Na madrugada de 22 de Janeiro de 1961, o paquete de luxo Santa Maria, da Companhia Nacional de Navegação, é tomado de assalto em águas internacionais, nas Caraíbas, pelo comando único do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), desencadeando a “Operação Dulcineia” .
O projecto da “Operação Dulcineia” – nome expressivo da luta da dama amada, a Liberdade – foi concebido pela DRIL, organização de resistência antifascista estruturada para a acção directa armada. Criada na Venezuela, em Janeiro de 1960, congregava exilados da União dos Combatentes Espanhóis, pelo lado espanhol, e do Movimento Nacional Independente, delgadista, pelo lado luso.
O plano da primeira iniciativa conjunta, congeminada pelo capitão Henrique Galvão (delegado plenipotenciário do general Humberto Delgado), consistia no desvio de um navio para ocupação da ilha espanhola de Fernando Pó, de onde se partiria para Angola rastilho de um levantamento insurreccional contra as ditaduras ibéricas.
O dia D do embarque, inicialmente previsto para 14 de Outubro, foi por três vezes adiado, devido a imprevistos financeiros e pessoais. Finalmente a 20 de Janeiro de 1961, insinuam-se vinte operacionais, entre os seiscentos passageiros que embarcam no porto venezuelano de La Guaira, aos quais se juntarão, no dia seguinte, em Curaçao, os restantes quatro membros do comando operacional. A bordo vai ainda uma tripulação de trezentos e cinquenta indivíduos.
Na tomada do navio regista-se um único incidente, uma troca de tiros na ponte, resultando a morte de um oficial e no ferimento grave de um outro. A operação, contudo, restringe-se à sua primeira fase – a tomada do navio – em consequência da opção humanitária de evacuação de dois enfermos e também da divergência táctica entre os capitães Henrique Galvão e Jorge Sottomayor – comandantes dos grupos luso e espanhol, respectivamente – quanto à liderança da investida na ponte. Esta divergência determinou um contratempo, decisivo para a mudança de rota e saída do espaço caribenho durante essa noite, rumo a África. A revelação da acção, após dois dias e duas noites de incógnita, suscita uma contenda jurídica de direito internacional.
O Governo português inicia uma campanha condenatória da empresa, apodando-a de “pirataria internacional” instigada pela conspiração comunista. Invoca as contrapartidas da NATO para pressionar os governos dos países aliados, como a França, Inglaterra e EUA, a agir em retaliação. Desde logo a França não adere ao pedido, mas a Inglaterra e os EUA, num primeiro momento convergem tacitamente, enviando vasos de guerra, e aviação para interceptar o navio sequestrado. A contestação da oposição trabalhista pressiona, contudo, a retirada britânica. Por outro lado, Kennedy, recém-eleito presidente dos EUA, apostado na mudança da política norte-americana para com Portugal, por causa da questão colonial, não dará ordem de abordagem do “Santa Liberdade” (novo nome do navio). Nas mensagens transmitidas via rádio, especialmente dirigidas à opinião pública norte-americana, Galvão sustenta uma atitude de beligerância política e apela à não ingerência de países terceiros.
O carácter surpreendente do fenómeno dá-lhe forte impacte mediático, aumentando extraordinariamente a sua repercussão internacional.
A tese de Salazar perdia terreno na cena mundial, e à condenação inicial sucede leitura politica dos acontecimentos favorável aos propósitos anti-ditatoriais dos ocupantes. De 27 a 31 de Janeiro decorrem negociações entre o comando rebelde e representantes de Kennedy para o desembarque dos passageiros, muitos deles norte-americanos. Permanece o navio ao largo do Recife, em águas internacionais, enquanto não cessa funções Kubitchek de Oliveira presidente brasileiro desfavorável às pretensões dos insurrectos.
O comando operacional recebera assessoria jurídica do embaixador Álvaro Lins e a promessa do futuro presidente do Brasil, Jânio Quadros, de apoio político. Só a 1 de Fevereiro, após o empossamento deste, se encetam conversações com os representantes brasileiros.
A 2 de Fevereiro dá-se o desembarque de passageiros e tripulação. O dia seguinte culmina com a adesão dos activistas a um acordo com as autoridades brasileiras para a entrega do navio ao Brasil em troca de asilo político.
A forte repercussão mundial dos propósitos políticos de Galvão, Delgado e seus companheiros e o isolamento externo a que se vê remetido o Governo de Lisboa no caso Santa Maria, deixam adivinhar, nesse Janeiro de 1961, o início de um ano critico para o regime, tanto no plano interno como no plano internacional.
Fernando Rosas e José Maria Brandão de Brito Dicionário da História do Estado Novo
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