sábado, 22 de janeiro de 2011

As Campanhas de África

VI
UMA POLÍTICA COLONIAL ERRADA
P. — Tomou parte nas campanhas de Áfri­ca. Tudo isso vem, relatado nas suas «Memó­rias» em páginas admiráveis, de um realismo descritivo perfeito e emocionante. Agora a mi­nha pergunta é esta: que diferença estabelece entre essas campanhas e as guerras que mais tarde foram mantidas pelo regime fascista?

R. — São coisas inteiramente diferentes. Eu penso que a nossa noção de colonialismo foi inter­pretada magistralmente por Norton de Matos. O Nor­ton queria fazer uma nação chamada Angola, como se fez uma nação chamada Brasil e que faria parte de uma federação de nações de língua portuguesa, que se alargaria a Moçambique, à Guiné, a Cabo Verde, e, possivelmente ao próprio Brasil, se fosse essa a vontade do povo brasileiro. Política hábil, para conseguir que esses países novos, aos quais teria de se conceder um dia a independência, continuassem li­gados à mãe-pátria por laços sentimentais e por inte­resses recíprocos. Pensou em situar a capital de An­gola no Huambo, a que deu o nome de Nova Lisboa, ficando a cidade de Ulisses como capital federal. E pôs em execução o seu projecto grandioso, que os governos fascistas destruíram. Era uma política de emancipação que a República pretendeu levar a cabo, dando às colónias uma autonomia cada vez mais larga de modo a conduzi-las mais tarde à independência, como aconteceu ao Brasil. O começo do drama que passou a representar-se e levou à triste situação em que se encontram hoje as nossas relações com os paí­ses africanos ditos de expressão portuguesa foi o Acto Colonial de 1933. As guerras de pacificação que sustentámos foram legítimas  e  contribuíram,  até, para melhorar as relações entre povos indígenas de­savindos.   Degladiavam-se  as   duas   tribos  de  raça ovampa: os Cuanhamas e os Cuamatos, que viviam nas margens do Cunene. Os Cuamatos eram nóma­das, que ora se fixavam em território português, ora se passavam com os seus gados para a Damaralândia, ou seja o antigo Sudoeste Alemão, hoje Namíbia. Essa gente não queria aceitar a soberania portuguesa. Aí tinham as suas palhotas, apascentavam o seu gado, faziam as suas culturas. Mas quando o tempo não favorecia a agricultura, não estavam com meias medidas: invadiam e roubavam os povos que já eram sedentários, que se tinham fixado no vale do Cunene, mais para o Norte, dominando-os e reduzindo-os à escravidão. Foi então que o Governo português re­solveu   intervir.   A  primeira   expedição,   ainda   no tempo da monarquia, não foi coroada de êxito. Ficou lá o 2.° tenente João Roby e morreram 500 portu­gueses. O Governo, ainda em regime monárquico, mandou outra expedição, comandada pelo capitão Ro­çadas e de que fazia parte o Paiva Couceiro, a qual conseguiu pacificar a região, levando a cabo a ocupa­ção do território povoado pêlos Cuamatos. A segunda expedição, no tempo da República, empreendida con­tra uma nova rebelião dos Cuanhamas, que receberam apoio dos alemães, partiu no começo da guerra de 14-18. O seu comando foi entregue ao tenente-coronel Roçadas, cuja experiência, adquirida na expe­dição anterior, lhe conferia especial autoridade para exercer esse comando. Houve, no entanto, uma sur­presa. Na Metrópole pensavam que se tratava, apenas, de uma revolta de pretos. E o Roçadas, supondo que ia defrontar-se com indígenas amotinados, encontrou pela frente uma organização militar perfeita e aguer­rida de tropas alemãs da Damaralândia. E foi der­rotado. Os alemães aproveitaram a animosidade que existia contra os portugueses, atravessaram o Cunene e chacinaram as guarnições portuguesas. Internaram--se, mesmo, até Naulila, onde a resistência das nossas tropas foi heróica, e tomaram a posição. Distin­guiu-se no combate o tenente Francisco Aragão, que se aguentou enquanto lhe foi possível, até à exaus­tão, à frente dos seus dragões.
P. — Recorda-se de que o Roçadas fora ajudante de campo do rei D. Carlos, o que não impediu que um governo da República o es­colhesse para o comando da difícil missão.

R. — Porque ele era um militar competente e nesse tempo não se olhava à filiação partidária, às ideias políticas quando era preciso escolher os ho­mens para os lugares de maior responsabilidade. Es­tivessem eles onde estivessem. Na tropa não se que­ria saber se este ou aquele oficial tinham sido mo­nárquicos, mas apenas se tinham competência e se estavam dispostos a servir a República. O meu tio, general António Carvalhal, que era o governador mi­litar de Lisboa quando se implantou a República, continuou no seu posto. E no dia 6 de Outubro di­rigiu à população da capital uma proclamação pedindo disciplina e obediência ao novo regime. Que aconteceu, então, em Angola? O desastre do Roçadas produziu grande abalo no país, onde se desconheciam as condições em que a guerra se desenvolvia, as di­ficuldades que tinham de se vencer. Eu oferecera-me como voluntário para tomar parte na expedição que ia partir para Angola. A viagem do «Cabo Verde», que transportou o 3.° esquadrão de Cavalaria 9, de que eu fazia parte como alferes, as muares duma companhia de metralhadoras e as montadas dos ofi­ciais do Estado-Maior da expedição, foi uma verda­deira tragédia. Não havia um médico para os homens, embora houvesse um veterinário para os animais. E, depois duma viagem tormentosa, chegou o contin­gente a Moçâmedes onde assinalaram o desembarque peripécias de toda a ordem. E a coluna rumou para o Sul, já sob o comando do general Pereira de Eça.

A guerra em África não era nenhuma brinca­deira. O terreno é difícil. As distâncias imensas. E os recursos de que dispúnhamos eram insuficientes. Basta dizer-lhe que, em determinada altura, fui en­carregado de ir a Ruacana para fazer um reconheci­mento até onde fosse possível. E deram-me quinze dias para ir e voltar. Em quinze dias ainda lá não tinha chegado — através da selva, que era preciso vencer, que era o pior inimigo. Quando o Roçadas chegou a Angola, viu este triste espectáculo: as guar­nições portuguesas, brancas e pretas, tinham sido chacinadas. Não escapou um homem. Num recontro com os alemães da Damaralândia, as suas forças fo­ram derrotadas.

       Roçadas foi, depois, substituído pelo general Pe­reira de Eça, militar de grande prestígio que desem­penhava, ao tempo, as funções de ministro da Guerra e que não hesitou em deixar o seu cargo para coman­dar uma expedição africana. Esta guerra teve características diferentes da guerra colonial que Salazar sustentou em África para manter a soberania por­tuguesa ameaçada pêlos movimentos de libertação. Fomos enfrentar um inimigo que se igualava con­nosco e talvez superior, com armamento moderno e grande eficiência militar, sem contar com o inimigo local, a quinta coluna que tínhamos dentro do nosso território constituída pêlos pretos que aderiram à causa dos alemães e que aproveitaram aquela chacina para roubar e depredar o que ainda restava. Não quero justificar com o ódio aos alemães, que tinham procedido selvaticamente, as barbaridades que se co­meteram. A guerra é mesmo guerra. Não é conversa fiada. A campanha durou ano e meio. Durante esse tempo, nunca me deitei numa cama. Dormi sempre no chão ou numa tarimba, uma destas camas de cam­panha que nos deixam os ossos num feixe.
P. -Foi em meados de Agosto de 1915 que a coluna Pereira de Eça iniciou a marcha para o Sul e as operações completaram-se em Fevereiro de 1917 com a entrada das tropas portuguesas em N'Giva, quartel-general do soba Mandumbe e capital do Cuanhama. Assis­tiu ao combate da Môngua?

R. — Não assisti. Antes dessa marcha para o Sul, o general Pereira de Eça mandou fazer dois reconhe­cimentos: um comandado pelo tenente Sebastião Roby, descendo pelo vale do rio Cunene. E outro pelo comandante dos boers, que era eu, a corta-mato di­reito a Ruacaná e a Naulila, que eram postos ocupa­dos pêlos alemães. Do sul de Angola não havia ne­nhum mapa e, naquele tempo, o que era pior, não havia uma ponte, uma estrada, uma via de penetra­ção no mato. Era tudo selva virgem. Infestada de leões e de caça grossa. Os boers, na sua linguagem pitoresca, chamavam-lhe o kaucfelt. E eu fui nessa missão de reconhecimento. O Roby caiu numa em­boscada e foi morto — o segundo Roby que morreu em África, irmão do outro que também lá ficou. Eu não apareci no prazo estipulado porque o Estado--Maior não tinha feito bem os cálculos. Decorrido o tempo que estava previsto, ainda esperaram mais um mês. Apareceu, então, no Quartel-General um preto que fazia parte do contingente a dizer: «Morreram todos. Só escapei eu.» E deram-me como desapare­cido, receando que tivesse ficado prisioneiro dos alemães. Foi alertada a Cruz Vermelha, que infor­mou, depois das investigações a que procedeu, que não havia nenhum prisioneiro com o meu nome. Afi­nal, eu tinha cumprido a missão que me fora deter­minada : verificar a ocupação dos postos de Ruacaná, de Dongoena, de Naulila e de Roçadas, posições que tínhamos abandonado e que haviam sido ocupadas pêlos alemães.

       Cumprida a minha missão, meti-me a caminho, cie regresso ao Quartel-General. Eu levava um carro de abastecimento e cheguei à conclusão de que me embaraçava a marcha. Resolvi mandar o carro para Otchinjou e sustentar-me, eu e os meus homens, dos recursos naturais: caça, pesca, frutas do mato e duma certa cultura de mandioca que os pretos fa­ziam. E conseguimos sobreviver. Cada um dos meus homens levava uma porção de sal, que era uma coisa preciosa, e algum arroz, embora em pequena quan­tidade, para não sobrecarregar os animais. Nos can­tis levávamos reserva de água, que em África é di­fícil de obter. As distâncias a percorrer eram enor­mes e só raramente se encontrava água. Obtidas to­das as informações de que necessitava, pus-me a ca­minho, de volta. Como tinha pressa de chegar, disse ao sargento: «Tu ficas como superintendente e eu vou adiante para ganhar tempo.» E, como o meu ca­valo era mais veloz, aí vou eu pelo sertão fora sem mais companhia. Eles só chegaram ao acampamento dois dias depois de mini. Calcula o estado em que eu vinha: roto, sujo (não havia água para beber, quanto mais para me lavar), com a barba crescida, num mí­sero estado. Quando me viram assim, calcularam que a missão tinha redundado em desastre e que eu con­seguira escapar. E perguntaram-me pelo resto da tropa. «O resto da tropa vem aí.» Julgaram que vir ali era daí a dez minutos ou uma hora. Passou um dia e a tropa sem aparecer. «O Pimentel não conta a verdade —pensavam.— Esconde qualquer coisa.» Mas os pretos têm processos de comunicar rapida­mente, e, um dia antes de chegar o resto do desta­camento, soube-se, pelo telégrafo indígena, quê os boers vinham, realmente, ali. Foi uma festa quando eles chegaram. Uma festa que me comoveu, que me enterneceu.

        Apresentei-me ao chefe do Estado-Maior, o major Ortigão Peres, que era um homem bom. «O general recebe-o amanhã»—disse-me. Mas eu não tinha in­dumentária para substituir os farrapos que me co­briam o corpo. Um deu-me uma camisola, outro umas calças, outro um jaleco. E assim me apresentei ao general Pereira de Eça, encadernado de novo. Devo dizer que fiquei desapontado pela frieza com que o general me recebeu. Comecei a expor o resultado da minha missão com aquela loquacidade que me carac­teriza e, a certa altura, Pereira de Eça cortou-me a palavra: «Deixa-te de discursos e diz só o que inte­ressa.» Contei isto aos camaradas dizendo que não valia a pena fazer sacrifícios, passar fome e sede, arriscar o pêlo, para chegarmos ao fim e termos aquela recompensa. Eu vinha magro como um palito. O médico, o dr. Vasconcelos e Sá, que era muito meu amigo e um excelente camarada, observou-me e sub­meteu-me a um tratamento rigoroso para me resta­belecer. No dia seguinte foi publicada a ordem de campanha onde vinha a notícia da minha apresenta­ção e a proposta do general Pereira de Eça para ser condecorado com a medalha de Valor Militar. Fiquei todo inchado e foi a minha desgraça, porque, quando regressei a Lisboa, o José de Serpa pescou-me para o Quartel-General do Gomes da Costa, em vez de ir para a terra a gozar a licença a que tinha direito. Levaram-me para a Flandres e enterraram-me lá nas trincheiras. Sepultados em África, entre outros, fi­caram o Passos e Sousa, os dois Robys, o Viriato de Lacerda, o Afonso Pala, o Damião Dias e o Hum­berto de Athaide, que acabou por se suicidar.
P. — O Ferreira do Amaral comandava os auxiliares pretos. Contam-se dele coisas es­pantosas 
        R. — Era muito engraçado. E nunca virou a cara ao perigo. Eu conto nas minhas «Memórias» algumas peripécias que se passaram com ele, como a história daquele corno simbólico que ele enfiou num pau, pon­do-o em frente da barraca. Na véspera, numa reu­nião de oficiais em que se deu balanço aos mantimen­tos para a marcha contra a região sublevada dos Cuanhamas, o general Pereira de Eça perguntou a cada um dos comandantes o que lhe faltava. Todos disse­ram, mais ou menos, que não faltava nada, excepto os da Intendência, que se queixaram da falta de ra­ções de reserva. E o Pereira de Eça, sem mais tirte--nem-guarte, respondeu-lhes: «Ah! faltam rações de reserva. Comam cornos!» Chegámos a um certo sítio e acampámos. No dia seguinte, quando passava revista aos comandos, o general viu à porta da barraca onde se instalara o comandante dos auxiliares pre­tos um corno hasteado num pau, como se fosse o pretos um corno hasteado num pau, como se fosse o guião daquele destacamento. E, voltando-se para o comandante dos auxiilares, perguntou-lhe: «Ó Fer­reira do Amaral, que é aquilo?» E o nosso homem, sem se perturbar, respondeu: «É a minha ração de reserva.» Era um homem valente, desembaraçado, amigo de fazer justiça. Mas um tanto pitoresco. Nós contávamos com ele para a revolução que estalou no Porto em 3 de Fevereiro de 1927 e devia ter sido secundada em Lisboa, o que só aconteceu quatro dias depois, já com poucas probabilidades de êxito. Quando lhe telefonei a pedir a sua adesão, descul­pou-se. Que não tinha maneira de nos acompanhar. E foi com os outros.

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