Do Livro"Quarenta e cinco dias em Angola. Apontamentos de viagem" 1862, retirei esta passagem onde o autor aponta alguns erros da administração portuguesa na colónia de Angola, e avança algumas "soluções", numa época em que, com o Decreto de Sá da Bandeira Portugal procurava ao tráfico ilegal de escravos e avançar para um outro paradigma, o do povoamento branco e desenvolvimento do território, confrontando-se com dificuldades de toda ordem. Estava-se a duas décadas da Conferência de Berlim (1884-1885).
"...Três metros de fazenda d'algodão estampada, um punhado de farinha de pau e uma pinga d'aguardente de canna (cachaça) são os únicos objectos de que necessita para se vestir e sustentar; uma cubata ou barraca composta de ramos de coqueiro e barro, que elle levanta com summa promptidão, serve-lhe d'abrigo e a suas companheiras: uma simples esteira estendida no chão é para elle um excellente leito em que o braço faz as vezes de travesseiro.
Para occorrer a tão diminuta despeza não necessita cansar-se muito, e não é raro encontrarem-se pretos a quem as pretas sustentam, sem que elles tenham mais alguma cousa a fazer, do que ir levando docemente uma vida patriarchal.
Cabe aqui fazer distincçao de uma certa raça de pretos que, com quanto não pertençam aos nossos estados, se acham em grande numero em Loanda, onde vão procurar trabalho.
Chamam-lhe Cabindas, por pertencerem a essa povoação que fica ao norte do Zaire. Esta gente occupa-se quasi exclusivamente em serviços marítimos: são elles que fornecem para Loanda, juntamente com os Muxi-Congos, a agua do Bengo, e que fazem todo o serviço da pequena cabotagem, e do porto. O escaler da alfandega é tripulado por doze Cabindas, que se tornam insupportaveis com a sua aborrecida cantilena
com que acompanham constantemente o movimento dos remos. Esta raça de pretos é sem duvida a mais activa e a mais útil que se encontra em Angola, onde prestam excellentes serviços ao commercio. Teem um cônsul em Loanda, e são governados na sua terra por um preto educado no Brazil, fallando varias linguas, e que se apresenta mui decentemente. Recebe n'uma soffrivel casa de habitação bem mobilada, e obsequeia todos quantos o procuram, mas para não desmerecer dassympathias dos seus patricios, habita n'uma cubata modestamente construida.
Todos os navios nacionaes e estrangeiros que chegam a Loanda costumam, para poupar as tripulações, tomar para o serviço de bordo uma companha de Cabindas, commandada pelo seu capitão. Muitas d'estas companhas conservam-se a bordo dos navios que teem de percorrer a costa,e alguns d'elles já teem vindo a Lisboa a bordo dos vapores da — União Mercantil — consta-me até que um d'estes para cá trouxe um íilho que tem a educar n'um collegio da capital.
Os Cabindas são summamente económicos, e como a bordo recebem a ração, e uma macuta por dia (cincoenta reis fracos), chegam a juntar dinheiro; julgo-os sóbrios, mas não de delicado paladar, porque a um d'elles vi, na força do verão, comer ao almoço pimentinhas com sal e bolaxa, beber em seguida a sua ração de cachaça, e ficou tão satisfeito como se tivesse tomado um sorvete.
N'uma conversa que tive com um Cabinda foi que vim no conhecimento do verdadeiro sentido que os pretos ligam á palavra — branco — pela qual nos dominam. Perguntei-lhe se quando estavam a bordo dos navios estrangeiros entendiam as linguas que lá lhes fallavam, e elle respondeu-me com certa presumpção: — Me falia flancé, inglês e língua de Manco.
Esta lingua de branco é a portugueza. Só nós somos considerados brancos, porque assim designaram os descobridores e conquistadores d'aquellas possessões, e só a elles é que os negros julgam pertencer esta denominação.
Os Cabindas, á semelhança de todos os mais pretos, são mui supersticiosos: fazem uso de pequenas manilhas de ferro para afugentar o feitiço, e algumas vezes lhes vi pintar com barro certos signaes na testa e nas fontes para combater dores de cabeça, que elles attribuem a effeitos diabólicos. Se todos os pretos da nossa possessão fossem tão industriosos como os da raça Cabinda, o commercio e a agricultura teriam por certo attingido em Angola um elevado grau de prosperidade, mas infelizmente dos outros nada se pôde esperar voluntariamente.
Que meios empregar para obrigal-os ao trabalho? Em vista das tendências dos nossos ministros para a abolição da escravidão, não ha senão um : é fazer-lhes crear necessidades, obrigando-os a andar vestidos e calçados, e a ter um modo de vida qualquer, para que possam ser úteis á sociedade.
Sei que esta é uma das reformas que tenciona introduzir o novo Governador Sebastião Lopes de Calheeiros, e se conseguir fazêl-o, Angola dará um largo passo no caminho do progresso e da civilisação.
É muito mal entendido quererem legislar e governar aquellas nossas possessões, com as nossas leis e códigos liberaes. Aquelle povo não está ainda bastante maduro, para poder ser governado constitucionalmente. Um estado composto na sua maioria de pretos boçaes, de degredados por toda a espécie de crimes, de negociantes em grande parte de má fé, sem educação, nem consciência, de muitos militares ambiciosos e pouco escrupulosos, não pôde civilisar-se, nem ser governado senão por um despotismo illustrado. Os Governadores
geraes que tentarem fazer algumas reformas necessárias, cortando abusos inveterados e que se encontram a cada passo em todos os ramos da administração publica, teem de combater uma opposição terrivel, porque aquelles que se julgarem assim feridos nos seus interesses, não
terão duvida em recorrer aos meios mais infames, para se desfazer de um homem que lhes pôde ser fatal. Se o Governador não poder pelo seu lado recorrer aos meios rigorosos e repressivos, ha de succumbir na lucta irremediavelmente.
É preciso dar força sufficiente a um só homem, para poder luctar com milhares d'elles ignorantes, ou corruptos. Permitta Deus que os nossos governantes se compenetrem de todas estas considerações: a boa escolha nos empregados a quem devem remunerar de forma que compense as privações e sofrimentos que para alli vão supportar, sem que tenham de recorrer a meios illicitos para adquirir fortuna, é a principal base para fundamentar o progresso e engrandecimento d'aquella Provincia, e só assim e por meio da religião poderemos cumprir a nossa missão, que é de civilisar e concorrer para a independência d'aquella terra.
Sei que esta ideia causa espanto a muita gente; mas se todos conhecessem mais de perto as nossas possessões, haviam de convir comigo, que a Africa civilisada e independente nos havia de oíFerecer mil outras vantagens que hoje não oferece pelo estado selvático em que ainda se acha.
Que perdemos nós com a independência do Brazil? Nada, absolutamente nada. Perderam sim os fdhos bastardos da casa real, os filhos segundos das casas titulares, os aventureiros e os protegidos a quem a corte dava os governos e os empregos das provincias como benefícios simples, mas as nossas transacções commerciaes continuaram como d'antes, e o Brazil, apesar da sua independência, não deixa de ser portuguez, e não cessará nunca de o ser em quanto alli se fallar a nossa lingua. Elles mesmos tanto o reconhecem, que já tentaram arranjar uma lingua brazileira, conseguindo apenas a pronuncia de um jocoso dialecto de preto.
Na actualidade as transacções commerciaes com o Brazil parecem de menor importância, porque se acham espalhadas por muito maior numero de negociantes, do que antes da independência; mas quando assim não
fosse, o monopólio dos portos já não é possivel, n'uma época em que nações fortes fabris empregam todos os meios para dar sabida aos seus productos. "
Do Livro “Quarenta e Cinco Dias em Angola”
pg 13
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