sábado, 17 de janeiro de 2009

Angola: Os dias da Vergonha

PREFÁCIO

PALAVRAS DO GENERAL SILVINO SILVÉRIO MARQUES ANTIGO GOVERNADOR GERAL DE ANGOLA

Um dia, que esperamos a justiça dos homens não faça esperar muito, será classificado o que se passou no Ultramar Português, e especialmente em Angola, no que se refere à chamada «Descolonização». Nessa altura haverá revelações que multo surpreenderão o nosso povo.
Entretanto, a verdade dos acontecimentos está sendo, aos poucos, descoberta por testemunhas atentas e sensíveis que, numa tessitura aqui e além romanceada, vão contando o que efectivamente presenciaram, ainda sem grande preocupação, ou possibilidade, de aprofundar as respectivas causas.
Deste modo se estão produzindo verdadeiras monografias do dia a dia vivido naquilo que constituiu não uma epopeia igual aos descobrimentos, como impudicamente foi dito, mas a maior tragédia (e vergonha) da nossa História: a «Descolonização» e o «Retorno».
Num tempo em que generalizada crise de carácter se reflecte na acomodação cobarde de muitos e na amnésia de quase todos, dos responsáveis às próprias vítimas, o aparecimento dessas monografias dos acontecimentos deve ser saudado como verdadeira pedrada neste charco.
Assim fui entendendo Os Dias da Vergonha, à medida que desfolhava as suas páginas. E ficou-me um sentimento, complexo e amargo, de saudade, vergonha e desespero...
Todos, em Angola, conhecemos Reis Ventura das suas numerosas obras literárias, da sua colaboração permanente num jornal da província, da sua fluente e empolgante oratória em momentos his
Fontetóricos da vida do País e de Angola.
Numa prosa simples, acessível a todos, e rica de sensibilidade e de expressão, retraía agora, nos sentimentos, nas atitudes e nas actuações, horas cruciais vividas em Angola, naquele período de infelicidade e amargura que sucedeu ao 25 de Abril.
Nesta Crónica dos Dias da Vergonha ficam fixados factos que então ocorreram e que será crime esquecer.
A Reis Ventura passamos a dever, os "retornados» verdadeiros, e os que o somos espiritualmente e todos quantos conhecemos e compreen-demos Angola e continuamos a sofrer o destino que lhe foi preparado e imposto, a gratidão por mais este trabalho.
Reavivar assim a memória é serviço prestado a muitos de nós. E também à História.

Silvino Silvério Marques


EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

Neste livro se relatam factos que aconteceram em Angola desde 25 de Abril de 1974 a 11 de Novembro de 1975.
Começa ainda sob o signo da esperança, no engano do programa Inicial do Movimento das Forças Armadas, que preconizava a defesa da Nação Pluricontinental, e das promessas dos seus homens mais responsáveis. Mas termina em gritos de desespero, porque bem depressa a realidade mostrou que era tudo mentira, vergonha e traição.
Há muito boa gente da melhor do Portugal desta hora aziaga) que se admira de que os homens de Angola, tão corajosos e resolutos nos dias trágicos de 1961, se tenham mostrado tão resignados e submissos depois do 25 de Abril de 1974.
Compreendemos esta atitude, porque até nós próprios choramos de raiva, ao pensar que poderíamos ter altivamente salvo a terra dos nossos filhos, em vez de vir mendigar para a desolada Pátria de nossos pais. Correria sangue, que nós não queríamos, e haveria uma inevitável ruptura temporária com o Governo da Metrópole, que nunca deixou de ser a terra da nossa saudade. Mas não aconteceria a entrega de Angola aos russos, nem a ignóbil traição ao Ocidente, nem a tremenda desgraça de milhões de brancos, pretos e mestiços, nem a confrangedora e multimoda vergonha de uma velha e nobre Nação, nem a rápida e completa derrocada do que podia ser um grande e próspero País.
Se os brancos, pretos e mestiços que não andaram aos tiros nas matas, mas construíram a Angola moderna, tivessem decidido assumir o poder na sua terra, nunca os laços fraternos com a Mãe Pátria se quebrariam definitivamente; e dali poderia vir, a curto prazo, a força e a ajuda necessárias para salvar este velho Portugal, integrado numa efectiva e grandiosa Comunidade de Nações Lusíadas.
Mas é agora, depois dos acontecimentos, que tudo isto se vê com facilidade e clareza. No decurso deles era diferente. E é preciso tê-los vivido, no confuso clima dos primeiros meses da Revolução dos Cravos, para compreender a atitude dos portugueses de Angola.
Em 1961 tínhamos Salazar em Lisboa, um governador-geral bem português em Luanda (a) e a Nação inteira ao nosso lado.
Acordávamos com esse tremendo hino «Angola é nossa!», que parecia — e era — um clamor imperativo da alma milenar da Grei. Estávamos sem armas e sem soldados, mas sabíamos que todo o povo português acompanhava emocionadamente a nossa resistência e rezava pela nossa vitória. Durante a noite do cerco terrorista à pequenina povoação de Mucaba, houve na Metrópole muita gente que não dormiu. Tínhamos connosco a ansiedade e o apoio moral de todos os portugueses.
Depois do 25 de Abril de 1974, o mais pequeno gesto de resistência em Angola constituía pretexto para detenção imediata, à ordem dos novos senhores, que logo saltaram sobre aquela terra como lobos esfaimados. E o sofisma da «agressão ideológica» foi um látego de esclavagista nas mãos de Correia Jesuíno... Todos os homens e mulheres que tinham apoiado Salazar e Marcelo Caetano na sua decisão de defender o Ultramar ficaram imediatamente sob suspeita, quando não sob atenta vigilância. O general Costa Gomes teve o cuidado de substituir sem demora nem aviso prévio todos os comandos das Forcas Armadas de Portugal em Angola. Não se podia escrever uma palavra em defesa da acção portuguesa naquela terra, sem ser logo apodado de reaccionário e fascista. Os videirinhos de sempre trataram de alinhar na condenação de tudo quanto antes se tinha feito. A colaboração do autor deste livro para a Emissora Oficial foi suprimida por sugestão de antigos elementos da União Nacional. Quando o governador-geral Santos e Castro, tão vivamente entusiasmado com o progresso daquela portentosa terra, tomou o navio do regresso, o porto de Luanda foi fechado, para que ninguém se despedisse dele.
A independência de Angola, que primeiro se declarou dependente da vontade de todas as populações, rapidamente se tornou uma decisão ditatorial e irreversível do Governo de Lisboa. As notícias da Metrópole eram tão más que os melhores portugueses do que foi a maior província de Portugal compreenderam que nada podiam esperar desse lado. E o dr. Mário Soares declarava então, para quem o queria ouvir, que os nossos soldados abririam fogo contra os brancos do Ultramar que tentassem qualquer aventura.
Mas há outra realidade ainda mais importante: e é que os brancos de Angola foram torpemente levados de engano em engano, precisamente porque os vendilhões da Pátria sabiam que a sua reacção seria inevitável, se em tempo oportuno pudessem imaginar o que lhes viria a acontecer.
Todos os governantes de então declaravam que Angola era um caso especial. O general António de Spínola disse que a escolha do governador-geral de Angola era mais importante do que a nomeação do primeiro-ministro. E ainda hoje não somos capazes de compreender porque deu ouvidos aos emissários do MPLA, que vieram a Lisboa caluniar o general Silvino Silvério Marques, e substituiu esse homem íntegro, leal e sabedor por uma criatura tão reles e tão comprometida com os comunistas, como o almirante Rosa Coutinho.
Muito mais se poderia aqui dizer sobre a maneira covarde e nojenta como foram ludibriados os bons portugueses de Angola. Mas acrescentaremos apenas que o próprio general Costa Gomes afirmou bem alto estar convencido de que Angola continuaria portuguesa e várias vezes tranquilizou amigos íntimos, assegurando-lhes que os brancos seriam sempre consultados e tudo se faria para conservar aquela terra ligada à Metrópole da melhor forma possível.
Foi neste deslizar de engano em engano que os brancos de Angola, ainda com soldados portugueses e autoridades portuguesas naquela terra, chegaram até à situação de se verem inteiramente dependentes dos movimentos de libertação, que tinham ocupado todas as posições abandonadas pela nossa tropa no Norte da província e já em princípios de 1975 faziam em Luanda tudo quanto lhes apetecia, agredindo, incendiando e roubando, à vista da polícia e dos nossos soldados, alguns dos quais eu vi chorar de raiva, porque os não deixavam fazer-se respeitar.
Com o decorrer do tempo as nossas Forças Armadas, sobretudo o Exército, ficaram tão infiltradas por elementos comunistas, propositadamente enviados de Lisboa, que assistiam, sem um gesto, a toda a espécie de infâmias praticadas contra os brancos. E no que respeita à defesa das valiosíssimas estruturas da economia angolana, comportavam-se com a mesma indiferença.
Bem me recordo ainda de como, durante um dos dias em que os empregados da Petrangol foram impedidos de entrar na Refinaria do Alto da Mulemba por piquetes da UNTA (União Nacional dos Trabalhadores de Angola), que era — e é — uma organização do MPLA, os Unimogs da nossa tropa paravam junto das centenas de empregados acumulados à entrada do grande complexo industrial, e os nossos soldados riam da cena, inteiramente desinteressados do enorme prejuízo económico resultante da paralisação da unidade. Houve até alguns mais atrevidos (ou mais progressistas...) que foram buscar dois estrangeiros para fotografar aquele belo quadro da descolonização exemplar. Tudo uma tristeza!...
Foi neste clima humano que decidi publicar este livro no jornal A Província de Angola, pela única forma então possível, escolhendo para narrador e principal personagem um jovem angolano, que sinceramente desejasse, com dignidade e bom senso, a independência de Angola.
Não direi o seu nome, nem a sua raça, nem a sua religião.
Nada disto é da sua escolha. Usa o nome que outros lhe deram; tem a cor da pele com que nasceu; professa o culto de seus pais.
Citará o nome de outros homens, as suas ideias políticas e religiosas, a cor do seu rosto. Mas ele — o principal personagem deste livro — é apenas um homem, com o idealismo de todos os jovens, com raízes bem mergulhadas na terra de Angola, com as ambições e limitações da condição humana. Um homem com virtudes e pecados, com sonhos e desilusões, com os olhos ávidos da juventude. Um homem em que muitos homens se podem encontrar, se abstraírem de pequenas diferenças, olhando apenas o que é essencial no seu corpo e na sua alma de filhos de Deus sujeitos às tentações do diabo.
Um homem que pensa, que fala, que julga o presente, que interroga o futuro, que vive na convivência de outros homens.
O seu bilhete de identidade não é da sua iniciativa. Não foi convidado a nascer, não escolheu as linhas ou a cor do seu rosto, não influiu na posição social de seus pais. Ninguém o consultou sobre a terra da sua naturalidade. Na sua realidade mais profunda, é apenas um homem.
Mas esse jovem angolano existe e, felizmente, continua vivo.
Reproduzo, por vezes textualmente, afirmações que lhe ouvi. Creio ter interpretado as suas ideias e sentimentos, com respeito e fidelidade. Nem sequer fechei os olhos à sua arrepiante desgraça e à sua amarga desilusão que, por incrível que pareça, também aconteceu.
Não estou arrependido desta decisão, que me permitiu fixar, neste volume, o que foi uma forte e muito expressiva tendência da Juventude Angolana, na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974. Na verdade, e sem falsa modéstia, parece-me de alguma utilidade para os futuros historiadores que se tenha anotado, ainda em cima dos acontecimentos, como foi que tantos angolanos, honestamente adeptos da independência de Angola, passaram da esperança ao desespero.
O meu ideal sempre foi outro.
Desde que me conheço, em livros, artigos, discursos e conferências sempre defendi a continuação de Portugal no Ultramar Português. Sonhei uma Pátria Grande, desde o Minho a Timor, onde coubessem todos os portugueses, em igualdade de direitos e deveres, com idênticas possibilidades de acesso ao trabalho e aos seus frutos, de participação na administração pública e suas responsabilidades, de completa integração na carne e na alma da Nação.
Queria que um preto de Luanda, um mestiço de Cabo Verde ou S. Tomé, um indiano de Goa, um fula da Guiné, um m acarta e de Moçambique ou um montanhês de Timor, qualquer deles, sem distinção de raça, cor ou religião, apenas pelas suas virtudes pessoais e com a sua dignidade de português, pudesse ascender à Suprema Magistratura da Nação.
Sonho grande demais?
Não há sonhos demasiadamente grandes, «se a alma não é pequena».
Esse ideal não morreu: — mataram-no! Mas eu nunca o reneguei.
Em Angola, mesmo durante os dias malditos, as semanas da traição e todo o tempo da vergonha, continuou a existir muita gente fiel ao belo sonho da Pátria multirracial e pluricontinental.
Em 4 de Maio de 1974, na minha primeira crónica do jornal A Província de Angola, publicada depois do 25 de Abril, escrevi o que a seguir transcrevo:
«Perante a viragem política efectuada pelas Forças Armadas de Portugal, eu, que sempre defendi os governantes agora depostos, poderia ceder à tentação de me remeter ao silêncio.
Era cómodo, mas indigno.
Mantenho inalterado todo o meu respeito pela figura histórica de Salazar.

Mantenho inalterada e inalterável a admiração que sempre manifestei ao sr. professor Marcelo Caetano, antes e depois de ele ser Presidente do Conselho de Ministros.
Considero que o sr. engenheiro Santos e Castro, que meras circunstâncias políticas afastaram do Governo Geral de Angola, fez aqui um bom trabalho e se revelou profundamente dedicado a esta terra. Quando, no último sábado (27 de Abril findo) fui ao Palácio dar-lhe um abraço de despedida, encontrei-o a arrumar, numa das malas da sua bagagem particular, as bandeiras de todos os distritos de Angola. E isso comoveu-me quase até às lágrimas.
Sempre vivi do meu trabalho e espero poder continuar a viver.
Saiu há cerca de dois anos, numa edição de cinquenta mil exemplares, um texto meu, subordinado ao título UMA PÁTRIA PARA TODOS.
Não por minha iniciativa mas com o meu consentimento, essa pequena brochura foi a única das minhas obras que saiu sem o meu nome, porque a outros pareceu que assim produzia melhor efeito.
Julgo do meu dever, neste momento, assumir a responsabilidade do que então escrevi e representa o que penso sobre a Nação Portuguesa.»
Escrevi estas palavras, sem medo nem arrogância, em plena sinceridade, apenas porque a consciência assim mo pediu. E nunca pensei que tal atitude pudesse desencadear a catadupa de telefonemas e de telegramas de apoio e aplauso, alguns em voz embargada pela emoção, vindos de várias regiões de Angola.
Recordo este pormenor de ordem pessoal, porque de algum modo documenta a afirmação que acima faço e quero deixar aqui, bem clara e peremptória: mesmo durante os dias malditos, nunca deixou de haver em Angola, entre brancos, pretos e mestiços, muita gente fiel a Portugal!
Completamente abandonados pelos novos governantes da sua Pátria, vilmente caluniados pela imprensa, rádio e televisão de Lisboa e Porto, repentinamente privados do clarão de esperança que para eles representou o Governo do general Silvino Silvério Marques, obrigados ao silêncio pela ditadura antiportuguesa de Rosa Coutinho —, esses bons portugueses, que continuavam a querer uma Angola portuguesa, viveram numa angústia permanente, esperando um líder que lhes marcasse o rumo, orientasse os passos e aglutinasse as dispersas energias.
Assim o exprimem algumas das suas atitudes, desde as sensatas às desvairadas, como a reacção ao estrangulamento dum motorista de táxi no Muceque Rangel, a greve dos camionistas, a invasão do Palácio para interpelar o Almirante Vermelho, ou essa vaga de incontível entusiasmo que deles se apoderou em 7 de Setembro, perante as notícias que vinham de Lourenço Marques, através da Rádio Clube de Moçambique...
O desejado líder nunca apareceu. Os brancos foram desarmados. Uma a uma, caíram todas as ilusões. E, só então, os melhores portugueses de Angola, que sempre estiveram dispostos a segurar nas suas mãos a mais rica parcela da sua Pátria, só então é que aflitivamente se agarraram à derradeira esperança: uma independência real e verdadeira para todos, embora sob um governo da maioria negra.
Dessa última fase dá testemunho o pescador português Manuel da Costa Marques, quando, já durante o Governo de Transição, o ministro Johnny Eduardo vai ao porto pesqueiro recomendar a reactivação das pescas.
— Eu fico por todos estes pescadores — respondeu-lhe Manuel da Costa Marques — porque os conheço a todos. Aqueles que por aqui aparecem, de noite, para roubar e com ameaças, são desconhecidos. (...) Todos nós queremos trabalhar. E é o que eu tenho feito desde que para aqui vim, em 1957. Olhe as minhas mãos, Excelência (e mostrava-Ihas, possantes e bem calejadas...). E não estou arrependido. Tenho filhos mulatos. A minha casa é um paraíso com todas as cores e sinto-me feliz: Agora, humilhado é que eu não quero ser. Mandem-me embora mas não me humilhem!
— Ninguém o vai mandar embora! — interveio o ministro. E esta foi apenas uma das muitas promessas não cumpridas...

(a) O dr. Silva Tavares.


Continua
....


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