quarta-feira, 23 de março de 2011

Os descobrimentos Portugueses do século XV: mais importantes que a Internet?


Com o nível de intensidade com que a conhecemos hoje, a globalização é um fenómeno relativamente recente. Todavia, teremos de recuar até ao século XV para encontrarmos a origem deste processo. A campanha dos descobrimentos portugueses deu início a uma nova era e impulsionou a globalização.
O termo globalização não tem uma definição consensual, e é, não raras vezes, erradamente aplicado. Por ser usado quase em excesso para qualificar fenómenos novos, começa a estar saturado. Como a distância entre tudo e nada é muito curta, por ser usado para definir quase tudo, o termo globalização está a destituir-se de sentido.
Todavia, podemos dizer que se trata de um processo de intensificação das relações sociais, económicas e políticas, de crescimento da mobilidade, e de aumento da difusão da informação e do conhecimento. Este processo permite uma aproximação entre agentes e regiões longínquas, reforçando a interdependência em vários domínios [1] .
Por interdependência podemos designar a situações nas quais actores ou acontecimentos, em diferentes partes de um sistema, se afectam mutuamente; significa dependência mútua [2] . Esta dependência mútua resulta da intensificação de relações entre aqueles actores, e do aumento de complexidade das mesmas.
O alcance do estádio actual do processo de globalização/interdependência deve-se muito aos avanços da ciência e às aplicações tecnológicas que suportam vários domínios, entre eles as comunicações e os transportes. Uma vez que os custos associados a essas aplicações baixaram, a sua utilização tornou-se frequente por parte de um cada vez maior número de pessoas. Este fenómeno de massificação do uso das novas tecnologias arrasta consigo um efeito de expansão e intensificação da interdependência.
Assim, os avanços da ciência, ao minimizarem as dificuldades associadas às distâncias, permitiram que a intensidade da globalização aumentasse, alterando as concepções adquiridas de tempo e de espaço. Todavia, estes avanços não tiveram uma progressão perfeita. Houve fases em que os impulsos foram mais acentuados.
Onde se situa então a origem do tópico que a Thema Questionis contempla nesta edição?
De acordo com Malcolm Waters “o percurso linear da globalização, tal como estamos a vivê-la agora, começou nos séculos XV e XVI, nos «primórdios da era moderna». Foi por esta altura que a humanidade compreendeu que habitava num globo. Waters acrescenta que “[...] até então, os habitantes da Eurásia, de África e da Austrália ignoravam totalmente a existência uns dos outros” [3]
Foram os descobrimentos portugueses que puseram em contacto estes povos. Como impulso ao processo de globalização os descobrimentos só deverão ser igualados em relevância aos desenvolvimentos mais recentes da ciência e da tecnologia, materializados não só em meios de transporte mais rápidos, mas sobretudo nos novos instrumentos de informação e comunicação, desde a transmissão por satélite à Internet.
Também naquela altura foram os desenvolvimentos da ciência, e a aplicação de novas tecnologias, que criaram a base de apoio à campanha portuguesa. Portugal tinha um projecto de expansão marítima cujo objectivo era criar uma alternativa ao monopólio comercial que Veneza detinha na época. Portugal precisava por isso de descobrir e controlar vias de comércio alternativas. Desta forma o país dotou-se dos meios à altura deste tão grande propósito.
Para levar a bom porto os seus objectivos o Infante D. Henrique criou a célebre Escola de Sagres, que viria a dirigir. A Escola de Sagres tornou-se o mais avançado centro de estudos e pesquisas sobre navegação da época, reunindo especialistas nas áreas da matemática, astronomia, navegação, geografia, cartografia e construção de instrumentos marítimos. Foi da Escola de Sagres que saíram os pilotos de navegação que deram cumprimento à campanha dos descobrimentos.
Dotados quer de conhecimentos e de instrumentos de navegação inovadores para a época, quer de embarcações também elas inovadoras, os navegadores portugueses abriram a porta para o conhecimento da existência de outros continentes e para a comunicação entre as várias regiões do mundo.
No século XV saíram da exiguidade do seu território na Península Ibérica e foram avançando para Sul, pela costa africana, de forma progressiva. Os navegadores bem sucedidos regressavam a Portugal para preparar novas missões exploratórias. No âmbito desta campanha foram chegando continuamente a sítios desconhecidos.
Alguns feitos alcançados por navegadores portugueses:
-          Em 1434 Gil Eanes passa o Cabo Bojador.
-          Em 1455-56 Cadamosto chega às Ilhas de Cabo Verde.
-          Em 1471-72 João de Santarém e Pedro Escobar descobrem São Tomé e Príncipe.
-          Em 1487 Bartolomeu Dias consegue ultrapassar com sucesso o Cabo da Boa Esperança, depois de anteriores tentativas falhadas que tiraram a vida a muitos navegadores.
-          Em 1492-98 João Fernandes Lavrador e Pedro de Barcelos chegam à Gronelândia e à Terra Nova.
-          Em 1498 Vasco da Gama chega a Calecute, na Índia. Saiu de Portugal em 1497 e regressou apenas em 1499.
-          Em 1500 Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil.
-          Fomos os primeiros europeus a comerciar com a China e com o Japão.
-          Alguns elementos históricos referem que teremos sido os primeiros a ter contacto com a Austrália [4] .
Estas descobertas foram possíveis sobretudo devido ao desenvolvimento de embarcações inovadoras – as Naus e as Caravelas, impulsionados à vela e dotadas de instrumentos de navegação pioneiros – e devido à habilidade dos pilotos formados na Escola de Sagres. Mais tarde, a rota de comércio controlada por Portugal passou a ser patrulhada por outro tipo de embarcação que também demonstrava o desenvolvimento naval de Portugal: os galeões.
Cerca de meio século após Vasco da Gama ter completado a primeira viagem por mar entre a Europa e a Ásia, Portugal detinha já uma vasta rede de fortalezas ao longo da rota. Modelski refere que, se compararmos um mapa de 1550 relativo à distribuição global das fortalezas portuguesas, essa distribuição não se assemelhará muito diferente à de um mapa contemporâneo da rede de bases militares dos Estados Unidos no estrangeiro [5] .
Logo em 1515 já havia uma considerável infra-estrutura estabelecida no ultramar. Essa infra-estrutura constituía um sistema político global rudimentar, envolvendo fortalezas, alianças, um método de regulação e mais tarde um sistema de patrulhamento marítimo que protegia as embarcações em trânsito na rota de comércio.
Mais tarde, por volta de 1540, com a presença no Oriente já consolidada, criámos o Estado Português da Índia, que era uma entidade político-administrativa demarcada de Portugal, na dependência de um vice-rei que tinha quase a totalidade dos poderes. Surgem as primeiras fortalezas e a presença meramente diplomática e comercial tomou gradualmente um cunho militar. Desta forma a presença portuguesa no ultramar passou de intermitente a contínua.
Por essa altura, quando já tínhamos também posições consolidadas ao longo da costa de África, dá-se início à colonização do Brasil e põe-se em funcionamento um sistema de comunicação entre vários espaços.
Durante quase um século, Portugal esteve numa posição de liderança internacional em decorrência da qual moldou a evolução da política mundial no sentido da globalização. Modelski usa o termo liderança global não querendo com isso referir-se a liderança como império mundial ou hegemonia, por serem normalmente associados a dominação política ou a preponderância económica. No caso português não era desse tipo de liderança que se tratava:
“By leadership I mean being first in (that is, innovating), and contributing substantially to, resolving critical global problems, and to building global political structures in response to such problems. In the XV century, that would mean leading in discovery and exploration, that which goes in Portuguese history by the name of «descobrimentos» was the first inkling of the possibility of a global system in a network mode, a system for facilitating and regulating oceanic and inter-continental exchanges without world empire” [6] .
Ao promover as descobertas Portugal deu um estímulo à globalização, na medida em que criou o primeiro sistema de comunicações e de comércio intercontinental, por via marítima, um sistema de alianças e o embrião de um sistema de integração económica entre o território europeu e as dependências em África, no Oriente e no Brasil.
Até hoje Portugal conserva algum património daqueles tempos de domínio. Um exemplo disso é o número de falantes de português no mundo. O português, segundo dados divulgados pela UNESCO em 1999, é a 6ª língua materna mais falada do mundo, com cerca de 170 milhões de falantes. Ocupa a posição de 3ª língua europeia mais falada, com a particularidade de deter um maior número de falantes fora do país de origem [7] . Para um país com apenas 10 milhões de habitantes este é um factor de grande importância ao nível da política externa. A proximidade do contacto pela língua, e por um passado em comum, é um potencial valioso no relacionamento entre os oito países [8] que a partilham.
Estar na vanguarda dos desenvolvimentos da ciência é um dos principais factores, que, associado a condições de estabilidade, organização, e circunstâncias favoráveis no contexto externo, determina a liderança (leadership) de uma organização política. Isto foi válido no início da globalização como continua a ser válido hoje. Portugal perdeu a liderança essencialmente por ter sido ultrapassado por outros países nas técnicas de navegação.
No século XV, navegando nas Caravelas, ou actualmente navegando na Internet, são os progressos da ciência que têm permitido descobrir novos Oceanos. Aquele tempo foi fascinante. E o tempo presente não o é menos. Com o número de cientistas que hoje desenvolvem a sua actividade, apoiada em consistentes projectos de I&D, é natural que, com maior frequência, novos Oceanos venham a ser descobertos e que novos impulsos sejam sucessiva e ininterruptamente suscitados à globalização
Versão inglesa

[1] Sebastião J. Formosinho,  Globalização e Sociedade de
Informação, Sociedade Científica da Universidade Católica 
Portuguesa, Lisboa, 2001, p. 36.
[2] Joseph Nye, Compreender os Conflitos Internacionais, Gradiva, 
Lisboa, 2002.
[3] Malcolm Waters, Globalização, Celta Editora, Oeiras, 1999.
[4] A atribuição deste feito aos portugueses não é ainda 
consensual entre os historiadores, mas recentemente têm surgido 
indícios que parecem comprová-lo.
[5] George Modelski, Portuguese Seapower and the Evolution of 
Global Politics, Academia da Marinha, Lisboa, 1996.
[6] Idem, ob. cit.
[7] Jorge Couto, Língua Portuguesa: perspectivas para o 
século XXI (2), Instituto Camões.
[8] Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, 
Cabo Verde, Guiné-Bissau e Timor-Leste. Estes países estão 
situados em regiões tão distantes como a Ásia, a Europa, a 
África e a América Latina.
* Este artigo foi originalmente publicado na revista polaca THEMA QUESTIONIS Número 2, Verão de 2004

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