“Há momentos na vida em que tudo se depara negro e a esperança parece irremediavelmente perdida. Se em Angola não poderia continuar, por sua vez em Portugal, quem regressava de África era recebido do pior modo possível; com hostilidade, desdém e mesmo agressividade.
(…) É intolerável que as pessoas que voluntária ou involuntariamente quisessem abandonar Angola, Moçambique, Guiné ou outra qualquer província não pudessem trazer livremente os seus haveres; dinheiro, carros ou quaisquer outros bens materiais. Prédios, terrenos urbanos ou rústicos, fazendas, fábricas, estabelecimentos, imóveis de qualquer índole, estavam sentenciados a ficar; é mais que evidente que os seus possuidores todos os pretendiam vender mas, em face da situação, não havia quem se interessasse pela sua aquisição. A maior parte dos bens pertencentes aos cidadãos portugueses foi pura e simplesmente abandonada pelo facto de seus donos não terem outra opção.
Chegou-se ao cúmulo de se trocarem carros quase novos por simples volumes de maços de tabaco ou por pequenas porções de determinados alimentos, entre eles o pão, que raramente se encontrava à venda. Houve quem trocasse fazendas e casas por títulos de hipotéticas transferências bancárias para o continente as quais nunca chegaram às mãos dos seus destinatários. O depósito no banco nunca se concretizou e o paradeiro do burlão na maioria dos casos era desconhecido. Os lesados nunca poderiam reclamar sob pena de incorrerem em crime punido por lei, sendo acusados de transferência ilegal e fraude, se persistissem na queixa. facto do Governo Português não acautelar ou, pior ainda, não autorizar a transferência dos bens dos portugueses na altura da descolonização foi uma das maiores injustiças, praticadas por quem mandava e a desgraça de tanta gente, que após longos anos de trabalho, caiu sem culpa nem pecado na mais odiosa das misérias, na pobreza extrema, no desespero, muitos na loucura e até na morte. Foi a situação mais injusta e catastrófica que imaginar se possa! Dum momento para o outro perderem todos os seus haveres sem nada terem contribuído para essa perda. Serem forçados a abandonar o fruto do trabalho árduo no decorrei de longos anos, de canseiras, vigílias, economias feitas à custa de grandes sacrifícios. Deixarem empresas, fazendas, prédios, terrenos, carros, dinheiro, a própria casa com seu recheio, objectos pessoais, roupas, enfim... tudo, (houve pessoas que, se quiseram salvar a vida, regressaram apenas a roupa que traziam vestida).
Para quem espoliado de África, ao chegar a Portugal se encontrava sem nada, sem trabalho e sem dinheiro para fazer face às despesas mínimas, com filhos, dois, três, quatro, que necessitavam de alimentação, casa, roupa, cuidados de saúde, de educação e os demais inerentes à vida. Bater de porta em porta à procura de trabalho, de alojamento e ver as portas fecharem-se-lhe sistematicamente. Tentar junto das instâncias oficiais encontrar soluções para minimizar as causas da tragédia que sobre si se abatera e não conseguir resposta. Agora virem para cá e querem que o estado (eles, que no fim de contas eram eles) os sustentassem à boa vida! Isso era o que mais faltava! Lá tinham vivido à custa dos pretos, cá queriam viver à custa dos brancos. Este clima de acolhimento que nunca esperaram encontrar, deixava os retornados tristes e exasperados (…)”
Aida Viegas, Abandonar Angola. Um olhar à distância. Aveiro, 2002, pp. 101-112
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