Santos e Castro (no centro) e dois comandos especiais
Estamos em Agosto de 1975. Um pequeno grupo de portugueses
desembarca em Angola para ajudar a impedir a sua entrega ao colonialismo
soviético. Eram poucos. Iriam porém, mostrar em valentia sem
par e altruísmo sem preço, a vontade de todo o povo real que,
perplexo e traumatizado, estava incapaz de reagir à mais aviltante farsa
de toda a sua História. Em nome de um povo imaginário e de
liberdades paranóicas — aliás tolhidas a cada passo em pesados
preços de sangue e de fome — todos assistimos à maior mentira do século:
a "independência" de Angola.
Qual Angola?
A que víramos próspera, virada ao futuro, na preocupação do bem
estar das suas gentes, na riqueza da sua história, no valor da sua
cultura, na grandeza e na dimensão do seu viver? Ou a que
encontramos destruída, com os povos famintos a fugir de um lado a
outro, para morrerem mais tarde? A que encontrámos em gritos de dor e
pedindo a nossa ajuda, uma palavra de esperança, uma
afirmação de que tudo era pesadelo e de que voltariam à
tranquilidade do seu viver?
Qual independência?
A que trouxe a Angola a ocupação colonial por um exército
estrangeiro, em flagrante conquista militar, sem quaisquer laços que
liguem o povo aos ocupantes, para além da anuência de uma minoria
dirigente e totalitária e porque um governo, em Lisboa — provisório
mas definitivamente irresponsável — o consentiu também? O que pensa
realmente deste facto trágico o povo português e
desgraçadamente o que pensará o povo de Angola? Foi um grupo pequeno
que se bateu contra isto tudo. Merecem por isso o respeito e a
consideração de todos os portugueses. Por se terem batido e
porque se bateram bem. Alguns pagaram cara a sua dádiva. E quando no
pequeno cemitério do Ambriz desceram à terra, com toda a população a
assistir em religioso silêncio, com as honras devidas e
cobertos com a Bandeira Portuguesa, repetia-se apenas o que ao longo
dos séculos acontecera. Mais uma vez aquela terra acolhia generoso
sangue português. Ali estivemos também, meditando e
sentindo mais vontade para continuar.
A história deste livro, na simplicidade do relato de uma boa parte
dos combates que tiveram de travar-se, dá bem conta do que foi essa
luta. Não podemos, porém, deixar de recordar também com
sentido respeito os que pelo sul de Angola e em combates de
gigantes, libertaram sucessivamente Pereira de Eça, Sá da Bandeira,
Moçâmedes e Lobito. Ali tombaram outros tantos, que recordamos com
saudade e a maior veneração. O relatar de uma guerra, na verdade dos
factos e com humildade, é previlégio dos que sabem bater-se. É este o
caso, na óptica de quem o soube fazer e fazer bem. A
outra história, a dos bastidores da intriga política, ficará para
ser contada oportunamente. Ela terá de ser contada um dia e
se-lo-á...Fomos derrotados naquela batalha, mas vencidos ainda não.
Em Julho de 1975 os soldados cubanos começaram a desembarcar em
Angola. Faltavam cinco meses para a independência estabelecida nos
Acordos de Alvor, e o exército cubano, apoiado por material de
guerra russo pesado e sofisticado (tanques e mísseis), começou a
invadir Angola.
O povo português desconhecia em absoluto este facto, porque a
Informação (imprensa, rádio e TV) "mais livre do mundo" simplesmente o
ocultava. Aliás, em Julho de 75 tinha também começado no norte
do país o célebre "Verão quente". O povo andava atarefado em travar a
escalada comunista e tinha perfeita consciência de que se o conseguisse
a tempo, Angola nunca cairia sob o domínio soviético.
Mas o povo do norte foi traído pelas mesmas pessoas que traíram os
angolanos. Não foi por acaso que o "25 de Novembro" só aconteceu depois
de consumado o "11 de Novembro", data da entrega oficial
de Angola à Rússia. A primeira importância deste livro, escrito por
três Comandos Especiais que tive o orgulho de comandar, é a de provar,
com a simplicidade de uma prova visível e concreta, que
o exército cubano invadiu Angola antes da independência. Eu próprio
comandei os combates que os Comandos Especiais travaram contra os
cubanos em Angola, durante os meses de Agosto, Setembro,
Outubro e Novembro de 1975... Só na parte norte de Luanda, para
"defender" a cidade, estacionavam seis batalhões cubanos completamente
equipados, armados e municiados.
Feita a prova desta terrível verdade, surge a segunda importância
deste livro: — Quem autorizou ou quem facilitou a entrada dos cubanos?
Quem constituía, nessa época, o Poder em Portugal?
Presidente da República, Governo e Conselho da Revolução. Muitos
membros-desses órgãos do Poder continuam hoje a ser governantes. Grande
parte deles são os mesmos. Como é isto possível? Sobre os
ombros desses homens pesa a responsabilidade da morte de milhares e
milhares de homens, de mulheres e de crianças. Pesa ainda a gravíssima
responsabilidade de terem impedido a libertação da nação
angolana. Que povo pode ser livre, quando ocupado por um exército de
30000 soldados estrangeiros?
Quem autorizou a entrada do exército cubano em Angola, quando o
poder soberano ainda pertencia (e pertenceria durante vários meses) ao
governo português? Enquanto esta pergunta não for
respondida, que importância podem ter os escândalos em que se
envolvem altas figuras do regime e o que podem significar os delitos, os
compromissos ou os com-padrios que os levaram ao Poder? Mas
enquanto houver portugueses da raça destes Comandos Especiais que
foram lutar contra os cubanos, aquela pergunta há-de ter uma resposta.
Não se saberá quando, mas terá de ser dada às centenas de
milhar de mortos, aos que perderam a dimensão de viver e aos que
vagueiam apátridas e atónitos...
Visto à luz da História, os Comandos Especiais eram em número
ridiculamente pequeno. Apenas um punhado de homens: pouco mais de uma
centena e meia. Vieram de todos os cantos do mundo. Alguns
tinham já sido Comandos, ao tempo da sua vida de militares em Angola
ou em Moçambique. Vieram espontaneamente. Nada lhes foi oferecido, e
eles nenhumas condições impuseram. Claramente lhes foi
dito que os Comandos Especiais iriam apenas ser a resposta altiva
dum punhado de portugueses à cobardia e à traição dos que entregavam a
Pátria às potências estrangeiras. Vieram por sua própria e
livre iniciativa, na louca esperança de ainda salvar o nosso povo
duma desonra afrontosa e de uma perda irreparável.
Logo no primeiro recrutamento surgiram aqueles que iriam constituir a
mais extraordinária, a mais inconcebível, a mais desesperada força
militar que alguma vez se propôs fazer frente ao império
comunista: 156 homens dispondo de reduzidíssimo armamento,
dependendo quase que exclusivamente de si próprios, pois o apoio
logístico era praticamente inexistente. Estavam dispostos a enfrentar o
MPLA comunista, mas não sabiam ainda que uma das mais poderosas
máquinas político-militares do mundo iria lançar abertamente todo o seu
peso na luta a favor do MPLA. Igualmente ignoravam que as
autoridades portuguesas iriam dar cobertura aos comunistas.
Mas mesmo que o soubessem, na altura em que se dispuseram a lutar
para defender Angola da estratégia soviética, isso não os faria recuar.
Na realidade a acção desse punhado de homens começou no
Verão de 75. O "Verão Quente' de Angola. Quando se verificaram os
primeiros incidentes graves, em Maio/Junho de 75, em Luanda e nas áreas
que impropriamente designaram como "zonas de influência",
esses incidentes deram-se apenas entre os "movimentos de
libertação", MPLA incluído. A cruzada parecia fácil. Se os Comandos
Especiais tivessem de enfrentar apenas o MPLA, as coisas teriam
seguido um outro rumo: nunca os comunistas teriam tido a
possibilidade de tomar conta de Angola.
O Aito-Comissário que representava nessa altura o Governo Português
em Angola teve uma acção claramente definida: de acordo com a letra e o
espírito dos tratados, não concedeu nem concederia
qualquer privilégio especial a nenhum dos três movimentos. Fixada a
data da independência de Angola para 11 de Novembro, seriam até lá
tratados em plena igualdade as três forças que entre si
disputavam a supremacia em Angola. Mas essa correcta e imparcial
acção contrariava os secretos desígnios dos chefes comunistas. O
Alto-Comissário juntamente com o Comandante Militar, foram
chamados de urgência a Lisboa. Em contra-partida, Rosa Coutinho foi
para Luanda. Por curiosa coincidência, precisamente na altura em que eu
próprio cheguei também a Angola. Estávamos em Agosto:
exactamente no dia 5, desse ano de 1975.
A situação ali já não constituía segredo para ninguém: desde Junho
que cubanos e russos mantinham, sem quaisquer preocupações de segredo, o
seu Quartel-General em Luanda, na casa que fora do
Administrador da Petrangol. Aí funcionava abertamente esse
Quartel-General, com todas as secções e com todo o pessoal. Estávamos
ainda então sob o controle do governo português, esse mesmo
governo que num tratado de cariz internacional acordara não dar nem
permitir que fosse dada qualquer espécie de tratamento preferencial a
nenhum dos três movimentos competidores. No entanto os
soldados cubanos desembarcavam em vagas cada vez maiores em Luanda,
nesse Verão de 75. Todo o material de guerra que consigo traziam, ali
desembarcou à vista de toda a gente.
Quando os desembarques começaram a ser feitos em massa, em meados de
Agosto, passaram a ter lugar em Novo Redondo. E era às claras que
diariamente rolavam as colunas militares de soldados e
material cubano e russo, rumo a Luanda. Quanto ao MPLA, o movimento
que servia de cobertura a essa clara invasão comunista, estava
completamente subordinado ao Quartel-General cubano de Angola.
Quem poderia ignorar estes factos? Na realidade, ninguém. Nem em
Angola nem mesmo nos países vizinhos. E muito menos o governo português,
ou pelo menos o seu ministro dos Negócios Estrangeiros,
Mário Soares.
Foi na própria Emissora oficial de Angola — ainda sob a tutela de
Portugal e das autoridades portuguesas — foi através da própria Emissora
oficial que se fizeram constantes e insistentes apelos
para que voluntários se apresentassem no cais para trabalhar na
descarga desse material cubano e russo. E muitos foram os trabalhadores
que acabaram por ser apanhados à força — brancos e negros —
e obrigados a ir para o porto trabalhar forçadamente no desembarque
desse material. O facto dos Comandos Especiais terem lutado contra o
MPLA — e contra os cubanos e russos que os apoiavam — ao
lado de Holden Roberto, poderá levar a pensar que esse punhado de
homens fazia parte da FNLA. Não é verdade.
A FNLA serviu de ponto de apoio para esses homens, cujo único
objectivo não era nem o da conquista de riqueza ou fortuna, nem sequer o
de passageira glória. Era simplesmente o desejo de manter
Angola como nação livre e sem interferências estrangeiras no caminho
do seu progresso. Os Comandos Especiais e eu próprio demos o nosso
apoio à FNLA, por ser essa a via mais rápida para tentarmos
deter a avalanche comunista que ameaçava ocupar Angola. Foi esse o
teor do acordo inicial com Holden Roberto a quem clara e iniludivelmente
afirmei que nunca seriamos enquadrados nas fileiras da
FNLA — com o que ele plenamente concordou. De resto — e importa que
se diga — Holden Roberto mal conhecia a realidade de Angola.
Para todos nós, para os que ali tínhamos nascido ou os que dali
tinham feito a sua terra-mãe, era quase chocante ver o espanto que
Holden demonstrava perante o progresso duma terra que ele tinha
esperado encontrar primitiva e escravizada, árida e abandonada como a
propaganda estrangeira proclamava. Como nota curiosa, posso revelar que
perante uma barragem (as Molubas) já colocada fora de
uso por obsoleta e apta apenas a servir em curtos períodos de
emergência de apoio à barragem que servia Luanda, vimos Holden abrir os
olhos de espanto perante tão "extraordinária realização"...
Noutra ocasião, na Fazenda "Tentativa", Holden viu uma fábrica de
açúcar também já ultrapassada por não ter capacidade de laboração para a
matéria prima que ali se produzia e que por tal motivo
estava para ser desmanchada. Era uma fábrica que eu conhecia desde
menino. Pois Holden Roberto não escondeu o seu espanto perante a sua
"grandiosidade"...Talvez por tudo isso, e também porque ele
podia verificar que muitos de nós conhecíamos Angola desde Cabinda
ao Cunene e que todos amávamos aquela terra que queríamos que
continuasse a ser também nossa, talvez por isso ele nos respeitava
e nos dava todo o apoio que podia.
No entanto todo o esforço desesperado desses homens que quiseram
defender Angola do inimigo soviético se perdeu. Ingloriamente, diga-se.
Por vil traição. Tanto os angolanos como os portugueses
acreditaram que os representantes do governo português honrariam os
seus compromissos de imparcialidade tal como haviam sido assumidos em
Alvor. Não o fizeram. É já um facto historicamente
comprovado que o governo português apoiou, muito antes da data da
independência, a invasão dos cubanos, checos, húngaros e russos em
Angola, tal como aprovou e consentiu no estabelecimento de
quartéis e na distribuição de armamento, desde o mais simples ao
mais sofisticado, desde as armas ligeiras aos mísseis russos, os
célebres "órgãos de Staline"...Quem permitiu, quem sancionou,
quem colaborou nessa monstruosa traição que veio a culminar na
entrega de Angola e Moçambique ao colonialismo soviético?
Muita gente me tem perguntado por que não entrámos em Luanda, quando
a imprensa internacional chegou a noticiar que estávamos à vista da
cidade do dia 10 de Novembro, precisamente no morro
fronteiro ao Cacuaco. Este livro será uma resposta suficiente,
embora muitos aspectos não possam ainda ser revelados. Esses heróis que
se chamaram Comandos Especiais fizeram tudo quanto puderam.
Lutando com desespero contra o tempo, conseguiram de facto chegar à
vista de Luanda antes da data da independência, levando de roldão à sua
frente as sucessivas vagas de cubanos que se
interpunham entre eles e a capital. Se a tivessem conseguido atingir
antes do 11 de Novembro, tê-la-iam tomado, e não seriam as guarnições
cubanas, inadaptadas para a guerrilha urbana, numa
cidade que desconheciam e temiam, que o poderiam ter impedido.
Mas entraves de toda a ordem condicionaram a ofensiva sobre Luanda,
desde o não consentimento de manobras de diversão ou alterações de
frente, até ao atrasar sistemático do assalto à cidade na
sequência da primeira arrancada que em 48 horas nos levou do Ambriz
ao Caxito... para nos quedarmos mais de vinte dias sem gasolina. As
pressões que se exerceram sobre Holden Roberto —
constantemente mal esclarecido e enganado — no sentido de fazer
coincidir o início do assalto com a véspera do dia marcado para a
independência, funcionaram deliberadamente para que não
entrássemos em Luanda. A artilharia
abandonou as posições sem qualquer aviso e exactamente quanto mais dela
carecíamos para o assalto ao Morro de Quifandongo o qual,
uma vez tomado, abriria o caminho para a cidade em terreno plano e
sem obstáculos. Por tudo isto não ocupamos Luanda. Foi-nos retirado o
apoio de fogo pesado dos dois obuses de 140, abandonados
mais tarde em Ambrizete e transformados em massas de ferro inútil
porque as suas guarnições — evacuadas de helicóptero — levaram as
culatras...
Ali ficamos sob intenso fogo do inimigo. O barulho da onda de
mísseis parecia uma terrível e contínua trovoada. Os Comandos Especiais
ficaram colados ao terreno e impedidos de dar resposta.Ali
ficou só um punhado de Comandos Especiais no dia 10 de Novembro,
véspera do dia fixado para a independência. Tudo havia retirado. Do
nosso posto de observação sobranceiro à cidade que não
havíamos podido alcançar, vi sair do porto de Luanda a fragata que
levava as autoridades portuguesas. Eram quatro horas e meia da tarde do
dia 10 de Novembro de 1975.
Os Comandos Especiais olharam o silencioso afastamento daquela
fragata que levava no convés apinhado de gente os últimos restos de uma
presença de cinco séculos. As lágrimas de raiva e de
impotência rolaram pelas faces dos Comandos que o sol de Angola
curtira. A fragata lançou ferro no limite das águas costeiras e ali
ficou parada até à meia noite. Num arremedo de macabra farsa, à
meia noite em ponto, esse navio da Armada Portuguesa iluminou em
arco e salvou a terra...Depois, como que num silêncio de vergonha,
fez-se ao largo.
Gilberto Santos e Castro
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