Constituição de 1911 defendia que os angolanos africanos eram obrigados a trabalhar dois anos, ainda que proibisse os castigos corporais. Mesmo Norton de Matos considerava os africanos inferiores aos europeus e opunha-se à miscigenação.

No Estado Novo, Salazar antes da queda da cadeira terá respondido (cinicamente?) a um jornalista argentino, que perguntava quando é que os povos dos territórios africanos passariam a governar-se, que era "um problema para séculos. Dentro de 300 a 500 anos."; Marcelo Caetano, em 1954, "Os pretos em África têm de ser dirigidos e enquadrados por europeus (...) os africanos não souberam valorizar sozinhos os territórios que habitam a milénios, não se lhes deve nenhuma invenção útil, nenhuma descoberta técnica aproveitável, nenhuma conquista que conte na evolução da Humanidade, nada que se pareça ao esforço desenvolvido nos domínios da Cultura e da Técnica pelos europeus ou mesmo os asiáticos."; Eduardo de Soveral, num estudo sociológico, em 1952, defendeu que "o gentio gosta de ser comandado e bem comandado e que, como todo o ser primitivo, neste aspecto tão próximo do animal, quer a arma e a mão enérgica antes que a mão branda."; Vicente Ferreira, em 1954, "os chamados ‘indígenas civilizados' (...) não passam, em regra, de arremedos grotescos de homens brancos (...) [com] uma mentalidade do primitivo, mal encoberta pelo fraseado, gestos e indumentária copiados do europeu.".

Em 1951, as Nações Unidas começaram a pressionar o Governo português, que se apoiou no mito da qualidade da sua política racial. Para isso Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, foi o suporte ideológico.

Sem terem em consideração, inclusive Gilberto Freyre, a realidade analisada: composição racial das populações angolana e brasileira, 1950:

Brasil: de um total de 51836142, Brancos 32027661 (62%), Mestiços 13786742 (26%), Negros 5692657 (11%) e 1% outros;
Angola: de um total de 4145266, Brancos 78826 (3,6%), Mestiços 29648 (0,72%) e Negros 4036687 (97,4%).

No Brasil os negros não possuíam a terra. Libertos da escravatura, confluíram para as cidades.

A primeira metade do século XX foi uma época de recomposição social de Angola.

31 - Politicamente, o colonialismo-sem-colonos português deu forma despudorada à sua ideologia ( não esquecer a importância da sociedade angolense nos finais do século XIX):

-- Em 1901, uma lei aumentava o nível da exigência para certas posições na administração: por exemplo, um telegrafista tinha de ter comprovadamente conhecimentos de Geografia e de Latim, impossíveis de adquirir nas escolas angolanas de então;

-- Em 1911, num decreto, as exigências para entrada na Função Pública passou a ser de cinco anos de escola secundária, que só foi criada em 1919;

-- Em 1913, os administradores, secretários e funcionários angolanos eram nomeados em Portugal;

-- Em 1921, o funcionalismo público foi separado entre europeus e africanos (penso ser então que os brancos nascidos em Angola passaram a ser considerados como de segunda);

-- Em 1929, foram publicados os estatutos que restringiam a promoção de mestiços e de negros assimilados à categoria de primeiro-amanuense, impediam a competição entre europeus e não-europeus e estabeleciam diferenças salariais para o mesmo trabalho, mesmo no sector privado;

-- (Em 1943, 9 de Dezembro, nasceu este branco de segunda, filho de uma angolana já natural de Benguela e de um português, que para ir para Angola em 1928 teve de arranjar uma carta de chamada de um cunhado que vivia em Malanje);

-- Em 1961, com o eclodir da guerra nacionalista há uma bricolage cosmética feita por Adriano Moreira: eliminação do estatuto do indeginato, acabando a distinção entre não-cidadãos-não-civilizados e os cidadãos­civilizados (incluídos todos os brancos, 89% dos mestiços e 0,7% dos negros); criação de organismos adminis­trativos africanos locais; e criação da junta Provincial de Povoamento. Mas na essência nada mudou.

32 - A nível dos degredados ( que integraram o exército, que derrubaram o governo e saquearam Luanda no século XVIII, que traficaram escravos, que integraram com insucesso colónias penais, que pilharam e dependeram de africanos quando fugiram para o interior, que desalojaram agricultores africanos nos Dembos e noutras zonas de Angola já no século XX):

-- Também iam para Cabo Verde, São Tomé e Moçambique. Depois, Angola ficou como "fiel depositário": para o efeito, mesmo os degredados das outras colónias foram redireccionados para Angola;

-- Os portugueses livres começaram a protestar com a imagem que a maioria tinha e dava, assim como com a falta de segurança que resultava da sua presença;

-- Em 1932, Salazar começou a delinear uma estratégia desenvolvimentista portuguesa com eles, matando dois coelhos de uma só vez: libertava "Angola do pesadelo que para ela representa o desembarque de sucessivas levas de degredados, com o seu cortejo de horrores, e mobilizar-se-á em benefício da economia da metrópole um novo e poderoso elemento de trabalho."; -- Em 1954, acaba a ida de degredados para Angola.

33 - A nível dos portugueses livres, foram emigrando com dificuldades criadas pelo governo português. Precisavam de uma carta de chamada emitida por um familiar ou amigo que já estivesse em Angola.

Como ordem de grandeza: nos finais do século XIX cerca de meio milhão de portugueses estava no Brasil; pouco mais de dois mil, incluídos degredados, estavam em Angola.

Uma explicação e uma hipótese: o proteccionismo à exportação portuguesa e a algumas empresas que começavam a "descobrir" Angola; não tinha ainda aparecido o quinino.

34 - A transformação a nível económico do colonialismo-sem-colonos teve, sobretudo, efeitos na posse da terra, na força de trabalho africana e no poder comercial.

-- A força de trabalho foi redireccionada da escravatura para o trabalho serviçal. Com um ponto comum: o da negação do trabalho livre.
Se com a escravatura eram os reis e sobas africanos que comandavam o processo, com o trabalho serviçal passaram a ser sobas e os regedores e o poder administrativo colonial, secundado pelos angariadores. No primeiro caso com a transferência maciça de povos para outros continentes, no segundo com deslocações geográficas dos contratados dentro de Angola.
"Após o Regulamento abolicionista de 1878, os empreendimentos coloniais passaram a adquirir serviçais (substitutos dos escravos e dos libertos) que constituíram desde então a categoria mais numerosa da população activa assalariada. Após a requisição, feita por empresas privadas ou por organismos públicos ao serviço da Curadoria, seguia-se a contratação através de agentes de recrutamento (Port. 492, de 10.5.1913), que junto dos sobas obtinham os 'voluntários' a troco de um estipêndio. Os 'indígenas' que se recusassem a essas prestações ditas voluntárias eram condenados a trabalho compelido ou correccional."

-- Essencialmente, beneficiavam do sistema as grandes empresas agrícolas e mineiras, e a construção dos Caminhos de Ferro de Angola e de Benguela: Fazenda Gratidão (1887, 200 contratados); D. de Almeida (1892, 400 contratados); Fazenda Conc. Pinto (1914, 250 contratados); Fazenda Tentativa (1914, 600 contratados); Fazenda Dombe Grande (1914, 1000 contratados); Fazenda Sousa Lara (1915, 1000 contratados); Diamang (1926, 4500 contratados); Forerang/Cotonang (1926, 35000 camponeses sujeitos à cultura do algodão); e CADA (1930, 5000 contratados).

Da lista não consta, até porque não sei quando iniciou a actividade, uma empresa representativa do nosso distrito: a Quitota, perto do Pungo Andongo, da madame Berman.

Em 1914 havia 128487 contratados para 77453 jornaleiros e 36884 carregadores. Cerca de 47% dos trabalhadores africanos provinha de outras regiões.

-- O apoio do grande capital de Portugal era manifesto: BNU às companhias agrícolas e pecuária e CNN; Burnay, à Diamang (uma sociedade de capitais belgas, franceses ingleses, americanos e portugueses, onde havia uma preponderância da Société General Belgique), às companhias agrícolas e de minério; BCP às companhias agrícolas e pecuária; Montepio e Casa Totta às Comp. Congo Português e Sociedade Geral Comercial e Industrial; BES à Diamang e à CADA, Cassequel e CNN (Companhia Nacional de Navegação); e o BCU às companhias agrícolas.

-- O apoio estrangeiro do grande capital verificou-se através, principalmente, de bancos Belgas: Grupo Haller, à Sociedade Financeira dos Caoutchoucs, CADA em 1927 e Companhia do Cazengo em 1929; Banco de Bruxelas às Companhias do Luinha e de Cabinda, respectivamente em 1920 e 1930; Sociéteé General de Belgique e Burnay (português) à Diamang, CAPA (gado no Huambo), Fogerang/Cotonang e Carbonag.

-- As tentativas dos pequenos agricultores empresariais soçobraram. Só viriam a "renascer" pós guerra de libertação colonial, em meados dos anos sessenta.

De recordar o afrontamento dos empresários agrícolas portugueses à Cotonang, no nosso distrito, e dos "camanguistas" com a Diamang. Penso que esta incursão por parte dos angolanos portugueses foi um contributo para fazer vacilar o sistema colonial-sem-colonos português (a afirmação é tão só uma hipótese que deixo). Lembro-me, como seria bom que se recuperasse, de uma carta da Administração da Diamang dirigida pessoalmente a muitos dos nossos amigos mais velhos camanguistas, esses traficantes de diamantes.

-- A primeira tentativa para desapossar os africanos da terra deu-se em 1907, ao delimitar-se zonas fixas para uso exclusivo dos africanos. O alto-comissário Vicente Ferreira defendeu mesmo o deslocamento dos africanos para as zonas mais quentes e húmidas. "Entre 1912 e 1932, foram postos de lado 25382 hectares de terra para 'reservas indígenas' e deram-se 1000 hectares (com títulos) a indivíduos africanos. Durante o mesmo período, mais do dobro daquela área (62678 hectares) foi concedida a 180 estrangeiros e uma extensão quinze vezes maior (404917 hectares) foi distribuída por colonos portugueses." A expropriação da terra atingiu valores maiores nos finais da década de sessenta.
Globalmente, se o grande capital se apossou e desenvolveu a mono cultura e os minérios, o pequeno capital na mão dos emigrantes e dos angolanos portugueses orientou-se para o comércio, as pescas e a agricultura que não confrontasse os grandes monopólios. A indústria, essa, era protegida pelo Governo central de Portugal. Uma forma de monopólio encapotado.

35 - Não obstante

-- um aparelho ideológico consistentemente apoiado por uma legislação racistamente subentendida, pela Acção Psicológica (Psico), pela Escola, pela Igreja Católica portuguesa e pela Comunicação Social;

-- um aparelho de controlo repressivo da Administração e da PIDE-DGS, apoiados por alguns energúmenos portugueses (em número ínfimo: uma semana depois do 25 de Abril de 1974 circulava por Malanje um lista com meia dúzia de nomes a quem era exigida a saída imediata de Angola);

-- um sistema económico com um crescimento invejável (a título de reportagem só um indicador, o das estradas asfaltadas: em 1953, 85kms; em 1960, 400kms; e, em 1772, 7000kms. Isto num total de 72400kms de estradas asfaltadas e não asfaltadas, em 1973) o paradigma do colonialismo-sem-colonos português numa autodefesa cega comportava a sua própria destruição, mercê de uma incapacidade para entender e para desenvolver um modelo com os povos angolanos de cultura bantu. 35 - Após cerca de trinta anos de paz podre:

Em 1954, era criada a União dos Povos do Norte de Angola (UPNA) que, em 1958, passou a ser UPA, a conselho americano, para esvaziar o carácter exclusivamente Bacongo.

Em 1961, entre 4 e 24 de Fevereiro, em Catete e sobretudo na Baixa de Cassanje explode a Guerra de Maria (" ... assim chamada por um dos seus inspiradores ter sido António Mariano", próximo da UPA), na sequência de uma greve nas plantações de algodão da Cotonang: "queimam sementes, destroem pontes fluviais, missões católicas, lojas e casas" e clamam pela independência. "As Forças Armadas esmagam a revolta com Companhias de Caçadores Especiais e bombas incendiárias lançadas de aviões". (Como no Quénia e mais tarde em 1967 no distrito do Bié, acompanha a revolta a crença de que se se fosse morto por um tiro se ressuscitava: quanta loucura daqui resultou ...). Em 15 e 16 de Março de 1961, uma-onda-de-terrorismo-respondida-por-igual-onda-de-terrorismo-numa-rota-de-colisão-com-a-barbárie eclode no Norte de Angola.

Em 1962 o Partido Democrático de Angola funde-se com a UPA originando a FNLA. Assume assim um carácter nacional. Porém em 1964 e 1965 com a saída de angolanos ovimbundos e cabindas a FNLA reduz-se novamente à sua condição baconga. Em 1970 abre uma frente a partir de Catanga para o Leste de Angola, a Rota do Cassai.

Em 1956, surge o Movimento para a Independência de Angola, que conjuntamente com o Partido Comunista de Angola (PCA - 1955) e o Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUA), em 1960, vieram a dar origem ao MPLA. Movimento de carácter nacionalista. Em 4 de Fevereiro de 1961 atacam prisões de Luanda para libertar políticos e uma esquadra da polícia. Em 1963 foram expulsos do Zaire, isolando ainda mais a frente dos Dembos. Em 1964, desenvolvem acções de guerrilha em Cabinda e, no mesmo ano, abrem uma frente no Leste onde, em 1966, desenvolvem a primeira acção armada. Duas rotas são utilizadas: a do Cuando e a do Luena. Em 1970 chegam a actuar no Kuanza. Em 1973, fruto de dissidências internas abandona a frente leste e reduz a actividade a Cabinda.

Em 15 de Março de1966 oficialmente é criada a UNITA e, a 4 de Dezembro, atacam Teixeira de Sousa. Rival do MPLA na luta pelo controlo do leste angolano.

Para além dos três movimentos de libertação de Angola, o NGWIZACO e o NTOBAKO surgem também nos anos cinquenta batendo-se pela independência de Angola sem recurso às armas.

Penso ser pacífico dizer, porque reconhecido por dirigentes dos movimentos de libertação, que em 1974, militarmente, a situação estava controlada pelas Forças Armadas Portuguesas.
O mesmo não é dizer que Angola era por fim portuguesa.

36 - A contra-subversão ou a ilusão da dominação
Paralelamente à guerra, o poder colonial desenvolveu mesmo uma estratégia suicida com o objectivo de "absorver" a alma identitária de um povo: o reordenamento.
" ... os esquemas de reordenamento agruparam africanos anteriormente dispersos em vastas aldeias organizadas ao longo de estradas que eram regularmente patrulhadas ..." (...) "Cada família tinha de construir a sua própria palhota e manter as suas hortas e animais dentro de uma área prescrita, habitualmente cerca de 30 metros quadrados. Todos os residentes eram obrigados a dormir na nova aldeia à noite e havia sanções para aqueles que não denunciassem às autoridades qualquer pessoa estranha nas redondezas ou quem quer que faltasse na aldeia". O primeiro aldeamento apareceu no distrito do Bié.
Consequência directa: o despojamento da terra e sua disponibilização à voracidade dos portugueses; fomentação da revolta em zonas de Angola aparentemente "pacíficas", na zona centro e sul.

Não posso chamar conclusão a esta última parte desta leitura da História de Angola. A História não tem fim. No entanto, esta abordagem pessoal ficaria incompleta se não tratasse a cidade, baseando-me na vivência que tive de Malanje.

É sabido que a mesma máquina fotográfica nas mãos de duas pessoas regista imagens diferentes.

Havia duas cidades na mesma cidade: uma, estruturada e com uma cultura própria de dominante portuguesa; outra, sem infraestruturas de base e com uma cultura dominante bantu. Na cidade do asfalto desenvolveu-se uma sociedade europeia, com pouca ou nenhuma indústria, onde prevalecia o comércio e os serviços orientados essencialmente para a população portuguesa. Na outra cidade, a sanzala, habitava a força de trabalho serviçal, sujeita ao arbítrio da lei do colonialismo-sem-colonos e subjugada na sua liberdade de circulação (a partir de determinadas horas necessitavam de cartão assinado pelo "patrão" senão eram detidos: o meu cozinheiro, o meu "mestre" de tantos anos, volta e meia esquecia- se e lá ia o meu pai libertá-lo à polícia - únicos momentos em que o meu pai falava em Kimbundo em casa - nunca soube o que dizia ao "mestre").

Nesta dicotomia assumida uma nuance não despicienda: a classe menos favorecida coincidia com uma raça, a raça colonizada.
Desta interacção resulta que a maioria esmagadora da cidade do asfalto olhava como natural as relações estabelecidas. Embora, reconhecidamente, não tenha participado da violência do colonialismo-sem-colonos. Tacitamente não a via. O dia-a-dia das relações sociais eram basicamente entre os da cidade do asfalto. Creio mesmo que uma maioria não conhecia o "mato".

Com o 25 de Abril de 1974, vi, vivi por dentro, os ares da liberdade. Enquanto os da cidade asfalto ficaram atávicos pelo seu (meu) analfabetismo político, os da cidade periferia estavam organizados, com uma consciência política inimaginável.
Oh inteligentes da contra-subversão !!! ... Não perceberam nada das leis da História.

Ficam contudo duas questões recorrentes para as quais não tenho respostas convincentes passados tantos anos: porquê, como se gerou, o que provocou a dipanda, quando em 1961 num contexto menos favorável a angolanidade se sobrepôs? O que tornou possível que uma revanche vingativa por parte da população negra não se verificasse?


Bibliografia


Estiveram comigo na "minha grelha de leitura da História de Angola"

Angola - Atlas da Lusofonia , Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Editora Prefácio, Lisboa, 2004.
ANGOLANOS, Centro de Estudos, História de Angola , Edições Afrontamento Porto, Porto, 1975.
ANTUNES, José Freire, A Guerra de África 1961 - 1974, Vol I e Vol II , Temas e Debates, Lda, Lisboa, 1996.
BENDER, Gerard J., Angola sob o Domínio Português - Mito e Realidade , Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1980.
CARDONEGA, António de Oliveira de, História Geral das Guerras de Angola,Vol I e VOL II, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1972.
CARVALHO, João Augusto de Noronha Dias de, Henrique de Carvalho - uma Vida ao Serviço da Pátria , Composto e Impresso nos Serviços Gráficos da Liga dos Combatentes, Lisboa, 1975.
FERRO, Marc, História das Colonizações - das Conquistas às Independências - Sécs. XIII-XX , Editorial Estampa, 1996.
MARQUES, A. H. de Oliveira, SERRÃO, Joel, O Império Africano 1890 - 1930, Editorial Estampa, 2001.
NUNES, António Pires, Angola 1966 - 74 - Vitória Militar no Leste , Tribuna da História - Edições de Livros e Revistas Lda, Lisboa, 2002.
PELISSIER, René, História das Campanhas de Angola - Resistência e Revoltas 1845 1941 , Editorial Estampa, Lisboa, 1997. Fontes das Imagens

Imagem 1, Isabel Castro Henriques, os pilares da diferença ;
Imagem 2, Centro de Estudos Angolano, História de Angola ;
Imagem 3, René Péllissier, História das Campanhas de Angola ;
Imagens 4 e 5, Pedro Cardoso, Atlas da Lusofonia;
Imagem 5 e 6, Paulo Salvador, Recordar Angola

ORIGEM

VIDEOS: Angola em até 23 de ABRIL de 1974


 

Angola I
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Angola II 
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Angola III
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Angola IV
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Angola V


sábado, 20 de novembro de 2010

Leonel Cosme: (Re)pensar Portugal e o Atlântico Sul



Leonel Cosme (n. em 1934, em Guimarães) viveu 30 anos em Angola, incluindo cinco após a independência, como cooperante. Foi o co-organizador das Edições Imbondeiro da antiga Sá da Bandeira (hoje, Lubango), em 1960-65, entre outras actividades culturais e cívicas, como sejam a formação de radialistas ou o comprometimento com o MPLA. Antigo jornalista, e ainda cronista, escritor e investigador, lançou agora o livro que é um testemunho eloquente da sua capacidade de pensar para lá das aparências, dos preconceitos e das verdades falsas (leia-se "afirmações infundamentadas") estabelecidas como dogmas. O título é, já por si, instigante, revelador do conteúdo.
Publica agora um livro fundamental ? Muitas são as Áfricas, Lisboa, Novo Imbondeiro, 240 págs. - para quem quiser compreender sobretudo Angola, noutras facetas, sem preconceitos, mas também alguns aspectos do Brasil, Portugal e Cabo Verde, através da análise da acção e pensamento colonizadores e da acção e pensamento libertadores de portugueses e (ex-)colonizados. Não escreve um tal livro quem quer, mas quem pode, pela sua singular vivência e posição. Um testemunho intelectual de grande qualidade, um "testamento" de saudoso amor à terra e ao povo. Inclui estudos magníficos sobre o lusotropicalismo que não existiu (refutação do que Freyre aplica a Portugal e colónias e, indirectamente, refutação das "crioulidades" angolanas que andam por aí), um sertanejo-intelectual progressista do século XIX (A. F. Nogueira), as relações históricas do Brasil com Angola, a literatura colonial (goste-se ou não da sua perspectiva muito própria), a guerra colonial e outras guerras e a (des)memória dos intervenientes e dos povos, os caminhos que África tem tomado pela mão dos seus dirigentes e intelectuais, o enigmático poeta angolano João-Maria Vilanova, que não queria que se soubesse quem era, para fazer valer a sua obra, acima de toda a biografia, e se suicidou em 2005 em Vila Nova de Gaia, com mais de 70 anos (um texto perspicaz, "psicanalítico", numa homenagem sentida e altamente problematizadora), incluindo um pungente "Quo vadis, África?", analisando o racismo, a xenofobia, a corrupção, a guerra, a fome, com especial incidência em Angola, mas comparando episodicamente com Cabo Verde, Nigéria, África do Sul, Quénia, Estados Unidos, Brasil e Portugal.
Muito historiador, crítico literário, docente de "lusofonia", ideólogo neo-lusotropicalista, terá aqui matéria para evitar julgamentos prévios, generalizações totalitárias, preconceitos arreigados, atitudes de senso duvidoso. Cosme não procura convencer com argumentação armadilhada, antes prefere demonstrar. E mais: tem a elegância, que tanto escasseia, de ser pedagógico, sem rudeza nem achaques de verrina. É dono de um discurso maduro, sereno e substancioso, que esclarece e não amofina, de um verdadeiro sénior, um mais-velho com princípios e convicções antigos ? de escrupulosa e vigilante ética individual e social. Um livro que especialistas, estudantes, políticos e portugueses, só para ficar por aqui, deviam ler com cuidadosa atenção, e verificarem que o grande ensaísmo não reside apenas em José Gil ou Eduardo Lourenço e que não há temas menores, tudo dependendo do arcaboiço de quem aborda o quê. Muitas "gralhas", até na capa, não deslustram o volume, que traz referidos Steiner, Kandjimbo, Inocência Mata, Agostinho Neto, Óscar Ribas, Kapuscinski, Hatzfeld, Waberi, Maathai, Freyre, Andrade Corvo, Laban, Pepetela, Senghor, Jaime Cortesão e tantos outros. É que Cosme tem sido um leitor voraz e um cronista pertinente de cujos textos, publicados em A Página da Educação, está já no prelo uma escolha em livro com o título de Os Portugueses, justificando-se uma natural expectativa acrescentada.
É o autor um homem recto, honrado, rigoroso e bem informado quanto ao fundamental (não embarcando em modas e ouropéis de "intelectualite", que, tantas vezes, disfarçam uma incapacidade de humanismo, pensamento e objectividade), um não académico que preza o pensamento vivificante, estribando-se nos pensadores mundiais ou regionais que o ajudam a ilustrar a sua argumentação dialéctica sem metafísica, limpa de sobrecargas de erudição desnecessária (apenas a exigível), no seu discurso sobejamente claro e sopesado, pela prática do jornalismo esclarecido.
Por vezes, quando fala, com evidente gosto, saber e pedagogia, dos variados interesses em jogo na época colonial (p. ex., sobre a maçonaria, Norton de Matos e José de Macedo, em Angola), parece um português empenhado na vertente colonial, pois não quer passar pelo que não é (angolano). Outras vezes, discute Angola com tanto prazer e objectividade que presta um serviço melhor do que muitos patriotas precipitados e preconceituosos. Quando dá essa ideia de parecer aproximar-se de formulações coloniais (referindo muitos autores portugueses ao serviço nas colónias, não oferecendo de imediato uma crítica a certos conteúdos), afinal, verifica-se tratar-se exclusivamente de apresentar dados disponíveis nem sempre lidos com proficiência (por quem tinha a obrigação profissional e política, e teria de contextualizar factos), de historiografar evidências esquecidas ou escamoteadas (p. ex., o povoamento europeu de Moçâmedes) ou de chamar a atenção para autores desconhecidos ou incrivelmente menosprezados (como A. F. Nogueira). Como não dar importância aos estudos sobre a ideia e, depois, a fundação da Universidade na Huíla (Angola) e sobre a Kuribeka, desfazendo, neste caso, o equívoco corrente de considerá-la o mesmo que a maçonaria? Cosme critica, p. ex., o historiador norte-americano Gerald Bender, por laborar em alguns erros. Dependendo do conceito e grau de cidadania, não se pode simplesmente ignorar certas histórias, secundárias que sejam, mas que confluíram na independência e que o A. pretende arrancadas às sombras do esquecimento ou da distorção. Trata-se de um belíssimo esforço de esclarecimento, que convém aproveitar sem preconceitos.
Sobre Equador, de Miguel Sousa Tavares, diz que é um romance "colonial" (usa aspas) de um autor que não considera obviamente colonialista. Este pormenor serve para mostrar como o A. pensa a contemporaneidade, as ilusões que podem acometer os leitores, de novo fascinados por uma enxurrada de textos exóticos e turísticos, como se não quisessem ou não pudessem ver para lá das aparências da fantasia, como quase sempre ocorreu com os portugueses em relação a África. Daí que ganhe outra importância, face ao surto de novas Áfricas distorcidas, o seu trabalho de resgate de um vulto oitocentista como A. F. Nogueira (investigou sobre a sua origem em Portugal e Brasil, onde viveu e trabalhou o sertanejo, mas persistem lacunas de dados), que soube enxergar a questão africana e a "raça negra" muito além do que racistas como Oliveira Martins conseguiram. Noutro texto, de modo apaixonado e com prolífica fundamentação de escritos machistas, sexistas e dominadores, passa em revista a luta de muitas mulheres, ao longo sobretudo da história ocidental, mas também africana, para o reconhecimento de iguais direitos.
Cosme escreve e pensa a complexidade com elegância e clareza, com palavras justas e comedidas, directas ao coração das grandes questões da "lusofonia" social, política, histórica e cultural, sem se ficar nessa matéria. Com suas diferenças, a maior das quais é o tamanho e abrangência da obra, é comparável, na capacidade de argumentação, na cooptação de provas e na destreza demonstrativa, a ensaístas como Alfredo Margarido, Adolfo Casais Monteiro ou António Sérgio. Este livro vai permanecer como um testemunho, de alguém que sabe, para quem, na Europa, quiser ver África para lá da imediatez dos "exotismos". Os africanos (sem preconceitos) também ficarão a ganhar com a leitura.
Muitas são as Áfricas
Leonel Cosme
Novo Imbondeiro. Lisboa
(http://www.hotfrog.pt/Empresas/Novo-Imbondeiro-Editores-Lda)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

As colónias: da perda do Brasil à luta contra a escravatura

Adelino Torres

Três problemáticas estão no centro da política colonial do liberalismo a partir de 1820: a assimilação jurídico-administrativa das colónias ã metrópole, ideia integradora consagrada nas constituições liberais da primeira metade de Oitocentos; a luta contra o tráfico da escravatura, iniciada em 1836 por Sá da Bandeira, e o combate à própria escravidão enquanto sistema económico e social nas colónias.
As soluções encontradas revelaram-se inoperantes durante muito tempo e a legislação liberal, idealista e doutrinária, encontrou obstáculos por vezes intransponíveis.
Na verdade, a retórica da assimilação integradora escondia uma diversidade de situações cuja autonomia punha, de facto, em causa a soberania portuguesa; as leis contra o tráfico da escravatura eram inaplicadas devido aos interesses instalados nas colónias africanas e no Brasil; as medidas legais para implementar a abolição da escravatura não passaram, durante muito tempo, de meros princípios vazios de conteúdo por exigirem um estádio de desenvolvimento económico e social que aqueles territórios estavam longe de possuir e que Portugal não tinha condições de implementar.Até ao terceiro quartel do século XIX, a história colonial portuguesa pode talvez dividir-se, como alguns autores o sugerem, em cinco períodos. O primeiro estende-se do século XV a meados do século XVI. É o período áureo dos Descobrimentos, da abertura das rotas atlânticas até à índia, da dominação de pontos estratégicos nas costas da Guiné, do Congo, da África Oriental e da Ásia, em que a influência portuguesa chega às mais remotas paragens da Abissínia, costa da Arábia, Pérsia, Ceilão, China e Japão.
O segundo período, de meados do século XVI a 1640, caracteriza-se por uma decadência que provoca o desmoronamento do império da índia, a perda da independência nacional em 1580 e a consequente conquista, por outros povos europeus, dos territórios africanos sob tutela portuguesa.
O terceiro período vai da Restauração de 1640 ao governo do marquês de Pombal, no século XVIII. Portugal liberta-se do domínio espanhol e arrebata, das mãos dos Holandeses sobretudo, os territórios perdidos. De novo o ouro e as pedrarias do Brasil inundam o País, mas essa riqueza, que não beneficia nem a agricultura nem a indústria, é dissipada em luxos ostentatórios e em importações que vão empobrecendo a Nação, ao mesmo tempo que as grandes companhias coloniais soçobram uma após outra. A Companhia Geral do Brasil fecha as suas portas em resultado das manobras dos Jesuítas em 1720. A Companhia de Cacheu e Rios da Guiné, bem como a de Maranhão, pouco duram.
O quarto período começa com o governo do marquês de Pombal. Retoma-se a ideia das grandes companhias coloniais. Pombal funda a Companhia do Grão-Pará e Maranhão em 1755, combatida desde o início pelos Jesuítas, que só a conseguem arruinar em 1778 depois da queda do ministro. Surge a Companhia de Pernambuco e Paraíba e, em Moçambique, a Companhia dos Mujaos e Macuas, cuja actividade só irá durar três anos. Mercê do voluntarismo da política pombalina, parte do dinheiro do Brasil é aproveitada para criar fábricas e indústrias na metrópole. Em Angola, o governador pombalino Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho tenta, exemplo único, lançar uma indústria siderúrgica criando a fundição de Nova Oeiras. O seu projecto de modernidade, pioneiro em pleno século XVIII, não terá, porém, seguidores.Poder-se-ia talvez distinguir ainda um quinto período, que se alonga de 1777 a 1869, já na segunda metade do século XIX. São, segundo as palavras de Tomás de Almeida Garrett, «noventa e dois dolorosos anos» de «anarquia e corrupção». OsFranceses invadem Portugal, provocando destruições e pilhagens. A corte foge para o Brasil, o qual rende menos de metade do que antes das invasões francesas. O comando dos oficiais ingleses humilha o exército nacional. A guerra civil entre liberais e absolutistas arruína a Nação. A Inglaterra ocupa a ilha da Madeira e ordena à Companhia das índias o controlo de Goa. O tratado de 1810, assinado entre Portugal e a Inglaterra, abre o mercado brasileiro ao comércio inglês e vem completar esta série de calamidades para a economia portuguesa da época.
No plano colonial, todas as atenções estão, no século XIX, concentradas no Brasil. Da África, com uma ou outra excepção, ninguém quer saber. As exportações para as colónias diminuem mais de 90 %.
Em 1822, o Brasil, cansado da pilhagem colonial, que a presença da corte tinha agravado, proclama a sua independência. Finalmente, em 1825, terminada a ilusão de ainda recuperar aquele território, Portugal é obrigado a ratificar o tratado de reconhecimento oficial de um facto consumado. Apesar de as ligações comerciais com o Brasil se manterem, as circunstâncias dão agora um certo relevo ao que resta do «império colonial» em África, mas a metrópole não tem ainda plena consciência do que poderiam valer as colónias, com excepção de raros homens de Estado, como Lavradio e Sá da Bandeira. Para além da retórica oficial, é o entorpecimento que prevalece.
Depois desta breve síntese, importa caracterizar a política colonial do liberalismo entre a Revolução de 1820 e 1850. Que princípios a orientaram e que resultados obteve? Como explicar o desfasamento entre o discurso e os actos, entre a «vocação colonial» supra-histórica e os magros resultados obtidos, entre a generosidade das intenções proclamadas e a sórdida realidade de um colonialismo de servidão que se perpetua?
Falar de «quinhentos anos de colonização» não tem grande sentido. E uma perspectiva destorcida da realidade que não traduz o conhecimento do passado, mas deriva apenas de uma tentativa vã para o dominar. «A visão que ainda hoje predomina da história colonial portuguesa do século XIX resulta desse condicionamento», diz Valentim Alexandre {Origens do Colonialismo Português Moderno, p. 5).
Até ao século XIX, Portugal não constituiu o que se pode chamar com alguma propriedade um «império colonial», na medida em que os territórios integrados se resumiam a algumas parcelas da índia e a uma vasta área do Brasil. AlexandreLobato escreve acertadamente que nos territórios africanos havia apenas esferas de influência, na costa da Guiné, em torno de Luanda, no vale do Zambeze.
A colonização não ia além do comércio de permuta com os Africanos, no qual, aliás, eram estes que controlavam o essencial dos circuitos do comércio de longa distância no interior de Africa. Os Portugueses e outros europeus tinham uma presença nos entrepostos do litoral, a partir dos quais praticavam a troca directa com os povos do sertão e negociavam no tráfico de escravos para o Brasil e Cuba. O seu número era de facto escasso, o que levou muitos autores a afirmar que a sua influência em África foi tardia e quase negligenciável. Mas o problema da «influência» - ou, melhor, da «interinfluência» euro-africana - é mais complexo. É conveniente sublinhar, como já o fez Alfredo Margarido num ensaio exemplar (Les Porteurs: forme de domination et agents de changement en Angola: XVIIe-XIXe siècles), que a influência da penetração portuguesa em África não pode ser apenas medida pelo número de europeus presentes fisicamente no terreno. Ela depende também das mercadorias e bens que circulam entre a costa e o interior e que encerram, para além da sua utilidade imediata, a simbólica de uma apreensão do mundo feita de novas referências culturais. Esta gera dinâmicas desestabilizadoras que provocam mutações, positivas ou negativas, pouco importa agora. Os efeitos da arma de fogo, por exemplo, não podem ser vistos apenas pelo prisma da racionalidade tecnológica (europeia). Eles têm para os Africanos dos primeiros tempos a dimensão mágico-religiosa que resulta da anulação de tempo e do espaço. Antes de integrar a tecnologia, os Africanos tiveram, por assim dizer, de integrar a simbologia do objecto em si independentemente da presença física do Europeu.
Onde chega a mercadoria chega igualmente a influência do outro. Quer dizer, a mercadoria é um bem de uso, um bem de troca, mas também, diríamos, um «porta-voz» e um «agente de propaganda». Deste mecanismo subtil resulta o paradoxo do desfasamento entre o fraco povoamento branco até ao século XX e a indubitável influência que os Europeus - sobretudo os comerciantes quando portadores da mercadoria, note-se - têm junto dos potentados africanos da época, a qual resulta, porém, de equilíbrios delicados por vezes precários.
Mas a influência é biunívoca. Pode dizer-se que até ao fim do século XIX os europeus radicados em África integram com maior ou menor intensidade os valores das culturas locais. Gaspar Ribeiro Vilas fala dos portugueses do século XVI em Angola, que tinham «aceitado hábitos gentílicos, coisa corrente em colónias». Pedro Ramos de Almeida assinala que em 1858, aquando do falecimento em São Tomé de Isidoro Félix de Sousa (senhor de escravos), lhe sucedeu o seu irmão Francisco Félix de Sousa, que «o rei do Daomé investira em sua sucessão, na qualidade de xaxá. Era mais indígena do que português. Considerava-se vassalo do soba. Vivia à moda da terra». Era o chamado fenómeno da «cafrealização», que tantas dores de cabeça deu a governadores coloniais, como António Enes e Norton de Matos, e que provocou atitudes e palavras manifestamente excessivas.
De uma maneira geral, podemos dizer que a intensidade das correntes comerciais no sertão, mesmo quando a população branca era numericamente fraquíssima e a ocupação do interior praticamente nula, só pode ser explicada pela actividade produtiva e comercial dos Africanos, mesmo quando a «mercadoria» é o próprio homem. Isto parece contradizer a falsa imagem do Africano, mero actor secundário e passivo, despertado de uma espécie de «letargia milenária» pela actividade polarizadora da civilização europeia. O conceito de «colonização» é bem mais complexo do que o simplismo das dualidades ainda em voga por vezes sugere.
Mas, em termos gerais, políticos e económicos, é certo que até ao século XIX os europeus que frequentavam as costas de África representavam mais interesses privados do que interesses dos Estados. As regiões africanas, diz Henri Brunschwig, eram consideradas como «o túmulo dos homens brancos» e, para a Europa, a África não passou de um teatro de operações secundárias até meados de Oitocentos. A teoria da. colonização moderna só foi desenvolvida por Paul Leroy-Beaulieu em 1874 no seu livro De la colonisation chez peuples modernes, cujas reedições sucessivas a Europa inteira leu, confirmando a concepção ingénua de uma «colonização civilizadora».
A teoria da prioridade do descobrimento sucedeu a teoria da prioridade da ocupação (A. Morais de Carvalho), mas essa «ocupação» foi, nos territórios reivindicados por Portugal, puramente nominal. Só em 1840, por iniciativa de Sá da Bandeira, se estabeleceram em Moçâmedes os primeiros colonos. Mas esta e outras tentativas que se lhe seguiram no século XIX estiveram longe de obter o êxito esperado, porque a emigração continuou a dirigir-se para o Brasil.
Podemos talvez considerar que três temas principais estão no centro das preocupações coloniais do liberalismo oitocentista:• Uma maior integração dos territórios africanos e tendência para a assimilação nos planos jurídico e administrativo;
• A luta contra o tráfico de escravos, que mesmo depois da independência do Brasil continuava para aquele país;
• O reconhecimento oficial de que a própria existência da escravatura era um obstáculo decisivo para o desenvolvimento dos territórios africanos e bloqueava à partida qualquer política modernizadora.
Sobre o primeiro problema, o jurista Artur de Almeida Ribeiro escrevia em 1917: «O domínio colonial instalou-se logo dentro das primeiras constituições, muito à vontade, largamente presenteado com regalias teóricas, mas privado de vantagens práticas. Os textos de 1822 e 1826 nem mesmo revelam, por qualquer palavra, o carácter colonial duma parte do território da Nação, fundida no todo geral a que se aplicam as disposições destes textos. E o liberal silêncio, de que mais tarde falará Almeida Garrett, mas que traduzia, pura e simplesmente, uma notável tendência para a assimilação. A própria Constituição de 1838, conquanto estabelecendo já uma excepção ao regime anterior, estendeu às colónias a divisão metropolitana em províncias, consagrando a designação províncias ultramarinas, e falseando assim as noções positivas sobre o carácter especial desses territórios e o regime que mais lhe convém.» (In Antologia Colonial Portuguesa, p. 155.)
O Parlamento português, dominado por juristas pouco familiarizados com os problemas das colónias, embrenhou-se numa retórica abstracta e doutrinária, embora generosa, que nada tinha a ver com as questões de fundo nem garantia, de facto, os direitos de cidadania que às populações eram atribuídos na lei.
Na verdade, a «integração» e a «assimilação» jurídico-administrativa dos territórios africanos, idealmente proclamadas nos textos do liberalismo oitocentista, escondiam, na prática, o alto grau de autonomia de que beneficiavam todos aqueles que, na África Ocidental e Oriental, se enriqueciam à custa do tráfico de escravos, do capitão--mor ao governador, do comerciante branco, mestiço ou negro ao importador brasileiro que mantinha interesses em Angola, Moçambique, Cabo Verde ou São Tomé.
A segunda preocupação do liberalismo, personificada pela acção política de Sá da Bandeira em especial, foi a luta contra o tráfico de escravos.
Porém, também aqui a teoria difere de algum modo da realidade. E certo, como o sublinhou José Capela, que não há razões para duvidar da sinceridade e doempenhamento de Sá da Bandeira contra o tráfico e contra a própria escravatura como sistema económico. Mas o decreto de abolição do tráfico de escravos, datado de 12 de Outubro de 1836, não terminou com essa actividade, por não estarem reunidas as condições nem as autoridades disporem de meios materiais suficientes para fazerem aplicar a lei com todo o rigor necessário. Neste episódio, como em muitos outros da história colonial portuguesa, não há matéria para triunfalismos. Só algumas décadas mais tarde é que o tráfico chegou realmente ao fim.
As razões desta luta contra o tráfico da escravatura e também da inoperância que a fez arrastar--se, com desprestígio para Portugal, necessitam de ser melhor esclarecidas. A evocação do humanismo da Revolução de 1820, inspirada, segundo Silva Cunha, nos ideais da Revolução Francesa de 1789, não parece chegar para explicar as motivações profundas do movimento abolicionista português. A lentidão e a fragilidade dos resultados obtidos também não podem ser escamoteadas.
Na realidade, só depois da independência do Brasil é que o problema da abolição do tráfico da escravatura começa a preocupar seriamente o Governo de Lisboa. Enquanto o Brasil foi colónia, todos os benefícios que este comércio trazia à produção brasileira alimentavam o import-export português. Contudo, depois da independência daquele país latino-americano, começa a verificar-se que o tráfico servia a prosperidade brasileira sem vantagem directa para a economia portuguesa. «Então e só então é que se deu conta que se tratava de uma iniquidade que deixara a África na penúria», escreve José Capela (As Burguesias Portuguesas e a Abolição do Tráfico da Escravatura, 1810-1842, p. 66). A questão foi logo levantada nas Cortes pela Comissão do Ultramar em Abril de 1822. Esta verifica que de ora em diante o tráfico só irá favorecer os interesses particulares da burguesia brasileira, em detrimento da economia portuguesa. Quando a independência do Brasil foi, enfim, considerada irreversível, por volta de 1830, é que o movimento contra o tráfico da escravatura começou a tomar consistência em Portugal. Isso não foi apenas devido às pressões da Inglaterra - que apesar de tudo aceleraram o processo -, mas também devido ao aparecimento de interesses metropolitanos virados para as colónias africanas, distintos dos interesses brasileiros.Pode perguntar-se então por que é que o decreto de 1836 teve efeitos tão limitados e tardios. José Capela diz mesmo que ele «não só não extinguiu o tráfico como, de alguma maneira, o excitou». A causa pode talvez encontrar-se na complexidade dos elementos sociais e económicos em jogo.
A começar, no plano epistemológico, pelos conceitos utilizados na análise, sem a clarificação dos quais não podemos deslindar um emaranhado de dados empíricos. Com efeito, falar-se de «burguesia colonial» como equivalente a «burguesia portuguesa» só na aparência tem algum rigor. O conceito de «burguesia» aplicado ao espaço económico Portugal-colonias, como um todo não diferenciado, não explica nem a diversidade dos elementos em presença nem as contradições que lhe estão inerentes.
Por outras palavras, no que se refere ao século xix, é necessário distinguir entre «burguesia metropolitana» e «burguesia colonial», ambas comportando subdivisões complementares ou concorrenciais conforme a conjuntura histórica.
Podemos considerar talvez a burguesia metropolitana do século XIX como o conjunto de elites nos vários sectores da economia (agricultura, indústria, finança e grande comércio), cujos bens de raiz se encontram ou têm a sua origem na metrópole, que possuem propriedades, empregam mão--de-obra assalariada e movimentam capitais. Mesmo quando certos elementos dessa burguesia metropolitana mantêm um intercâmbio com as colônias africanas, tais ligações não são, em geral, mais do que uma das vertentes, se não mesmo o subproduto, da sua actividade principal na metrópole.
O conceito de burguesia colonial, em contrapartida, aplica-se aqui às élites possidentes instaladas nas colônias, empregando mão-de-obra escrava, servil ou, mais raramente, assalariada, com residência nos centros urbanos dos territórios colonizados e possuindo aí os seus bens de raiz, prestígio e influência, independentemente dos interesses ou haveres que eventualmente possam ter em Portugal (V. Adelino Torres, Colonização e Capital, a publicar).
No interior das burguesias metropolitana e colonial poderíamos ainda distinguir grupos coerentes, obedecendo a uma lógica própria, inseridos numa rede articulada de relações económicas e sociais. Vejam-se, por exemplo, incluídas na burguesia metropolitana, a burguesia industrial nascente e as poderosas burguesia agrária e burguesia mercantil. Repare-se ainda, dentro do mesmo sector, que os interesses da burguesia mercantil do Porto e da burguesia mercantil de Lisboaestão longe de ser coincidentes, tanto na questão colonial (o último quartel do século xix e o século xx fornecerão muitos exemplos) como noutras matérias. Por sua vez, a burguesia colonial tem, em cada um dos territórios africanos, características diferentes. Porém, no período do tráfico da escravatura, as burguesias de Angola, Moçambique e Brasil estão aliadas contra os interesses económicos e políticos portugueses, porque são os ganhos fabulosos do tráfico que lhes permitem acumular rapidamente riquezas e porque este corrompera de tal modo as estruturas sociais que já não era possível encontrar alternativas a curto prazo.
Outra precisão que talvez valha a pena fazer é que a «burguesia colonial» estava longe, pelo menos até ao fim do século XIX, de ser constituída unicamente por europeus, como por vezes alguns ainda julgam. José Capela confirma que «havia uma multidão de pretos, brancos e mulatos. Todos eram negociantes de escravos». Muitos testemunhos da época comprovam que o papel dos Africanos nunca foi meramente passivo, como já tivemos ocasião de referir. Lopes de Lima diz-nos que em 1844 viviam em Angola apenas 1830 brancos. Maria Emília Madeira Santos, na sua introdução ao Diário de Silva Porto, sublinha a diversidade racial dos sertanejos do Bié (Angola) em meados do século XX. O próprio Silva Porto relembra o sentido que a palavra «branco» adquirira no sertão: «Em geral por estas paragens dão o nome de brancos a todas aquelas pessoas que vestem calças sem excepção de cor e menos de condição, é bastante para isso possuir uma fazenda.»
Mas houve africanos com cabedais, alguns dispondo mesmo de vasto crédito nas praças de Benguela e de Luanda, tal como aconteceu não apenas em Angola, mas em Moçambique, em São Tomé, em Cabo Verde e na Guiné.
A «burguesia colonial» não tem, portanto, um conteúdo étnico preciso, porque pessoas das diferentes raças estiveram, no século XIX, repete-se, em condições de fazer parte dela. Certas grandes famílias africanas deixaram a sua marca na história desses territórios e só no século XX o seu rasto foi parcialmente apagado por uma política deliberada do poder colonial português e pelo crescente povoamento branco de alguns desses territórios. Essas consequências foram agravadas pela escassez de fontes escritas do lado africano, pela visão etnocentrista que transformou o discurso colonial num monólogo autocontemplativo, quase a-histórico, e pelos preconceitos ilusórios da pretensa10
superioridade do homem branco. Perante um «interlocutor» sem voz, a história colonial teceu um discurso arbitrário.
Em resumo, a existência de burguesias coloniais estabelecidas em África e no Brasil (mesmo depois da independência deste), obedecendo a interesses que não se identificavam com os da burguesia portuguesa, permite compreender melhor que a abolição do tráfico da escravatura não dependia apenas, nem principalmente, da promulgação de decretos em Lisboa. O Governo Português precisaria de meios muito mais poderosos para estar em condições de fazer aplicar a lei.
Mas Portugal, empobrecido pelas invasões francesas, devastado pela guerra civil, enfraquecido pela independência do Brasil e pela concorrência inglesa naquelas paragens, atrasado economicamente em relação a uma Europa já em plena revolução industrial, sem marinha de guerra, com uma administração interna que mais tarde Leroy-Beauheu, comedido, classificaria de «detestável» e causa de todas os males da Nação, não estava em condições de, com rapidez e eficácia, impor um decreto que arruinava as burguesias coloniais sem nada lhes dar em troca a curto ou médio prazos.
É bom relembrar a esse propósito que, segundo Andrade Corvo, em 1836 o rendimento público de quase todas as colónias portuguesas (índia, Macau, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde) era de cerca de 578 contos. A índia e Macau somavam 288 contos. Os restantes 290 contos pertenciam às colónias onde existia tráfico de escravos. Para sermos mais precisos ainda, acrescente-se que, desses 290 contos, 200 constituíam proventos do tráfico e apenas 90 provinham de outras receitas.
No século XX, tanto Angola como Moçambique eram, por assim dizer, muito mais colónias do Brasil do que de Portugal. Não foi, portanto, por acaso que os sentimentos de «independência» surgidos repetidas vezes naquelas duas colónias africanas fossem no sentido de ficarem ligadas ao Brasil. O que unia as três burguesias coloniais era a necessidade de manterem o mais tempo possível o tráfico da escravatura. Se não fossem as medidas drásticas tomadas pela marinha inglesa a partir de 1850, é quase certo que o calamitoso tráfico de escravatura para o Brasil teria continuado muito mais tempo.
Dissemos anteriormente que três questões estiveram no centro da política colonial do liberalismo: a assimilação jurídico-administrativa, a luta contra o tráficoe a lenta tomada de consciência de que a sobrevivência da escravatura nos territórios africanos impedia qualquer processo de desenvolvimento moderno e tornava inviável a desejada complementaridade entre o mercado da metrópole e os mercados coloniais.
Já nos referimos às duas primeiras questões (assimilação e tráfico). Desenvolveremos o problema do trabalho escravo no texto mais particularmente consagrado à segunda metade do século XIX. Importa todavia dizer aqui algumas palavras sobre este assunto.
Talvez não seja inútil relembrar, antes de mais, que a abolição do tráfico não significou de modo algum a supressão da escravatura. Como notou Valentim Alexandre, a diferença é importante, pois «abolição do tráfico e abolição da escravatura são questões distintas, com uma problemática diversa e pondo em causa diferentes interesses; unificá-los [...] impede de colocar cada uma delas no seu quadro concreto, e conduz a tratá-las sob a óptica do que, numa visão retrospectiva e artificial, lhes dá um sentido aparente - o 'idealismo' liberal ou as pressões inglesas».
O Decreto de 10 de Dezembro de 1836 de Sá da Bandeira, sobre a abolição do tráfico da escravatura a sul do equador, é extremamente cauteloso, devido à previsível oposição que ele iria encontrar nas colónias. Note-se que o decreto proibia o tráfico, mas não a escravatura propriamente dita.
O problema da escravidão e da sua forma imediata que é o trabalho escravo continuará presente nas colónias portuguesas muito depois de ter cessado o tráfico atlântico. A sucessiva legislação sobre o tema é reveladora. Por exemplo, o Decreto de 20 de Abril de 1858, assinado pelo incansável Sá da Bandeira, reconhece que «o estado de escravidão, cuja duração indeterminada se torna incompatível com os princípios proclamados na Carta Constitucional da Monarquia», deve ser abolido.
Em 25 de Fevereiro de 1869, Sá da Bandeira, sempre ele, apresenta ao rei um novo projecto de decreto para a «abolição total e definitiva» da escravidão. E nas razões apontadas ao monarca indica que «todos os Estados europeus que têm colónias aboliram a escravidão que nelas existia, com excepção de Portugal e de Espanha. E no continente americano apenas existem escravos no Brasil».
A acção de Sá da Bandeira contra o tráfico, primeiro, e contra a escravatura, depois, inscreve-se no programa da revolução setembrista que começa a olhar para as colónias africanas como possíveis mercados da produção manufactureira eagrícola nacional, e para as quais se tem por um momento a ilusão de vir a canalizar a emigração portuguesa. Mais remotamente, essa política inspira-se igualmente nos esforços do antigo governador de Angola, Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que durante a sua governação (1764-1772) considerou necessário (e tentou-o) pôr fim ao abuso de «fazer trabalhar os Negros sem os pagar, o que destrói províncias inteiras», pelas deserções que provocava. Sá da Bandeira conhece igualmente bem os relatórios de Saldanha da Gama. Este, referindo-se em 1814 à escravatura e a uma das suas formas mais terríveis, que foi o serviço de transporte por carregadores, apontava também as consequências nefastas para a agricultura, «privada dos braços necessários aos seus trabalhos», e mostrava a impossibilidade de qualquer modernização enquanto tal sistema perdurasse.
Partidário de uma economia moderna e liberal, Sá da Bandeira pretende destruir um sistema depredatório e institucionalizar os mecanismos do lucro e do trabalho assalariado livre, única via para a mudança do sistema e das mentalidades.
Mas, mais ainda do que na abolição do tráfico atlântico, onde havia uma pressão internacional efectiva com meios para intervir, a luta contra a escravatura nos territórios africanos vai revelar-se particularmente difícil. Também aqui não basta-vam decretos para impor o trabalho assalariado livre e proporcionar oportunidades económicas à iniciativa individual. Parafraseando Manuel Villaverde Cabral, tal como na Europa os camponeses arruinados não se precipitaram para a porta das fábricas, também os camponeses africanos não poderiam descobrir sozinhos o caminho das manufacturas ou das plantações. Seria necessário, em primeiro lugar, que estas existissem na primeira metade do século XIX e, em segundo lugar, que a administração portuguesa e a economia colonial tivessem o domínio absoluto do território africano e da sua população. Nenhuma dessas condições foi alguma vez preenchida no período oitocentista.
A verdade é que o Governo de Lisboa só a muito custo se fazia ouvir nos centros urbanos do litoral de Angola e Moçambique. Mas tanto aí como noutras colónias portuguesas, quando os seus decretos chocavam com os interesses coligados dos comerciantes e dos militares, aos quais se juntavam frequentemente os governadores, os obstáculos erguiam-se e as decisões arrastavam-se indefinidamente ou, pura e simplesmente, não se aplicavam.Referindo-se também ao período oitocentista, Vitorino de Magalhães Godinho aponta «o drama da elite portuguesa de então: generosa nos ideais, lúcida na visão das realidades (pelo menos em parte), não dispõe de meios de agir e portanto só fraquissimamente influi na evolução da sociedade a que pertence e de que está quase segregada» (Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, p. 163).
E também o que, de certo modo, se poderia dizer a propósito da acção dos governos liberais nas colónias: tinham uma política colonial que traduziam em decretos, mas não os meios de a fazer aplicar.
Durante todo o século XIX e entrando pelo século XX adentro, o Parlamento português é fértil em legislação. Quando desaparece, mais tarde, a figura do escravo, surge a do liberto, a do serviçal e a do contratado. E duvidoso, porém, como tentaremos provar no texto sobre o período seguinte, que a situação dos povos africanos tenha mudado tão significativamente como se pretendeu.
O balanço da actividade legislativa portuguesa, da revolução liberal ao século XX, não poderia ser feito por entidade mais qualificada do que Norton de Matos. E ele que nos diz nas suas Memórias que a escravatura «reduzida e disfarçada, é certo, se conservou em Angola até há poucos anos», tendo sido os «primeiros governadores da República que [lhe] deram o golpe final»