quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Entre caravanas de marfim, o comércio da urzela e o tráfico de escravos: Georg Tams, José Ribeiro dos Santos e os negócios da África centro-ocidental na década de 1840. Angola


Programa Nacional de Apoio à Pesquisa
Fundação Biblioteca Nacional - MinC
Maria Cristina Cortez Wissenbach

 (...)
pg.  18

“A ordem dos negreiros”: os mercadores de escravos no relato de Tams e nas relações com Ribeiro dos Santos


Embora sempre muito preocupado em não deixar transparecer intimidade, as personagens dos negreiros aparecem de forma recorrentes no texto de Tams, e muito próximos às atuações de Ribeiro dos Santos: particularmente Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo, Ana Francisca Ferreira Ubertaly, Ana Joaquina dos Santos Silva, e talvez, Manoel ou Joaquim Pinto da Fonseca. Como também outros menos conhecidos, mas tão expressivos quanto os demais, como Nicolau Tabana. A princípio, este fato poderia ser visto como corriqueiro, uma vez que, segundo Tams, a sociedade de Angola encontrava-se imersa no trato da escravatura e em seus altíssimos lucros, dos quais se valiam quase todos os habitantes de Luanda, de Benguela e dos demais núcleos lusoafricanos: 
E, contudo, de certa forma, todos eram iguais; porque duvido que houvesse um só que não fosse negociante de escravatura, e que recusasse entrar em qualquer transação criminosa, contanto que por meio dela pudesse aumentar os seus lucros. Tais eram os elementos de que se compunha a sociedade em Luanda; e nem por momentos um estrangeiro se poderá esquecer da companhia porque se há visto rodeado. [...] A dança durava geralmente até as onze horas da noite, e neste decurso, serviam chá e limonadas conforme o estilo da terra, com simples doces de farinha de trigo, fabricados por padeiros portugueses estabelecidos na cidade. Os negros condutores, no entanto, deitavam-se junto as suas tipóias defronte do palácio, esperando o momento em que a reunião terminasse. Despediam-se então aqueles indivíduos com ridículas formalidades uns dos outros, e os que queriam afetar importância, se deitavam em suas tipóias, fazendo-se assim conduzir até casa, rodeados por uma comitiva de negros, uns como portadores de tochas, outros como criados. (VPP, I, 227) 
Mas seria sobre Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo, um dos mais controversos personagens da sociedade dos anos de 1840, que recaia as observações mais sugestivas de Tams, quando o escolheu para ilustrar tanto a arrogância dos mercadores, como as estratégias que usavam. Além de se referir ao escravo branco que o acompanhava ostensivamente em suas caminhadas pelas ruas da cidade (VPP, 1, 212) ou sua rica morada urbana, Tams sinalizava a dose de audácia com que Arsênio enfrentava as autoridades britânicas ligadas aos tratados luso-britânicos e em passagem pela cidade de Luanda, entabulando com elas ora cortesias, ora desafios (VPP, 1, 194). Uma grande agilidade era a característica central de sua atuação: 
O costume de viajar com rapidez era indispensável ao senhor Arsênio, porque elle se via freqüentemente obrigado a fazer jornadas mui cumpridas a cavalo, durante a noite, quando no sitio de desembarque de seus escravos se tornava precisa a sua prompta assistência. Consideráveis e repetidos prejuízos, o haviam induzido a adoptar o plano de os embarcar no decurso da noite, a alguma distância de Loanda.


Uma manhã, por ocasião de fazer-lhe uma visita medicinal, em conseqüência de um padecimento crônico no fígado, que lhe tinha sobrevindo em razão de prolongadas residências em diferentes partes do Brasil, me disse ele que não obstante achar-se assim doente, havia andado a noite anterior dezesseis léguas a cavalo, para poder assistir ao embarque de escravos seus no sul do rio Dande. (VPP, p. 212) 
Pelo que foi possível constatar a partir de documentos alfandegários da ex-colônia brasileira, os contatos de Ribeiro dos Santos com Arsênio de Carpo precederam a expedição de 1841 e foram notificados em Pernambuco, grande reduto de negociantes portugueses e seus agentes vindos de Luanda e de Benguela e de outras partes da costa centro-oeste africana. Entre os mapas do ano de 1838 que controlavam a entrada e saída das embarcações com bandeira lusa no porto, o nome do cônsul aparecia assinalado como consignatário de uma embarcação de propriedade de Arsênio de Carpo, dois anos antes da expedição africana.38 Numa época em que a carreira de Arsênio encontrava-se no apogeu: havia saído do anonimato e depois de tempos em que transitara por diversos pontos do Atlântico e por várias profissões, finalmente enriquecera, tendo como principal negócio o da escravatura e como base, sua própria atuação política, bem como as alianças com os dirigentes de Angola.39 De outra parte, era também este o momento em que Ribeiro dos Santos planejava sua virada africana, concebida quando se encontrava afastado dos assuntos consulares, e segundo a trajetória levantada por seu biógrafo, em “digressão pelo Brasil”, na antevéspera do empreendimento: 
Recolhendo-se de uma digressão ao Brasil, em 1839, e miudamente informado das circunstâncias do mercado da África Occidental portugueza, concebeu um projeto que logo tratou de por em obra, empregando consideráveis cabedaes em compra de urzela, despachando alguns navios com carga sua, própria para aqueles povos, e estabelecendo feitorias nos portos importantes da costa.40   
As mulheres comerciantes de Luanda também são freqüentes no relato do médico alemão, ao se referir preferencialmente a Ana Francisca Ferreira Ubertaly por quem não consegue disfarçar sua predileção. Africana, viúva do médico natural da Sardenha, Carlos Ubertaly, degredado estabelecido em Luanda, negociante que exercia as funções de almoxarife do governo angolano, e de quem, por certo, ela havia herdado navios e o comércio de escravos em direção a Cuba e a Pernambuco.41
D. Anna tinha nascido no interior da África e havia sido trazida como escrava para Loanda, onde vivia então com pompa, manejando um prospero negócio d´escravatura; mas eu farei justiça ao seu procedimento, pois que ella nunca praticava crueldades, antes tratava seus subordinados com grande humanidade. (VPP, 1, 215)
 Descrevia Tams também a aparição da dama africana numa festa da sociedade luandense, da qual participava, destacando-a em meio a uma multidão de pretos, brancos e mulatos:  Por entre os caracteres deste matizado grupo, divisava-se uma mulher ricamente adornada d´ouro e jóias, que tendo vindo para este paiz, havia poucos annos, d´uma província do interior como miserável escrava, por sua belleza e astucia tinha obtido a liberdade e riquezas. (VPP, 1,226) E ilustrava, por meio de sua viva inteligência, a “propensão intelectual dos africanos”: 
Freqüentes vezes encontrei negros, que havendo apenas quatro semanas que existiam na costa, podiam neste incrível pequeno espaço de tempo, não só entender o portuguez, como fazerem-se entender neste idioma. Uma das pessoas que maior negocio tinha d´escravatura em Loanda, era uma mulher que primeiro havia sido escrava igualmente; a qual depois de ter obtido a liberdade, havia estudado a língua portugueza de per si mesmo com tal energia, que não só a fallava correctamente, mas até por sua propria mão fazia a correspondência commercial neste dialecto.(VPP, 2, 98)
As relações comerciais que Ribeiro dos Santos manteve com dona Ana Francisca concretizaram-se na venda a ela da pequena escuna Esperanza, de sua propriedade, e que, segundo Tams, seria empregada no comércio de “produtos autorizados” e na  “condução de fazendas para os seus estabelecimentos de Mossamedes e na ilha de S. Tomé”. (VPP, 2, 52 e 112)


Também é matéria a ser referida o encontro de Ribeiro dos Santos com o obscuro Nicolau Tabana – ou Nicolau Tavama, como aparece mencionado na correspondência provincial dirigida à metrópole.42 Estabelecido numa aldeia fortificada em Novo Redondo, atual Sumbe e chamada pelos africanos, na época, de Quisala, Nicolau era de origem italiana, napolitano de nascimento, mas criminoso e degradado para as costas da África pelas autoridades portuguesas havia 25 anos. Segundo Tams, instruído nos usos e costumes dos povos da região, aclimatado aos ares e às doenças do lugar, casado com uma mulata e com muitos filhos, dispunha de uma fortuna calculada em cerca de 20:000.000 de piastras, cerca de 40 milhões de cruzados, segundo o tradutor (VPP, I, 176). Verdadeiro potentado branco monopolizava o comércio e a vida política deste trecho da costa, possuía feitorias espalhadas nas enseadas próximas a Novo Redondo, em Inandanha e Quicumbo, onde mantinha agentes e comercializava escravos, mas também marfim e cera que vinham nas caravanas do interior, bem como óleo de palma, obtido nas proximidades da pequena fortaleza em que vivia. Era servido por uma milícia composta por 25 soldados escravos, constantemente em armas e, nos negócios, por comissários, alguns cativos, extremamente leais a ele e que faziam longas incursões no interior, comprando marfim e escravos (VPP, 1, 187). No que diz respeito às suas relações com o comendador, após a morte deste, estas haviam perdido a razão de ser:
“havia transtornado todas as esperanças de transações commerciais para as quais Nicolau Tabana havia feito disposições”. (VPP, 2, 59).
Outro nome de mercador referido por Tams é o de um snr. Fonseca que ocupava o posto de agente da casa de Ribeiro dos Santos, na ilha de Santo Antão, arquipélago do Cabo Verde, em 1841, e que, estabelecido junto a sua mulher inglesa neste local, “estava próximo a remover-se para Benguela em utilidade da casa”, (VPP, I, 82) junto à expedição. Uma vez no continente, diria Tams, converter-se-ia definitivamente aos negócios escusos de tráfico, devido a seu intento de “uma prompta aquisição de riqueza”. É contra ele as palavras de desaprovação mais contundente usadas por Tams:
Enquanto a mulher receava o clima da costa, o marido não prestava attenção com seus rogos; porque o seu único intento era o de uma prompta acquisição de riqueza; e enlevado só neste desejo, de boa vontade se sujeitava a todos os inconvenientes. O thema que absorvia todas as suas conversações durante nossa subseqüente viagem, era riqueza, unicamente a riqueza [...] Logo que desembarcamos naquelle reino, o seu vil, abjecto e avarento espírito o fez instantaneamente adoptar o meio mais efficaz de alcançar aquillo que elle somente ambicionava; e sem hesitar um momento se profanou, empregando-se no tráfico da escravatura.
 (VPP, I, 83)


Segundo o médico, a noticia da morte de Fonseca chegou-lhe anos após, quando ele jáse encontrava de volta à Europa. Os irmãos Fonsecas (Manoel Pinto da Fonseca, Joaquim e possivelmente Antonio), da mesma forma que todos os demais negreiros acima referidos, são constantes na documentação produzida pelas autoridades que controlavam o tráfico, a partir das décadas de 1830 e 1840. Na base de dados sobre as viagens dos tumbeiros, Manoel Pinto da Fonseca é, em 1837, proprietário do brigue Especulador, de bandeira portuguesa, agindo a partir das ilhas do Cabo Verde e comercializando cerca de 490 escravos, provenientes da Senegâmbia em direção ao Rio de Janeiro43– coincidentemente a mesma região e local onde Tams o encontrara, como um dos agentes da casa Santos & Monteiro. Embora lidando no terreno movediço das suposições, estas informações podem trazer luzes à trajetória de enriquecimento dos traficantes, uma vez que não tem sido possível localizar exatamente as origens da família Fonseca. Como quer Conrad, talvez vinda de algumas das ilhas do Atlântico, tendo sido Manuel, caixeiro de uma casa mercantil, até pelo menos os finais dos anos de 1830.44 No texto de Tams, a referência a ele reaparece quando da morte de Ribeiro dos Santos, sendo Fonseca o consignatário de grande parte das mercadorias pertencentes àcasa, num momento em que, não se sabe exatamente por que, eram cobiçadas pelas autoridades alfandegárias de Luanda que procuravam confiscá-las: 
A nossa casa de Loanda, depois de ter estado fechada e sellada, foi igualmente alliviada do seqüestro, por uma porção de tempo, pela authentica prova que deu o senhor Fonseca, de ser o verdadeiro dono de tudo o que havia sido confiado ao seu cuidado; e desde então, pode elle continuar com o seu negócio sem estorvos, por sua própria conta. Immediatamente levantamos ancora... (VPP, II, 63)
Nos textos de época, os mercadores de escravos aparecem próximos a outros ramos denegócios e interesses. As relações que este grupo mantém entre si, bem como as indicações feitas sobre eles, denotam o processo de diversificação dos negócios africanos, talvez como a resposta mais imediata às tentativas de conter o tráfico, desde a medida de Sá da Bandeira, de 1836, mas que não implicou sua desarticulação imediata. De Arsênio à Ana Francisca, passando por Ana Joaquina ou mesmo pelo obscuro e solitário Nicolau Tabana, encontramos historicamente configuradas as situações de investimento de parte dos lucros altíssimos do tráfico de escravo em outros empreendimentos ou pensados em projetos futuros. Tanto Ana Joaquina quanto Ana Francisca possuíam plantações de açúcar na região do rio Bengo, ao norte de Luanda e em Mossamedes, e tanto uma como a outra subscreviam novos projetos. Ambas haviam participado da fundação da colônia de Mossamedes, onde mantinham agentes de suas firmas luandenses, para tocarem propriedades, mas também para gerenciar a mercadoria recebida em barracões escondidos longe do mar.45 As Anas comerciantes de escravos eram também senhoras de roças em São Tomé.
Por sua vez, embora não diretamente ligado à sociedade luandense, antes um agente informal dos portugueses, os interesses de Nicolau Tabana prenunciam a transformação das posses comunais sob a tutela tradicional dos sobas em terras e palmares privativos dos europeus em territórios africanos. “Nunca eu havia visto tão bellas florestas de palmeiras”, diria Tams sobre as áreas pertencentes ao italiano (VPP, I, 178):


Na margem direita do rio [o Novo Redondo], havia uma interminável floresta de palmeiras, a qual vista d´uma altura que a dominava, parecia communicar ao vale, que se estendia do lado do norte parallelo com a costa, uma extraordinária belleza. Nicolau tinha comprado aos negros visinhos, uma considerável porção desta floresta por uma insignificante pensão annual, para della extrahir o vinho que formava o ramo mias importante do seu negocio. Os seus grandes rebanhos e manadas de gado, se alimentavam também nesta extensa floresta; ao passo que um grande número de pequenos hortos ou plantações, abundamentemente o suppriam de tudo o que mais necessitava para o sustento da vida. (VPP, I, 182)
Tratava-se de movimento similar ao que ocorria com a implantação dos arimos europeus existentes desde o século XVII e instalados às margens do Bengo, mas também em Cazengo, nos meados dos oitocentos. Distrito habitado por cerca de 17 chefes africanos vassalos de Portugal que se mantinham em “ilhas de posses africanas” em meio às concessões fornecidas pela Coroa aos chamados “barões do café”, alguns deles brasileiros, e onde se estruturava uma sociedade baseada no trabalho escravo, “proto-colonial” na expressão de David Birmingham.46
O poder destes mercadores era digno de nota e por este motivo apareceu registrado em quase todos os relatos produzidos nas décadas de 1840, e naqueles que, décadas depois, procuraram traçar a história das sociedades da região. Enquanto a fama de Ana Francisca e sua história quase romanceada são a tônica do texto de Tams, a figura mais notável nos demais relatos é a de Ana Joaquina, mencionada raramente pelo autor.47 Escritores da época, entre eles o comissário Francisco Valdez, ligado à comissão mista instaurada em Luanda em 1844, referiam-se aos atributos da dama chamada pelos oficiais franceses que se hospedaram junto a sua casa, como a Rainha do Bengo.48 Não se tratava da única dona de arimos, de escravos e de navios com projeção junto à sociedade angolana; segundo Aida Freudenthal:

Entre as numerosas centenas de proprietários revelados pela documentação sobressaem varias “donas” de arimos e de escravos pertencentes à sociedade luandense e benguelense de meados do século como Ana Ubertali, Apolinária Mattoso e Ana Joaquina dos Santos Silva. Os dados obtidos permitem afirmar que a acumulação de riqueza em suas mãos resultou não apenas dos benefícios alcançados através do tráfico, como da prática do comércio licito e da exploração das terras que lhes pertenciam por herança ou por doação, recorrendo ao trabalho escravo. Destes casos o mais eloqüente no domínio da iniciativa empresarial, materializada em investimentos no tráfico, no comércio e na agricultura e transformação da cana, é o de D. Ana Joaquina, eminente figura da sociedade luandense, traficante e proprietária de arimos no Bengo, curiosa personagem de compromisso entre a economia mercantil, a agricultura “tradicional” e as novas estratégias empresariais. Sendo proprietária de vários prédios urbanos e de numerosos e extensos arimos.49 
De outra parte, o poder social de que dispunha esta classe de mercadores deve ser entendido também a partir da proeminência entre os grupos africanos, principalmente com seus parceiros de negócio dos quais dependiam para a obtenção de mercadorias, para o livre trânsito das caravanas, ou ainda os que formavam suas clientelas. Entre os habitantes da cidade de Novo Redondo que haviam construído suas cabanas em torno da moradia fortificada de Nicolau Tabana, Georg Tams nota, além da extrema fidelidade e devoção a ele, o fato de comporem seus comissários nas negociações com o interior e sua guarda particular. Um poder inconteste emanava das aparições econômicas e pontuais:
No dia em que ali chegamos, celebrava-se nella uma festividade, em honra da qual o senhor Nicolau apresentou um refresco que se prolongou por toda a noite. Uma porção de mesas cobertas de abundante mantimento estava collocada em frente da igreja, às quaes tinham livre acesso todos os habitantes. [...] O senhor Nicolau, não tomou parte alguma neste entretenimento, e apparecendo somente por acaso à sua porta, era sempre nessas occasiões saudado como príncipe por toda aquella gente com altas aclamações. Já se aproximava a madrugada, quando a multidão se foi pouco a pouco retirando. (VPP, I, 179-180) 

Também a fama de dona Ana Joaquina atravessava os sertões e atingia o longínquo reino dos lundas com o qual ela procurava fazer acordos comerciais, enviando seus intermediários, entre eles o sertanejo brasileiro Rodrigues Graça, que realizaria, entre os anos de 1843-46, a seu mando, uma expedição ou missão diplomática ao reino dos Lundas.50 Anos mais tarde, percorrendo as mesmas regiões, Henrique de Carvalho ouvia falar de Gá-Andêmbo, senhora considerada muito poderosa em razão de sua proximidade com o Muatiânvua Noéji e da riqueza de seus armazéns. Também expressivo é o testemunho de Antonio Gil:


Vi pretos da Lunda em Loanda na casa de uma senhora que ao tempo era das que mais negociava para o sertão. Tinham vindo atrahidos pela fama de seu negócio e suppunham-a talvez uma das grandes princezas do Moeniputo. Contou-me que quando chegaram se haviam prostrado diante della ao costume da terra, tributandolhe uma espécie de adoração. Accrescentou que todos se reputavam escravos de seu dinasta, cujo poder é tão grande que não pode jamais sair do âmbito da casa em que habita, e que provavelmente não passa de vasta galeria de casas ou cubatas de palha, fechadas em torno.51

É preciso considerar, como demonstra Vellut, que as dinâmicas comerciais africanas eram distintas das que aconteciam nas áreas costeiras e suas regras de negociação com os mercadores estrangeiros e intermediários passavam por dispositivos da diplomacia, entre eles embaixadas, presentes e acordos imprescindíveis para o livre trânsito das caravanas e para o fluxo das mercadorias, em suas diferentes naturezas – homens e produtos.52 Isso não pressupõe, afirma o mesmo autor, que as sociedades africanas do interior não estivessem sujeitas às flutuações do comercio mundial.53  
Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo é um dos mais controversos personagens da história da sociedade luandense do século XIX; nem mesmo a historiografia atual se mostra unânime na avaliação de sua figura histórica, sendo possível observar entre os estudiosos, os seus partidários e os seus críticos, bem como aqueles que o consideram expoente de um proto-nacionalismo angolano.54
Na época, sua trajetória foi marcada por altos e baixos. Depois de uma fase de grande proeminência política e econômica, Major das Ilhas Adjacentes à cidade de Luanda, na província de Angola (1840),55 Coronel Comandante das províncias de Bié, Bailundo e Embo (1842)56 e Comendador da Ordem de Cristo (1843),57 e da Ordem da Conceição (1844)58, cargos e honraria outorgados pela rainha D. Maria II, Arsênio de Carpo transforma-se em inimigo número um do bem público, descrito como o grande traficante de escravos nos numerosos relatórios às autoridades metropolitanas, sobretudo nos relatórios endereçados ao ministro Sá da Bandeira, que demonstrava sinais de execrar seu pretenso aliado.59
Em 1845, foi preso e depois expulso de Luanda por conta dos vínculos com o comércio dito ilícito, sendo este o primeiro ato do recém empossado governador, Pedro Alexandrino da Cunha.60 
No entanto, muito próximo a estes fatos, em 1848, o mercador reaparece pronto a executar planos destinados a viabilizar e reativar economicamente Angola por  Portugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-51), op. cit., 329. 59 AHU, Sá da Bandeira, documentos, Ordem 825; entre eles, cartas de Arsênio de Carpo ao ministro português, advertindo-o sobre várias questões: o contrabando de escravos e o de urzela, os territórios do norte de Angola, fora de controle; e finalmente, em 1851, o oferecimento de sua ajuda para o combate ao tráfico. Na fórmula de despedida “Loanda 20-5-51 Amigo muito obrigado e criado fiel Arcenio P. P. de Carpo”, a palavra “amigo” encontra-se riscada, possivelmente pelo ministro.meio da proposta de criação de uma companhia para explorar “um caminho de ferro com carros movidos a vapor”, da cidade de Loanda até o distrito de Calumbo, bem como de “levantar nas matas do rio Quanza uma Serraria de madeira também a vapor”.61
É significativo, para o presente estudo, notar que entre os parceiros mencionados encontravam-se negociantes ingleses e portugueses, como também o Cônsul português em Hamburgo na época, André van Randvyk Schut, velho conhecido dos ofícios vindos do mesmo consulado à época de Ribeiro dos Santos, e como mostra a mesma documentação, sócio na firma Ribeiro & Monteiro. Como veremos adiante, é indicativa a eventual presença do mesmo Schut em Ambriz após a morte do comendador, sendo mencionado por Tams sem, no entanto, explicitar exatamente o vínculo que este mantinha com os negócios da casa mercantil hamburguesa. Uma evidente tentativa do escritor alemão de camuflar alguns personagens e ligações que era impossível que lhe fosse desconhecida?
É de supor que o poder de Arsênio se estendia em direção ao interior. Embora no relato de Tams não fique evidenciadas as redes mercantis e sociais articuladas por ele com as populações africanas, depois da expulsão de Luanda, em 1851, parece ter transferido a base de seus negócios para as feiras existentes na hinterlândia de Luanda ou um pouco além dela. Isabel de Castro Henriques, seguindo as indicações feitas nas obras de Henrique de Carvalho, localiza-o aí, aguardando as caravanas imbangalas de marfim, cera e borracha, em Cassange, mas especialmente em Malange, um dos principais centros de trocas do interior angolano, a partir da década da metade do século.62 
Em outro trecho, a mesma historiadora utiliza-se de um oficio do chefe da feira de Cassange ao Governador Geral, citado também por Henrique de Carvalho, em que se noticia a passagem de uma caravana conduzida pelo “senhor comendador Arsênio Pompílio Pompeu”, composta por cerca de 800 serviçais, carregados de mercadorias – fazendas, pólvora e miçangas, estimadas em 86 contos de réis.63
Por fim, no mesmo período, é destacada a participação de Arsênio na recuperação da feira de Cassage e na pacificação do comércio do interior, aparecendo ora como emissário do poder português em embaixadas, ora conduzindo presentes e realizando acordos com os jagas locais. 

O estado do commercio aqui é o mais lisonjeiro possível em todo o sentido, porque os pretos estão muito submissos, não usando já das impertinências que d'antes esgotavam a paciência ao comprador: de maneira que o negociante Carvalho, que em menos de dois dias depois da sua chegada comprou sem grandes esforços para mais de mil e quinhentas libras de cêra e algum marfim, ficou admirado de assim o ter conseguido, pela experiência que tinha do modo extremamente moroso como antigamente se fazia aqui o negocio.64
Nesta linha de raciocínio, é preciso acrescentar, no entanto, um elemento a mais que  reiterado na interpretação de Jill Dias: de que após a proibição e o efetivo estancamento do tráfico em direção ao Brasil, e pouco depois a Cuba, parte da “elite crioula” de Angola havia se movimentado em direção ao interior, agindo uma vez mais como intermediária no comércio de escravos, direcionado agora para os setores dasplantations africanas, entre elas as grandes plantações de cacau em São Tomé.65

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