René Pelissier*
Análise Social, vol. XXXVIII (166), 2003, 157-173
Análise Social, vol. XXXVIII (166), 2003, 157-173
Militares, políticos e outros mágicos
Esta nota de leituras refere-se a numerosos livros sobre a guerra, nomeadamente a guerra colonial portuguesa (1961-1974). Um número que poderia ter sido muito maior se os editores nos tivessem facultado todos os títulos pedidos. É que alguns parecem ter dificuldade em fornecê-los, ou consideram que os serviços de imprensa lhes saem demasiado caros, ou então trabalham com pessoal negligente. Em suma, não se trata, portanto, de uma selecção baseada em escolhas políticas ou simpatias pessoais do autor. Uma bibliografia só pode falar daquilo que se tem à mão. É, todavia, manifesto um crescimento significativo das memórias de antigos combatentes portugueses, aliás bastante mais significativo do que a produção suscitada pela conquista
colonial dos séculos XIX e XX. Tudo indica que, nas décadas futuras, esse fluxo aumentará exponencialmente, devido às centenas de milhares de portugueses letrados que foram mobilizados para a defesa do império, devido à diversidade das suas experiências e ao traumatismo gerado por uma guerra
que a grande maioria odiava, quer a considerasse inútil, contrária aos seus projectos e desumana, quer tivesse a sensação de ir arriscar a sua vida por interesses políticos e económicos com que não se identificava. As guerras de descolonização deixam geralmente uma lembrança amarga no espírito dos europeus que as travam. Os portugueses não fogem, evidentemente, a essa regra e estamos longe do triunfalismo das «belas campanhas coloniais» à Mouzinho de Albuquerque, Alves Roçadas, João de Azevedo Coutinho e outros grandes ou pequenos heróis de há três ou quatro gerações. Não há, nem nunca haverá, heróis nas guerras que vamos visitar. Apenas vítimas de ambos os lados, pese embora aos propagandistas e historiadores nacionalistas.
Esta nota de leituras refere-se a numerosos livros sobre a guerra, nomeadamente a guerra colonial portuguesa (1961-1974). Um número que poderia ter sido muito maior se os editores nos tivessem facultado todos os títulos pedidos. É que alguns parecem ter dificuldade em fornecê-los, ou consideram que os serviços de imprensa lhes saem demasiado caros, ou então trabalham com pessoal negligente. Em suma, não se trata, portanto, de uma selecção baseada em escolhas políticas ou simpatias pessoais do autor. Uma bibliografia só pode falar daquilo que se tem à mão. É, todavia, manifesto um crescimento significativo das memórias de antigos combatentes portugueses, aliás bastante mais significativo do que a produção suscitada pela conquista
colonial dos séculos XIX e XX. Tudo indica que, nas décadas futuras, esse fluxo aumentará exponencialmente, devido às centenas de milhares de portugueses letrados que foram mobilizados para a defesa do império, devido à diversidade das suas experiências e ao traumatismo gerado por uma guerra
que a grande maioria odiava, quer a considerasse inútil, contrária aos seus projectos e desumana, quer tivesse a sensação de ir arriscar a sua vida por interesses políticos e económicos com que não se identificava. As guerras de descolonização deixam geralmente uma lembrança amarga no espírito dos europeus que as travam. Os portugueses não fogem, evidentemente, a essa regra e estamos longe do triunfalismo das «belas campanhas coloniais» à Mouzinho de Albuquerque, Alves Roçadas, João de Azevedo Coutinho e outros grandes ou pequenos heróis de há três ou quatro gerações. Não há, nem nunca haverá, heróis nas guerras que vamos visitar. Apenas vítimas de ambos os lados, pese embora aos propagandistas e historiadores nacionalistas.
De qualquer forma, na guerra de 1961-1974, uma guerra esfarelada e sempre recomeçada, sem batalhas decisivas, sem oficiais triunfantes, sem desafio patriótico, não há quem consiga citar um único nome sonante de entre a monotonia dos milhares de oficiais esgotados no mato ou prudente-
mente refugiados num qualquer gabinete com ar condicionado.
mente refugiados num qualquer gabinete com ar condicionado.
Antes de entrar no assunto propriamente dito, comecemos por prestar homenagem a um trabalho que está longe de ser perfeito ou inocente — quem pode almejar a perfeição em historiografia? —, mas que representa um esforço enorme (mais de 1600 páginas) e é de uma utilidade incontestável. Os cinco volumes de Angola, Datas e Factos1, de Roberto Correia, são obra de um amador, repatriado de Angola e nostálgico da obra portuguesa em África. Optou por um sistema que certos historiadores podem considerar obsoleto, mas que lhes prestará grandes serviços: a elaboração de uma cronologia extremamente detalhada da história angolana de 1482 a 1975, com anotação de todas as datas que conseguiu encontrar na literatura e em perió-
dicos (incluindo as publicações oficiais) quase exclusivamente portugueses. Assim, a guerra colonial e os seus prenúncios ou prolongamentos ocupam algumas dezenas de páginas do vol. 4 e uma centena do vol. 5, tendo este sido completado por vários índices e listas de personagens. É claro que o autor não aprova de forma alguma os responsáveis pela descolonização nem os partidos africanos que arruinaram o seu país. Está no seu direito. Apesar destas opções, a obra é uma autêntica mina de dados em bruto, cronologi- camente referenciáveis. Factos insignificantes ou importantes. Eis a razão por que estes cinco volumes deveriam existir em todas as bibliotecas públicas portuguesas dedicadas à expansão ultramarina. O facto é que, tanto quanto se sabe, não existe nenhum estudo «profissional» da guerra em Angola após 1964. Efectivamente, quem tem coragem de ir remexer nas toneladas de papéis amontoados pela burocracia militar para nos fornecer uma lista ponderada e coerente de milhares de pequenas operações enterradas na rotina, na lama e na memória dos seus participantes?
dicos (incluindo as publicações oficiais) quase exclusivamente portugueses. Assim, a guerra colonial e os seus prenúncios ou prolongamentos ocupam algumas dezenas de páginas do vol. 4 e uma centena do vol. 5, tendo este sido completado por vários índices e listas de personagens. É claro que o autor não aprova de forma alguma os responsáveis pela descolonização nem os partidos africanos que arruinaram o seu país. Está no seu direito. Apesar destas opções, a obra é uma autêntica mina de dados em bruto, cronologi- camente referenciáveis. Factos insignificantes ou importantes. Eis a razão por que estes cinco volumes deveriam existir em todas as bibliotecas públicas portuguesas dedicadas à expansão ultramarina. O facto é que, tanto quanto se sabe, não existe nenhum estudo «profissional» da guerra em Angola após 1964. Efectivamente, quem tem coragem de ir remexer nas toneladas de papéis amontoados pela burocracia militar para nos fornecer uma lista ponderada e coerente de milhares de pequenas operações enterradas na rotina, na lama e na memória dos seus participantes?
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