segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A LUSOFONIA E OS FLUXOS COLONIAIS: Leonel Cosme -Universidade do Porto - Portugal




Resumo: Quem, falante de língua portuguesa, tomar um táxi em Portugal, no Brasil, em Angola ou Moçambique,ou em qualquer outra antiga colónia de Portugal, não só não se sentirá como um qualquer “estrangeiro” viajando em terra estranha, como poderá verificar (por exemplo no Brasil) que o seu sotaque não basta para revelar o local da naturalidade; e se acontecer com um africano em Portugal, o taxista não distinguirá se ele é oriundo de Cabo Verde, de São Tomé ou se nasceu em Portugal. De igual modo, um taxista do Minho dificilmente distinguirá se a fala do cliente que lhe fala em português identifica um compatriota do Algarve, da Madeira ou dos Açores. Palavras-chave: Lusofonia, refluxos, colonial, falante, língua, sotaque.

Quem, falante de língua portuguesa, tomar um táxi em Portugal, no Brasil, em Angola ou
Moçambique, ou em qualquer outra antiga colónia de Portugal, não só não se sentirá como um qualquer “estrangeiro” viajando em terra estranha, como poderá verificar (por exemplo no Brasil) que o seu sotaque não basta para revelar o local da naturalidade; e se acontecer com um africano em Portugal, o taxista não distinguirá se ele é oriundo de Cabo Verde, de São Tomé ou se nasceu em Portugal. De igual modo, um taxista do
Minho dificilmente distinguirá se a fala do cliente que lhe fala em português identifica um compatriota do Algarve, da Madeira ou dos Açores.

Como a variedade da pronúncia e eventualmente da gramática só poderá exigir a adequação do ouvido do receptor à prosódia do emissor, fica desde logo removida qualquer barreira de comunicação, antes se estabelecendo uma relação que alguns observadores consideram de reserva ou mesmo de desconfiança, e outros, de
proximidade ou mesmo de afecto. A esta relação linguística eu chamo naturalmente lusofonia, sem me parecer que o designativo, por si só, implique sub-repções e que, ao ser envolvida com “o manto diáfano dafantasia” afectiva, está a esconder perversidades... Donde, pela reserva, uns pensam que a lusofonia é uma “questão” teórico-política em aberto, centrada em algumas academias e tertúlias; e eu, pela proximidade, que é apenas uma “borbulha” ideológica por rebentar, remanescente de
afecções coloniais não resolvidas. Curiosamente, venho seguindo os debates que, há mais de vinte anos, dezenas de linguístas, escritores e políticos promovem sobre o tema, no imenso espaço dos países que consideram a língua portuguesa, em exclusivo ou a par de outras, a sua ou uma das suas línguas nacionais. E que depois de inúmeros congressos, colóquios, seminários, institutos, inspirando centenas de artigos e comunicações a respeito do mesmo, - a Lusofonia - e apesar de a montanha, no que
concerne a Portugal, já ter parido um ambicioso dicionário com 70.000 entradas e a singularidade de complementar o vernáculo com a gíria de vários países, ainda nem todos ratificaram a versão definitiva do Acordo Ortográfico assinado
em 1990. Todavia, nem por isso (e pese embora a reserva de Inocência Mata de que o termo Lusofonia “é de cunho e causa portuguesa, e, enquanto os africanos oscilam entre a sua aceitação e a sua recusa, o termo nem sequer história tem entre os brasileiros”), os diversos povos envolvidos deixaram de falar e escrever em língua
portuguesa como sabem e lhes apraz, - alguns até a incrementaram - em correspondência com a utilidade que lhe é reconhecida, como instrumento de comunicação, interna e externa, necessário às suas vidas. Será interessante lembrar o que, há cerca de quarenta anos, preleccionava o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, junto dos seus guerrilheiros, nas matas da Guiné-Bissau, o país africano onde a língua do colonizador era proporcionalmente a menos falada: Temos que ter um sentido real da nossa cultura. O Português é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, é um instrumento, um meio para falar, para exprimir
as realidades da vida e do mundo.

Óbvio e pragmático, Cabral não precisava de ler sequer Saussure para reconhecer a função, mas também a utilidade, da língua da conquista,enquanto meio de unificação social e administrativa, face à heterogeneidade dos povos coexistentes no
mesmo espaço, sabendo bem, e podendo dizer como Saussure, que “os costumes de uma nação têm uma incidência sobre a sua língua e, por outrolado, é a língua que faz a  nação.” É claro que se diz nação pensando num todo lingüisticamente unitário, como é, por exemplo, Portugal, ou a “nação” quimbunda em Angola e
a maconde em Moçambique. Simplesmente Cabral, pensando a Guiné como um futuro Estado aglutinador de povos ou “nações étnicas”, nunca esperaria que um guineense dissesse, mesmo poeticamente, como Fernando Pessoa, que a língua portuguesa era a sua pátria (mas só o sendo por sinédoque de um Estado-Nação). Mas poderia, isso sim, contribuir para dar à pátria  uma dimensão multipolar, reconhecida, como uma Suíça multilingüe e multicultural, nacional e internacionalmente.

O mesmo entendimento tinha Agostinho Neto, quando, já chefe do estado angolano, sem precisar de evocar conspícuos cientistas, afirmava aos compatriotas mais “fundamentalistas” que já não existiam culturas em estado virgem, que a história dos povos era cumulativa e dialéctica e que o progresso de um povo não dispensava as
contribuições de outros povos, incluindo os colonizadores. E que nesta evidência se incluía a língua portuguesa, por ele próprio tornadainstrumento de unificação nacional ao empregá-la sempre nas suas comunicações, alijando intencionalmente até a língua do povo quimbundo a qual pertencia. É que havendo em Angola quase uma dezena de línguas nacionais e uma centena de dialectos - e aqui língua quer dizer mátria, enquanto produto das relações entretecidas de uma história, raça, etnia ou cultura -, a língua
pecaminosa do colonizador, tendo servido para aproximar as partes entre si e a periferia do centro hegemónico, seria o meio inocente, por insuspeitoe neutral, mais adequado para conseguir a adesão das várias etnias a um Estado unificador.

Na mesma coordenada, dizia o moçambicano Fernando Ganhão, Reitor das Universidade Monddlane, no I Seminário Nacional sobre a Língua Portuguesa, realizado em 1979, no Maputo: Teria sido impossível que em 25 de Junho de 1975 (data da independência de Moçambique) se tivesse escolhido uma das várias línguas
moçambicanas para língua nacional, porque as querelas que isso traria fariam de certo perigar a existência de um Estado uno [...]

Mas Agostinho Neto não esquecia que a língua do conquistador, para a maioria esmagadora do povo, era um agente desviante da sua matriz cultural a actuar como um gene subversivo introduzido no organismo, já que uma língua implica uma
categorização particular da significação. Aliás, este seu entendimento já vinha desde 1960, quando, ainda em Lisboa, escrevia na revista Mensagem da Casa dos Estudantes do Império: Quando as nossas línguas, aquelas que serviram e servem de veículo à cultura angolana, não são faladas nas escolas, não são usadas nos jornais, na rádio, etc. (...) quando as nossas formas literárias não podem socorrer-se dos
modernos processos de veiculação, é evidente que a nossa cultura não se pode desenvolver. Estaciona; degrada-se, mas, felizmente, não morre. É mais triste que espantoso que uma grande parte de nós, os chamados “assimilados”, não sabe falar ou entender qualquer das nossas línguas! E isto é tanto mais dramático quanto é certo que pais há que proibem os filhos de falar a língua dos avós.

No ano seguinte, numa conferência da UNESCO, era proposto que a alfabetização das
crianças fosse feita na sua língua materna. Mais tarde, em 1977, sendo Angola já
independente, Agostinho Neto regressava ao temaactualizando-o, em discurso proferido na assembleia da União dos Escritores Angolanos: O uso exclusivo da língua portuguesa, como língua oficial, veicular e utilizável actualmente na nossa literatura, não resolve os nossos problemas.E tanto no ensino primário como provavelmente no médio será preciso utilizar as nossas línguas. E dada a diversidade no país, mais tarde ou mais cedo, deveremos tender para a aglutinação de alguns dialectos, a fim de facilitar
o contacto. Sobre esta aglutinação, Agostinho Neto pensava, porventura, na possibilidade de criar uma “língua-geral” com um desempenho semelhante ao do “tupi-guarani”, nos primeiros tempos do Brasil colonial, ou do “swahilli”, ainda hoje, na África Oriental. Mas não se iludia quanto aos condicionalismos, dizendo logo a seguir:
Todo o desenvolvimento do problema linguístico, naturalmente, dependerá também da
extinção das barreiras regionais, da consolidação da unidade nacional, da extinção dos complexos e taras herdadas do colonialismo, e do desenvolvimento económico. Quem o escutava poderia nada saber do fracasso das línguas compósitas, como o
Esperanto, na Europa, ou o Afrihil, no Gana, e dos perversos resultados de línguas selectivas, como o Chewa, no Malawi, pertencente ao grupo étnico do presidente vitalício Hastings Kamuzu Banda. Mas os ouvintes sabiam que a primeira barreira era constituída pela existência das forças políticas que se opunham à direcção centralizadora do partido de Agostinho Neto, respaldadas, ainda que não o assumissem frontalmente, nas identidades étnicas, que estavam a ser transformadas em verdadeiros “quilombos” (como era a Jamba, bastião de Jonas Savimbi). Só que, agora, o “inimigo” tinha a mesma cor e a mesma história de colonizado...

Esta nova realidade político-militar, póscolonial, explica que a Lei Constitucional angolana de 1975 não fosse tão lata quanto ao direito de “cada etnia utilizar a sua língua, criar uma escrita própria e conservar ou renovar o seu património cultural”, como postulava, em 1974, o Programa Maior do MPLA, apenas declarando que “será
promovida e intensificada a solidariedad económica, social e cultural entre todas as regiões, no sentido do desenvolvimento de toda a NaçãoAngolana e da liquidação das sequelas do regionalismo e do tribalismo.” Agostinho Neto morreria quatro anos depois,
sem ver sequer encaminhada a sua aspiração, que, por mais insólito que pareça, já era defendida, em 1880, por um colono autodidacta, A.F.Nogueira, num livro intitulado A Raça Negra, em que defendia a urgência de levar o ensino à população nativa utilizando a sua língua. E faziao assim: Mas para que esse ensino seja mais pronto nos seus efeitos deve ser ministrado na língua indígena, estudando-a nós previamente para esse fim. (...) Ninguém imagina quanto é diferente o comunicar com um Negro por meio de um intérprete, avaliando-o por o que este diz, ou ouvindo- o na sua própria língua, singela e inculta, mas expressiva e pitoresca, sem a elevação, mas também sem os grosseirismos da nossa.

E contra a corrente das elites portuguesas (com honrosas excepções), para quem a língua lusa era, de facto, a não confessada “ponta de lança do imperialismo cultural”, ousava mais: E não nos impressiona a objecção de que civilizar os indígenas das nossas possessões deÁfrica é o mesmo que emancipar essas colónias. Se ao mesmo tempo que educando o Negro tratarmos de aclimar o Branco onde isso for possível este será ainda por muito tempo um apoio seguro para nós. Mas dado que afinal a colónia se venha a emancipar, - e esse é o destino de todas as colónias, - que devemos preferir:
conservá-la estéril e improdutiva como até agora, ou convertê-la em uma nação amiga, e
mesmo irmã ao menos sob o ponto de vista da civilização e dos costumes?

Hoje diríamos que, partindo de um colonoetnógrafo, fugido de Pernambuco durante a
Revolta Praieira para o distrito de Moçâmedes, onde exerceu o comércio no mato sem ligações com o Governo, a sua visão “progressista” pode equiparar-se, de certo modo, à do jesuíta José de Anchieta, que, no Brasil, elaborou, em 1560, a primeira gramática rudimentar da língua tupi, ou à do padre Pedro Dias, que em 1697 elaborou, em Angola, uma gramática da língua do Congo.

Ao imperativo reconhecido por A.F.Nogueira daria seguimento, em 1892, o angolense
J.D.Cordeiro da Matta, que, na continuidade dos artigos que vinha publicando nos jornais de Leonel CosmeLuanda sobre o estudo da língua quimbunda,  apresentou, em 1892, uma Cartilha Racional - “para se aprender a ler o kimbundu escripta
segundo a Cartilha Maternal de João de Deus.” O seu trabalho de diccionarista seria prosseguido e desenvolvido na metade do século seguinte pelo também angolense A. de Assis Pacheco, autor do mais importante dicionário de kimbundu-português até hoje elaborado (“Linguístico, Botânico, Histórico e Corográfico, seguido de um índice alfabético dos nomes próprios”), como nele se diz.

Há alguns meses, no discurso de abertura do II Encontro sobre Línguas Nacionais, realizado em Luanda, o tema do ensino nas línguas nativas voltava a ser aflorado pelo Primeiro-Ministro angolano, que postulou a necessidade de ir ainda mais longe: “O ensino e o domínio de línguas nacionais devem ser incentivados em todos os níveis de ensino, tornando obrigatório o estudo das mesmas, como parte do currículo do sistema
de ensino no país”. Tarefa ingente quanto adiada, por muitos motivos em que avulta o da guerra civil, e que não acompanhou logo o enorme desenvolvimernto escolar verificado nos primeiros quatro anos a seguir à independência (80% relativamente à frequência em 1973 - mais de l milhão de alunos só no ensino primário). Hoje, depois da guerra, o português é a primeira língua nacional das populações urbanas, quer em Angola, quer em Moçambique, onde a hipótese da utilização do inglês (falado nos países limítrofes) não teve consequências. A maior penetração nas regiões interiores, sobretudo no caso de Angola, dá-se ao ritmo em que as populações concentradas nas
cidades, foragidas da guerra, regressam às terras de origem. Entretanto, tornado o português na “língua geral” do relacionamento necessário, o desenraizamento linguístico das crianças que em casa ou no seu bairro falam a língua dos pais e na escola pública aprendem o Português é fatal.

Diferente é o fenómeno em Cabo Verde ou em São Tomé e Príncipe, onde muito cedo a língua portuguesa e os crioulos resultantes da fusão das culturas dos primeiros povoadores-escravos, originários de vários territórios africanos, se constituiram, naturalmente, nas duas línguas nacionais. Aqui, nenhum cidadão destes dois países se sentirá inibido pelos traumas oucomplexos de que falava Agostinho Neto, pelasimples razão de que, a dada altura, se “libertou”com a assunção plena do “espírito da terra” (feliz designação do historiador Basil Davidson), autorefundindo-se, cultural e biologicamente, num corpo com duas valências não conflituantes. Aplicada ao seu país, o cabo-verdiano Gabriel Mariano faz tese: “A verdeira assimilação cultural é sempre um processo espiritual, livremente operado, tendente a subjectivar o objectivo, a
interiorizar o exterior”. Neste particular, não se poderá avocar a já citada frase de Miguel Faria de Bastos, proferida no Congresso “A Lusofonia a Haver”, realizado, em Lisboa, em 1999, segundo o qual “a cultura é a guarda avançada do imperialismo mental e a
língua, a ponta de lança dessa guarda avançada.” Na verdade, nestas Ilhas Atlânticas, os senhores da Casa-Grande, sempre minoritários e flutuantes, apenas deixaram o fermento: o pão, foram os servos da Sanzala e do Mocambo que o amassaram e lhe deram a forma adequada ao seu paladar. Mas Gilberto Freyre não entendeu, na sua fugaz visita a Cabo Verde, que ali poderia estar a face mais impressionante do celebrado
“luso-tropicalismo”, não levando em conta a surpresa e admiração com que o Padre António Vieira, ao escalar a Ilha de Santiago, em 1652, a caminho do Brasil, deparou com a composição do cabido: “... clérigos e cónegos tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais.”

É imaginável que, já nessa altura, a língua do colonizador, por ser mediadora no
relacionamento das diversas populações arrebanhadas na Costa dos Escravos, já caminhasse no sentido de outra língua, diga-se agora luso-tropical, porque reconstrutora da matriz primigénia. Refiro-me ao crioulo (nas suas variantes), com o qual se esbateriam gradualmente a prática e a memória das línguas ou dialectos originais, que Chomsky afirmou estarem inscritos no património genético. Seja como for, à medida
em que os servos ascendiam ao escalão de alforriados e, no grau subseqüente, ainda que em número reduzido, ao estatuto superior de forros proprietários, a língua do dominador - antes imposta, então sim, como uma “ponta de lança do imperialismo cultural” - foi pelos antigos servos ou seus descendentes adoptada como um
distintivo de classe social.

A ensaísta são-tomense Inocência Mata, no seu recente livro A Suave Pátria, lembra aospatrícios desmemoriados como nas duas Ilhas do Equador se deu a apropriação reactiva - qual Caliban perante a língua ensinada ao escravo peloseu senhor, para melhor ser servido - do processoda “desimperialização” mental:No tempo colonial, o crioulo era consideradoum dialecto - aqui com a carga pejorativa que amentalidade colonial lhe injectava, nem língua sendo! - que só servia para “estragar” o português.Famílias havia que proibiam os seus filhos de se expressarem em crioulo, tentando, deste modo tosco e alienante, prevenir a ascensão dos seus filhos na sociedade colonial. Não admira que muitos da elite são-tomense não soubessem - e não saibam! - falar a língua do país, o mais emblemático marcador da identidade são-tomense - embora não seja única língua, e é bom também que muitos sãotomenses disso tenham consciência. Observação análoga poderia ser feita a respeito de outras ex-colónias africanas de Portugal.

Em 1979, portanto quatro anos após a proclamação da independência de Angola, o
escritor angolano, Óscar Ribas, notável quimbundista, ainda averbava no seu livro Misoso (qual Agostinho Neto em 1960):
[...] as actuais gerações, numa deplorável vergonha pelas coisas da sua terra, só querem o que é europeu! E ai daquele que ousa perguntar a alguém já meio liberto do ambiente ancestral, qualquer prática do seu tradicionalismo! Já pela imposição do Progresso, já pelo resultante constrangimentode se não passar por atrasado, a cultura negra vai-se definhando, mormente nos centros de predominância europeia. Deste modo, o quimbundo, língua de incontestável beleza harmónica, mas lamentavelmente tida por muitos detractores como língua de cão, está sepultando, com o seu menosprezo, uma parcela do relicário das tradições africanas.

Entretanto, o português ia servindo a dois níveis: mantendo a norma da antiga Metrópole e abrindo-se às injunções prosódicas africanas, sem que fosse alterado o “sentido de pertença” e ofendido o “espírito da terra”. Como sublinharam Eduardo Lourenço e Alfredo Margarido, em dois substanciosos ensaios sobre a “imagem e a miragem da Lusofonia”, a língua é de quem a fala - e a portuguesa já foi “nacionalizada” de tal
modo por todos os países lusófonos, que Portugal, dela, só no seu próprio território pode reivindicar direitos de propriedade...

Hoje, o seu apego ao “legado” que as caravelas de Pedro Álvares Cabral transportaram
para o Brasil, Vasco da Gama, para a Índia e Diogo Cão, para África, só deve ser entendido como o desejo que o legador, observando saudosamente do além o destino reservado ao que foi seu património, teria de ver o legatário conservar, tanto quanto possível, o essencial da herança que, querendo ou não, foi obrigado a legar...

O que havia para descobrir, ou para “desvendar”, como prefere Fernando Pessoa, está descoberto; as caravelas apodreceram, sem mais missões, nos ancoradouros; os últimos fachos do Império apagaram-se, em 25 de Abril de 1974, no funeral da ditadura; os argonautas de quinhentos regressaram definitivamente aos cais de embarque, para voltarem a ser o que realmente sempre foram: marinheiros-de-terra à procura de um espaço onde, sem pagar tributo ao rei ou renda ao senhorio, pudessem construir uma casa de família, plantar uma árvore, semear uma leira e ter filhos livres de cabresto.

Contrapor ao “apego saudoso” dos portugueses ao destino do único elemento - a
língua - que ficou da Longa Viagem por mares nunca dantes navegados, rumando ao porto, por achar que:
- no dizer do escritor e sociólogo português, Alfredo Margarido, no seu ensaio A Lusofonia e os Lusófonos: novos mitos portugueses, a criação da Lusofonia, quer se trate da língua, quer do espaço, não pode separar-se de uma certa carga messiânica [e que] a maior parte dos missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás de nós uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português.
- ou no dizer do investigador angolano de origem portuguesa, Carlos Pacheco, num artigo publicado no jornal Público, em Fevereiro de 2000, quanto ao Brasil:
... basta ouvir a elite académica deste país, os seus estudantes, jornalistas e outras classes sócio-profissionais esclarecidas, que se riem, achando isso da lusofonia um quixotismo lusitano, um convencionalismo em que apenas alguns políticos e escritores acreditam, nada para ser levado a sério”; e quanto a África: “...os dirigentes africanos são os primeiros a não terilusões: eles sabem que a lusofonia não passa de um projecto historicamente adulterado, sem nenhuma simbiose com o imaginário dos angolanos
e moçambicanos. Quando muito, um mito para Portugal e as suas elites, reflexo talvez
de um saudosismo pela perda do Império, é como que revalidar a contundente diatribe
que o polemista brasileiro, Antônio Torres, nos idos de 1925, desferiu contra a colonização portuguesa, num livro que deu brado, As Razões da Inconfidência, em que exortava à “deslusitanização gradual e definitiva do Brasil”, transmissora de “um dialeto obscuro e atamancado”. O livro foi prefaciado por Agrippino Grieco, o qual, porém sem tanto acinte, justificou o justo revide à história da colonização portuguesa no Brasil [que] literariamente apenas nos prejudicou, por nos afastar da simplicidade francesa,
compelindo-nos à ênfase dos árcades e dos frades (felizmente, hoje quase não lemos
mais os autores portugueses). Com um sorriso nos lábios, porque nos recorda aquele artigo de Eça de Queirós em que verberava os portugueses por aceitarem ser uma “má cópia do francesismo”, apetecia perguntar se Antônio Torres não estaria nostálgico das fugazes incursões dos franceses na baía de Guanabara ou dos holandeses em Pernambuco, e, se sim, lembrar-lhe o comentário irónico de Darcy Ribeiro a respeirto dos batavos:
“Bem se vê que não conhece o Suriname...” Sílvio Romero e Euclydes da Cunha, se fossem vivos na época, ou João do Rio e Gilberto Freyre, seus coetâneos, diriam da língua “atamancada”, e não só da língua, coisa muito diferente: que à língua que possibilitou escrever Os Lusíadas e Os Sertões não faltou nenhum recurso estilístico...
Freyre, lusófilo assumido, acrescentaria porventura: que a diatribe de Torres se explicava pelos ressaibos dos compatriotas inconformados com o lastro colonial, movidos por um “sentimento parricida” (a expressão é dele) típico do colonizado
contra o colonizador que não escolheu...

Mas não são aquelas vozes, com certeza, que exprimem a atitude definitiva de brasileiros e africanos para com a Lusofonia, por mais diversos que sejam os seus pressupostos, todos, duma maneira ou doutra, reflectindo as expectativas
políticas, económicas e culturais de cada país. Ouçamos a voz de outro distinto brasileiro, Alberto da Costa e Silva, conhecedor profundo de Portugal e África:A volta do português à condição de idioma de trânsito internacional - como foi no passado, do
século XVI à metade do século XVIII, quando não se comerciava na África Ocidental e em muitos portos do Índico sem saber-se português ou sem ajuda de quem o soubesse -, dependerá do que forem capazes de ser e produzir, com relevância para os outros povos, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Do que neles criarem a inteligência, a imaginação e a sensibilidade. Do que se inventar nos seus laboratórios e se pensar nas suas universidades. Mas, sobretudo, da riqueza que gerarem, do tamanho de seus mercados e da importância política que vierem a ter em seus sistemas regionais e no concerto internacional, juntos e isolados.

Facto é que a língua portuguesa, vernácula ou “pitorescada”, na expressão de Mário de Andrade, em 1925, na vanguarda do Movimento Modernista, continua viva e recomenda-se: seja para “temperar” o Português com as injunções das línguas africanas (o que aliás já fazia Gil Vicente no Pranto de Maria Parda, em 1552), seja para convocar os calundus e orixás ou para honrar a Kianda, em Angola, e a Iemanjá, no Brasil, seja para fazer catarse dos ressaibos “parricidas” ou do “complexo sociológico”, como
também lhes chamou, brincando, Gilberto Freyre, próprios de quem teria preferirido ser descendente de colonizadores não portugueses. Ou para, no quadro dos revides históricos, re-entronizar Caliban apostrofando o senhor na língua que este o forçara a aprender...

Valha também este excerto da comunicação que o embaixador João Augusto de Médicis, então secretário-executivo da CPLP, se não tivesse falecido dias antes, iria apresentar pessoalmente no I Congresso Bienal da CPLP para a Língua Portuguesa, realizado em Viseu, na segunda quinzena de Abril de 2004:

Promover a língua portuguesa é uma acção de cunho estratégico, uma razão de Estado. A Língua é comércio e fluxo de riqueza. A Língua é conhecimento, ciência, saber. A Língua é poder, mas é também o principal instrumento de afirmação do indivíduo e da sua liberdade. A Língua Portuguesa protege-nos e abre-nos espaços. Sem ela, estaríamos ainda mais expostos a uma globalização selvagem, em que nos tocaria apenas um papel subordinado, periférico. Cabe à CPLP e aos seus Estados membros atentar para a questão e sair em defesa do seu património comum.Se fosse um diplomata português a proferir este discurso, não faltaria quem lesse nele o secreto
sentimento que Eduardo Lourenço vê subjacente: Não sejamos hipócritas, nem sobretudo voluntariamente cegos: o sonho de uma Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa, bem ou mal sonhado, é por natureza - que é sobretudo história e mitologia - um sonho de raiz, de estrutura, de intenção e amplitude lusíada.

Não entendo assim: nenhum português que não seja “cego” ou “mitómano” pode deixar de ver que Portugal jamais sonhará com uma Lusáfrica como a França mantém a sua Françáfrica nas ex-colónias, onde continua a dominar as esferas políticas, militares e económicas, como na Costa do Marfim, donde repatria 75 por cento da riqueza produzida no país, controlando um terço dos investimentos e representando 30 por cento do produto interno bruto (PIB).

O escritor-diplomata Antônio Olinto, que em 1962 serviu na embaixada do Brasil na Nigéria, escrevia por essa altura:
Os grandes povos têm uma vocação imperialista indisfarçável e às vezes irreversível, mas que pode ser transformada em vocação universalista, sem carácter de jugo ou
prepotência. Ao Brasil cabe esta vocação, por sinal essencialmente cristã: a de uma presença ecuménica no mundo, onde todas as raças poderão encontrar o seu viver comum. Não seria tão ecumenista o então presidente do Brasil, Castelo Branco, quando punha algumas reservas no apoio do seu país ao Portugal colonialista, para defender a “formação gradual de uma comunidade afro-luso-brasileira, em que a presença do Brasil fortificasse economicamente o sistema” e Afonso Arinos, no “Jornal do Brasil”, era ainda mais explícito: “Nossa amizade com Portugal não deve interferir com nossos interesses e responsabilidades. Leiamos Camões, mas pratiquemos António Vieira, que escreveu uma História do Futuro.”

Claramente, não sendo Portugal um “grande povo” (se não na história das descobertas e
conquistas de antanho), nem podendo recuperar uma “vocação imperialista” (que fora igual à de outras potências marítimas europeias, como a Inglaterra, Espanha ou Holanda), alguns estudiosos ainda o não julgam inocente quando eventualmente se comporta como “guardião” ou“vestal”, no dizer de Eduardo Lourenço, da Língua
que foi de conquista e hoje é património de mais de 200 milhões de falantes. Assim continua a pagar os seus “pecados históricos”, na expressão de Antero de Quental...
Mas fiquemo-nos, realisticamente, com a ideia de que a língua portuguesa, enquanto instrumento de comunicação, é de interesse comum para todos os países que a utilizam. E daqui deriva que quanto mais concertados forem os seus desempenhos, mais fácil e eficaz se tornará o relacionamento, sem que isso ponha em causa as diversas identidades nacionais. Até porque, na análise do universitário moçambicano Lourenço do Rosário, diferentemente de muitos países do continente, a situação da língua portuguesa não é a de uma herança incómoda com carácter provisório enquanto
se não encontrar uma língua “genuinamente africana”. Por outro lado, estamos certos
de que a sua adopção como língua oficial não obedeceu a quaisquer fundamentos de natureza sentimental, bem pelo contrário, ela representa uma dura conquista, porque representa na realidade um instrumento muito eficaz para pôr em prática um projecto longo, ambicioso, o único realista e possível numa África geograficamente
retalhada à mesa de convenções, por potências que estavam preocupadas com os
seus interesses.

Enfim, aceitemos de boa mente que cada um dos povos envolvidos realizará a Lusofonia conforme os seus interesses e com a originalidade e o tempero adequado ao seu paladar. Todo o resto, como diria Agostinho da Silva, será como falar cada vez mais do menos, ou como diria António José Saraiva, referindo-se aos críticos literários, fazer literatura sobre a literatura...

Aceito em 20/06/2006.

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