A batalha de Luanda? "Uma história mal contada",
por Mendonça Júnior Imprimir e-mail
Escrito por : Cfr. no fim da pág
11-Jun-2008
Considerada como registo de factos memoráveis, a História (tanto a que é escrita como a que é reproduzida oralmente) nem sempre é isso. Já que, com frequência, ela é adornada com omissões, acréscimos, desvios e quejandos ou mesmo – o que é ainda mais grave – com insucessos acobertados com roupagem factual. Os quais são fruto, nuns casos, de ignorância ou de lapsos de memória, involuntários ou não; e, noutros, são de entender-se com propósitos deliberados de contornar a verdade para fazer valer a mentira.
Não é de admirar que seja assim: afinal, quem protagoniza, escreve ou reproduz a História é sempre um ser humano, igual àquele que, expulso do paraíso por ter acreditado na “mentira da serpente”, ficou por certo condenado, “ad vitam aeternam”, a jamais conhecer a verdade na plenitude.
Da História antiga pouco se conhece nesse particular, mas da contemporânea os exemplos dessas omissões, acréscimos, desvios, etc, e sobretudo de insucessos apresentados como factos são múltiplos e estão à mão de semear. Constituem elas as chamadas “mentiras históricas”, algumas das quais, como as ditas “armas de destruição maciva de Saddam” e o “11 de Setembro”, foram tão estrondosamente badaladas por esse mundo fora, que ainda hoje, tanto tempo já passado, têm ressonâncias que quotidianamente nos torturam os ouvidos.
Como é óbvio, este nosso milenar Querido Portugal, sujeito como é também da História, não podia ser uma excepção, nesse particular. E não é efectivamente. Pois aqui também abundam e proliferam quotidianamente casos semelhantes acima referidos. Os quais ao assumir aspectos verdadeiramente escandalosos, sobretudo quando os desvios, os acréscimos, as omissões e as mentiras com que são enfeitados se relacionam com factos de ocorrência recente, possibilitando portanto fáceis testemunhos contraditórios.
Exemplo disso tudo podem ser encontrados facilmente, no pouco ou nada que se tem escrito e bem assim no muito que se tem dito, sobre esse momento da História do nosso País, a que se deu o nome de “descolonização”. E muito particularmente na que envolveu Angola, onde o confronto de interesses foi sempre tão grande e tão imperante, que acabou, na maioria das vezes, por justificar a ausência daquilo que a História sempre exige: a isenção e a verdade.
Vem-nos momentaneamente, à memória, alguns de entre os mais gritantes. Ei-los:
– O início da rebelião contra o regime colonial, que uns atribuem ao “4 de Fevereiro” e outros ao “15 de Março”, ambos ocorridos em 1961, quando na realidade, a História identifica-o com o que se passou na Baixa do Cassange em 1960 ou até mesmo com a “marcha dos tocoistas” contra São Salvador do Congo, ocorrido duas décadas antes;
– A “ponte aérea que, em 1975, transportou centenas de milhares de portugueses de Angola para Lisboa, a qual muitos dizem ter sido ideia do governo português de então, quando na verdade foi ela engendrada, financiada e organizada por uma potência estrangeira, os Estados Unidos da América, que antes havia feito tudo para correr com os europeus das suas colónias;
– O acordo de que raramente se tem ouvido falar, celebrado num jantar de um café restaurante da rua da Ópera em Paris, com a participação de Mário Soares, Álvaro Cunhal – que receberam cada um, 1 milhão de contos para que os seus respectivos partidos privilegiassem os movimentos pró-maxistas que existiam nas colónias portuguesas – e Boris Ponomorof, membro do então Governo Soviético, que impôs à “descolonização” o rumo político, que ela cumpriu.
A BATALHA DE LUANDA?
Tudo o que acima se afirma exprime a reacção que experimentámos quando, bem recentemente, tivemos a oportunidade de ver, num dos canais da TV Cabo, um documentário em que se fala da descolonização de Angola e muito particularmente da luta que se travou entre o MPLA e alguns dos seus opositores pela posse de Luanda. Luta que, tendo tido o seu auge a escassos dias da data da proclamação oficial da independência – 11 de Novembro de 1975 – ficou conhecida como a batalha de Luanda.
Além do relato das principais ocorrências, esse documentário foi completado com opiniões interpretativas, formuladas pessoalmente por um grupo de oficiais reformados das nossas Forças Armadas do qual se destacam dois:
– O Contra Almirante Rosa Coutinho e o
– O Brigadeiro Pezarat Correia
Um e outro com permanência em Angola, no “posto 25 de Abril”, mas ali afastados muito antes da data da independência.
O documentário comporta, naturalmente, o que já não é surpresa, ou seja, os costumeiros desvios, omissões, contornos, e até mesmo inverdades com vestimenta factual. A mais escandalosa das quais foi expressa por aqueles dois conhecidos militares, que com o ar mais natural deste mundo, juraram e sacramentaram que foram tropas do MPLA, que, com a colaboração de alguns cubanos, enfrentaram, combateram e acabaram vencendo as forças da Oposição que, sob o comando do Coronel Gilberto Santos e Castro se propunham tomar de assalto Luanda, para impedir a proclamação da independência por parte do MPLA.
Repetimos: a versão formulada não tem visos de verdade e, como se disse, assume contornos de escândalo e mesmo de injúria, tanto mais reprovável quanto é certo ela atingir a honra de alguém que, por não ser já deste mundo não pode ripostar.
Assim sendo e em nossa opinião, a única forma de minorar ou mesmo anular os efeitos dessa injúria é reconstituir os factos, tal como ocorreram e com a caução de testemunhos presenciais, que ainda hoje e a qualquer momento, podem ser invocadas. É, pois, o que a seguir fazemos procurando respeitar o trajecto cronológico, para, deste modo, melhor entender tudo o que se passou.
O fim da luta armada em Angola ficou consagrado no acordo celebrado em Alvor (Algarve) no final de Janeiro de 1975, Acordo pelo qual se estabeleceu um governo de transição tripartido – Portugal e os três movimentos de libertação angolanos – a quem foi incumbida a tarefa de gerir o país até à data da independência marcada para 11 de Novembro desse mesmo ano.
Durou pouco esse governo. A rivalidade entre as três formações angolanas, a ambição pelo mando absoluto e também a passividade da parte portuguesa conduziram rapidamente à sua falência total. Surgiram e multiplicaram-se, um pouco por todo o lado, casos de violência envolvendo as três partes angolanas, de tal modo que, no final de Agosto desse ano, o MPLA já era senhor absoluto da capital, de onde havia expulsado sem mais aquelas os representantes da UNITA e da FNLA.
A opinião generalizada que então se formou, nessa altura, tanto em Angola como fóra, era de que, assim tendo procedido, o MPLA estava a preparar-se para, em 11 de Novembro, proclamar unilateralmente a independência, na expectativa de que a passividade da opinião pública, tanto interna como a externa, ajudasse a consagrar a ilegalidade.
Esqueceu-se, porém, Agostinho Neto, o então líder do MPLA. que, com a descoberta do petróleo, acontecida anos antes, Angola passára a estar sob vigilância cerrada que, então como agora, controlam a produção e o comércio do crude à escala mundial. O resultado dessa falha de memória foi que, pouco tempo depois, Angola era, sem mais aquelas, invadida por uma força militar sulafricana procedente da Namíbia. A qual, depois de tomar, sucessivamente, as cidades do Lubango, Benguela e Lobito, avançou em direcção a Luanda. Onde, no entanto, não chegou a entrar, já que ao atingir as margens do rio Quanza (a cerca de 200 kilómetros da capital) foi mandada parar.
Por ordem de quem e porquê? Ocorre naturalmente perguntar?
Segundo fontes diplomáticas sulafricanas desse tempo, Washington, que havia sugerido a invasão, fora quem formulára essa espécie de contra-ordem, acompanhada de um novo pedido: que os sulafricanos transferissem parte do material bélico que transportavam para um outro grupo armado, que, constituído por guerrilheiros da FNLA, soldados zairenses disponibilizados por Mobutu e alguns voluntários portugueses, e sob o comando do Coronel Santos e Castro, se encontravam, nessa altura, a assediar Luanda pelo Norte, com o objectivo de a tomar, antes da data da proclamação da independência.
Uma vez na posse do material cedido pelos sulafricanos , que incluía três peças G5 – fabricadas na RSA e capazes de atingir objectivos localizados de até 50 Kms – Santos e Castro começou a preparar o ataque e a tomada de Luanda concebido nos seguintes termos: bombardear primeiro, utilizando as peças cedidas, com vista a estabelecer o pânico entre os defensores e a população da capital e, a seguir, realizar o assalto por terra. Plano que, uma vez concebido, foi divulgado via Kinshasa, com vista naturalmente a desmoralizar ainda mais o inimigo.
Sendo assim, no dia 6 de Novembro, depois de ter tomado a vila de Caxito, estabeleceu-se ele com os seus homens no Morro da Cal – uma pequena elevação de terreno situada a cerca de 30 Kms de Luanda e dali fez três disparos dos G5 contra a capital. Dos quais um atingiu a pista do aeroporto, outro caiu na baía e o terceiro atingiu a refinaria de petróleo do Alto da Mulemba, provocando um incêndio, que acabou por ser dominado.
A estratégia resultou em pleno: o pânico previsto estabeleceu-se e generalizou-se, e, naturalmente começaram a circular boatos os mais diversos, um dos quais um concebido em termos de suscitar histeria colectiva e pavor. Eles os “fenelas” – assim o vulgo luandense chamava aos homens de Holden Roberto – vão entrar e vão degolar todos: pretos brancos e mulatos.
Entretanto, as horas e os dias foram passando nessa terrível expectativa que se ia acentuando à medida que, um pouco por todo o lado na cidade, se ia escutando sons de disparos, resultantes do confronto que se ia verificando amiúde entre grupos de soldados que Santos e Castro ia mandando avançar em missões de sondagem do terreno e os militares que o MPLA tinha colocado fora do perímetro urbano da capital com missões de entreter o inimigo para deste modo possibilitar o envio de reforços.
Chegou-se finalmente a 11 de Novembro, dia marcado para a proclamação da independência, sem que no entanto se houvesse realizado o prometido assalto à capital. Mesmo assim, o pânico generalizado imperava e manteve-se sempre desde o nascer ao pôr do Sol desse dia histórico, durante o qual o único facto de registo sucedeu cerca das 16 horas, quando o alto-comissário representante da soberania portuguesa, um militar de alta patente português, General Silva Cardoso, mandou arrear a Bandeira das Quinas que encimava o velho palácio da cidade alta, dobrou-a e, com ela debaixo de um dos braços, tomou o caminho da Ilha de Luanda, onde o aguardava um navio de guerra, para o trazer de regresso definitivo a Portugal.
Deste modo inesperado e ademais ridículo e triste se concretizou o episódio final de quase cinco séculos de Histórial!!!
Entretanto, e porque a crença generalizada era de que os homens de Santos e Castro ainda poderiam atingir Luanda, a cerimónia oficial da proclamação da independência, marcada inicialmente para as 17 horas desse dia, foi sendo sucessivamente protelada e acabou por ter lugar só em plena noite e de uma forma algo improvisada.
Assim e apesar de todas as promessas e ameaças, os homens do coronel falharam: nem entraram na cidade nesse dia nem posteriormente realizaram qualquer tentativa nesse sentido, preferindo antes deixar os arredores da capital e empreender uma retirada em direcção à fronteira com o Zaire.
Porque esse falhanço, porque tudo isso? Importa perguntar?
A resposta ouvimo-la já aqui em Lisboa. Primeiro da boca do Coronel Santos e Castro, poucos meses antes da sua morte; e logo a seguir, por intermédio de alguns portugueses e angolanos, que foram seus companheiros nessa aventura. E tivemo-la confirmada, mais tarde, pelas mesmas fontes diplomáticas sulafricanas atrás referidas. Ei-la, pois, reproduzida de forma sintética mas clara.
Na madrugada do dia 9 de Novembro e cumprindo o plano que estabelecera, o Coronel Santos e Castro dirigiu-se à tenda onde se albergava Holden Roberto, o Presidente da FLNA, para lhe comunicar que ia imediatamente pôr a funcionar os G5 e iniciar o bombardeamento da capital. E foi então informado que estava impossibilitado de o fazer, já que, um pouco antes, os artilheiros sulafricanos haviam desmantelado as culatras dos G5, tornando-os inoperacionais, embarcando a seguir num helicóptero que os transportou para bordo de um navio do seu país que os aguardava ao largo do porto de Ambriz.
E isso no cumprimento de uma exigência imposta de Washington a Pretória.
Dito isto, só resta a lógica conclusão final. Não foram pois os homens do MPLA que
impossibilitaram a tomada de Luanda pelas forças comandadas pelo Coronel Santos e Castro.
Nada disso. A responsabilidade do insucesso cabe a outro. E quem é ele? Resposta é inequívoca. Esse mesmo que, desde sempre, se notabilizou por promover guerras e fazer delas um negócio altamente lucrativo para si próprio:
Os Estados Unidos da América.
(*) Coronel de Cavalaria
Mendonça Júnior
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