Fotografia do álbum de Cunha Morais, 1908
Esse Desconhecido Carregador de Caravanas
Recordarei
aqui o que escrevi na dissertação de mestrado “O Comerciante do Mato”
sobre essa figura, sem a qual, os companheiros de Diogo Cão, os
missionários, os negociadores de escravos, de cera, de diamantes, de
ouro, e especialmente as forças expedicionárias da ocupação efectiva de
Angola, não poderiam levar a bom porto de destino as suas mercadorias,
fossem elas quais fossem.
Dambu Amburi, fotografia de Veloso e Castro, 1909
Refiro-me
aos carregadores, eram reunidos em caravanas para assim poderem
atravessar o sertão com mais confiança e sem o risco de serem assaltados
e roubados pelos homens de guerra de etnias não submetidas ao governo
português, cujas terras tinham de atravessar. Transportavam consigo uma
esteira, ou um cobertor que o chefe de caravana lhes fornecia, a que por
vezes juntavam também uma pele de cabra, a servir-lhes de cama
estendida no chão em qualquer parte onde acampavam; uma panela de barro
para fazerem o infundi (massa de farinha de mandioca ou de milho)
e uma cabaça para a água eram os utensílios indispensáveis para
seguirem viagem. As caravanas aproveitavam a manhã para iniciarem a
marcha descansando ao pino do sol e reiniciando mais pela tarde.
As
caravanas das expedições militares eram compostas por mais de mil
carregadores, chegavam a atingir os três mil. Os chefes de caravana
sabiam que o inimigo dificilmente tentaria atacar uma caravana tão
numerosa e, por outro lado, se houvesse casos de deserção ou doença
entre os carregadores, facilmente, se redistribuiria a carga.
A
viagem era sempre muito penosa. A condição física dos carregadores, a
fome, as chuvas tropicais e as doenças grassavam, ao longo das semanas
entre os componentes das caravanas, não escolhendo a condição de ser
carregador ou chefe de caravana; transpunham rios a vau, de muito
difícil acesso, subidas e descidas onde os mais fracos sucumbiam, sendo
deixados, por vezes, moribundos. Não raro, a escassez de alimentos a
isso obrigava. A caravana era completada por exploradores, os célebres pisteiros.
Conheciam na perfeição, todos os traços “ocultos” dos caminhos. Dos
seus conhecimentos dependia uma grande parte do êxito (compreenda-se o
maior rendimento com o menor custo) das caravanas. Foi assim por exemplo
na conquista do Oeste, pela mesma altura, nos Estados Unidos da
América. Com uma enorme diferença: a razia das diferentes etnias de
Índios.
Os
primeiros militares que formaram os corpos expedicionários no Kuamato
em 1906 sob o comando do então major Alves Roçadas, tiveram guias
excepcionais como Calipalula[33],
conhecedor profundo da região. Orientava Roçadas não só em momentos
próprios de paragem da coluna como conhecia as veias de água mais
próximas, aconselhando permanentemente o comandante sobre os movimentos
do inimigo. Naquele tempo, estes factores eram incontornáveis para o
necessário descanso de uma pequena unidade militar, que quase sempre só
parava já exaurida.
Demoravam
em marcha forçada (sem impedimentos de qualquer ordem como por exemplo
ataques inimigos ou chuvadas torrenciais), entre quatro a cinco dias,
para perfazer entre 50 a 70 quilómetros, com a agravante de terem de
levar todo o material às costas. Cabe aqui referir o papel dos
carregadores.
....
Não
eram escolhidos ao acaso. Os portugueses já deambulavam por aquelas
paragens há quatro séculos, internando-se cada vez mais pelo
perigosíssimo trilho das caravanas comerciais de longo curso, sabiam
quais eram os mais resistentes carregadores e a que etnia pertenciam.
Deles muito dependia a progressão no terreno de toda a coluna. Na
prática, basicamente não se mudou de transporte de energia animal;
homens, mulas, bois e até camelos, para os camiões com capacidade para
duas toneladas de carga, importados e adaptados, tendo em atenção a
época das chuvas com incontornáveis lamaçais, como a estrutura das
pontes operacionais.
Os
carregadores continuaram a ser, durante ainda cerca de duas décadas
absolutamente indispensáveis. Pereira d,Eça bem pode avaliar o seu
préstimo depois da inovação do serviço de transporte por camiões “A
causa do corte de comunicações foi uma única. Os camiões terem, quase na
totalidade, condutores civis, que depois de assistirem aos combates dos
dias 17 e 18 de Agosto, ficaram aterrados, e logo se viram atacados,
não pensaram senão em fugir[34].
Portanto apesar da concorrência dos camiões, continuaram, prestavam
grande e eficaz serviço, eram recrutados pelos seus próprios chefes de
aldeia, que aproveitavam compelir os homens válidos do povoado, para,
não raro, lhes ficarem com as mulheres e o gado. Curiosamente, os novos
carregadores solteiros eram estimulados pelo salário a obter e com ele
garantiam o dinheiro suficiente para o lobolo (preço da noiva)
que de outra maneira não conseguiriam nunca. O peso dos volumes
transportados estavam relacionados primordialmente com as etapas a
vencer, a forma do terreno, a presença de forças inimigas e a época seca
ou das chuvas. Este assunto dá-me oportunidade de recordar um episódio
vivido pelo general Pereira d’Eça[35].
Texto integral AQUI
Carregadores Angola. Fotografia do álbum de Cunha Morais, 1908
Ambaquistas
" ...As caravanas de carregadores, no século xix, criaram uma densa rede comercial e de comunicação no interior de África. O mérito próprio dos africanos na exploração da África Central, nomeadamente de Luanda às Lundas, é realçado no livro da antropóloga e historiadora alemã Beatrix Heintze através de uma multiplicidade de perspectivas, com especial relevo para o papel dos chefes das caravanas, intérpretes e carregadores. Nessa altura, os exploradores europeus olhavam os Africanos como seres menores. Eram muito poucos os que os consideravam como «indivíduos por direito próprio». A literatura de viagens do século xix está cheia de preconceitos e da subestimação dos autóctones.
A interligação destes empreendimentos africanos com o desenvolvimento transatlântico e o desenvolvimento interno africano, as condições quotidianas das viagens em caravana, assim como as suas estruturas complexas, são outros aspectos centrais do trabalho de Heintze. O processo que essas caravanas desencadearam ultrapassou a importante dimensão político-económica que tiveram na época. Percorrendo longas distâncias, criaram novos espaços de comunicação: ligando os locais entre si, criaram espaços supra-regionais. Os chamados Ambaquistas, detentores de uma cultura mista luso-africana e predominantemente negros, desempenharam um papel muito importante e em diversos aspectos foram os pioneiros africanos por excelência no Ocidente da África Central.
No livro, traduzido por Ana Paula Tavares com o apoio do Goethe Institut, uma série de documentos preciosos – desenhos e fotos –, ajudam a construir o retrato de tempos em que a mais ousada determinação e a mais completa desumanidade se conjugaram para concretizar as colónias que meia dúzia de potências europeias dividiram entre si, desenhando uns quantos traços num mapa da África. "
Texto integral AQUI
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