Em 1948, Lisboa
devia ser triste. O regime fascista asfixiava, os ecos de um pós-guerra
aportavam, anunciando, ainda num murmúrio surdo, o início de uma era
que mudaria a correlação de poderes até então instituída. A maquilhagem
imperial começava-se a borratar na cara da velha cidade-madrasta.
Nas ruas da capital da metrópole, os estudantes das colónias, entre
os quais um recém-chegado jovem de vinte anos, vindo de Golungo Alto -
Mário Pinto de Andrade. “Foi em Lisboa que o conheci, no final da década
de 40, estudantes da mesma escola, tentando ele fazer jornalismo para
se poder manter aqui; procurando transmitir os testemunhos culturais dos
africanos que nas colónias viviam, a dos disseminados pela Europa e
Américas”. Recordação do editor João Sá da Costa, no texto de
apresentação dos livros A Guerra do Povo na Guiné-Bissau (Mário Pinto de Andrade), Sagrada Esperança (Agostinho Neto) e Nós, os do Makulusu (Luandino Vieira), em 9 de Dezembro de 1974.
Na Casa dos Estudantes do Império, Mário conhece Amílcar Cabral,
Agostinho Neto e outros nomes fortes que acabariam por empurrar do
pedestal o colonialismo português. Os debates e tertúlias sucediam-se.
“Mário era capaz de ouvir uma pessoa durante uma hora seguida, sem
interromper. Quando tomava a palavra comentava, ponto por ponto, os
vários argumentos. Ao contrário de outros políticos de movimentos
nacionalistas que pareciam usar uma dupla linguagem - a política e a
pessoal - , com o Mário tive sempre a impressão de estar a falar com uma
‘pessoa inteira’”, recorda Carlos Moore, etnólogo cubano-jamaicano que
conheceu o nacionalista angolano nos anos 80. “Sempre que não estava de
acordo com alguma ideia, sorria, mas não de forma irónica. Ele era muito
aberto e fraterno, com ele a conversa era possível”, remata.
Esta
postura remontava já aos primeiros tempos de Lisboa. “Quem o ouvisse
falar, fosse à mesa do café Chave d’Ouro, ou na casa do [poeta
santomense da negritude] Francisco Tenreiro, ou no café-clube perto do
Museu das Janelas Verdes (onde se juntavam africanos residentes em
Lisboa e os que vinham e iam de Angola com as últimas notícias
clandestinas), aperceber-se-ia que o que dele vinha era uma
constante batalha de pregação da lucidez de espírito”, descreve o editor
João Sá da Costa. “Era isso que o apaixonava: a lucidez.”
Aprendiz de ensaísta
“Surpreendido pela História num lugar e tempo determinado”, como
escreveria muitos anos depois, Mário Pinto de Andrade desde logo apontou
baterias para a luta contra o sistema colonial. Depois de cinco anos em
Portugal, salta para Paris onde frequenta a Sorbonne, edita a Présence Africaine
e convive com Jean Paul-Sartre, Anta Diop, Léopold Senghor e com uma
figura para ele determinante na interpretação e teorização do
pan-africanismo e da negritude: o antilhano Aimé Césaire, que Mário
colocava “muito alto na hierarquia das suas relações”, como recorda o
intelectual e economista egípcio Samir Amin na mensagem de condolências
enviada a Sarah Maldoror, depois da morte do seu amigo angolano. Carlos
Moore recorda também “o conhecimento profundo” que Mário de Andrade
tinha “sobre as origens e diferentes tendências do pan-africanismo”, que
relacionava com “as diásporas africanas, o que não era corrente naquela
época entre dirigentes políticos africanos, à excepção de Kwame
Nkrumah.” “Ele achava necessário recuperar a auto-estima dos africanos
negros, mas ao mesmo tempo identificava algumas contradições que teriam
que ser resolvidas”.
A reflexão sobre a negritude, o panafricanismo e as lutas de
libertação foi uma das preocupações constantes do intelectual angolano.
Nos últimos anos de vida, colaborou com a UNESCO. Assinou uma
bibliografia que inclui títulos como Origens do Nacionalismo Africano, Amílcar Cabral – Éssai de biographie politique, e inúmeros artigos e crónicas.
Numa entrevista inacabada a José Eduardo Agualusa (Público,
11 de Setembro de 1991), Mário Pinto de Andrade relembra que começou a
sua produção intelectual com “poesia, como toda a gente”. “Poesia
incipiente”. Continuou com contos até se transformar no que dizia ser
num “aprendiz de ensaísta”. Apesar desta auto-apreciação, vários
intelectuais consideram o pensamento deste personagem do nacionalismo
angolano essencial. René Depestre, poeta do Haiti e amigo de Mário,
observa que o angolano “era todo o contrário de um intelectual
‘superficial’”. “A seriedade dos seus propósitos e do seu pensamento
escondia uma viva sensibilidade de poeta”, lê-se na mensagem de
condolências que Depestre enviou a Sarah Maldoror.
“Ele era um pensador”, considera, por sua vez, Carlos Moore, que se
recorda de longas conversas sobre “marxismo e a revolução em Cuba” com
“uma pessoa muito curiosa”. Um “dandy da escrita”, chamou-lhe Carlos
Lopes, sociólogo guineense e brasileiro, no artigo “Mário Pinto de
Andrade: A Grande Ausência” (Soronde, Janeiro de 1991. “[Ele] era capaz
de se corrigir a si mesmo cinquenta vezes antes de considerar o acto de
parir palavra como consumado e autêntico”. “Esse rigor à disciplina”,
reflecte, “traiu-no muitas vezes e, incompreendido por alguns, não
provocava por espontaneidade o mérito que merecia. Tal atitude não o
atemorizava e parecia-lhe como que o preço a pagar pela
‘integridade intelectual’”.
E o momento fê-lo político
Os contactos de Mário Pinto de Andrade com os
movimentos independentistas africanos começam em Paris, ainda nos anos
50. O agora político desdobra-se em contactos em Argel, Casablanca,
Accra e Conakry, num processo que culminou em 1960, ao tornar-se no
primeiro presidente do MPLA. Ocupa o cargo durante dois anos, até à fuga
de Agostinho Neto de Portugal. Em 1961 é eleito secretário-geral da
Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas.
Mário travava a sua luta pela independência “com uma caneta e não com
um fuzil”, aponta Carlos Lopes, facto que não escapava desapercebido
dentro do partido. “Troçavam dele porque não ia ao Maqui, mas ele (…)
era incapaz de matar”, defende a companheira do nacionalista, Sarah
Maldoror. “Ele não era um combatente de armas. Era um combatente
de espírito”.
Na verdade, a estrutura partidária pouco teria a ver com o
nacionalista, sugerem os seus amigos. “Ele era um homem da esquerda
marxista, mas não marxista-leninista. Preocupava-se muito com a
liberdade de criação e independência intelectual. Era um pensador, não
era um homem de aparelho”, salienta Carlos Moore. “No entanto,
compreendia que, no mundo moderno, para se desenvolver uma luta de
emancipação, era necessário criar um partido político”.
Na mesma linha, o amigo Carlos Lopes não hesita em escrever que
“Mário, apenas por equívoco ocupou cargos de responsabilidade
governativa, ele que, pelo seu diálogo permanente, interrogação fértil e
contestação rápida dos princípios instituídos, preferia esta do lado da
inversão, senão subversão intelectual”. Classificando-o como um
“democrata socialista, internacionalista”, o egípcio Samir Amin não
duvida que o nacionalista angolano “sabia o que fazia” e que “estava
“perfeitamente consciente dos limites históricos do combate do momento,
dos problemas novos e das dificuldades que a vitória certa traria”. Como
o exílio.
Deixar Angola e a utopia
Em 1974, depois de protagonizar, com o seu irmão Joaquim Pinto de
Andrade, a chamada “Revolta Activa”, em oposição a Agostinho Neto, Mário
abandona Angola, onde nunca mais volta em vida.
Parte então para a Guiné-Bissau, onde já tinha estado durante a
guerra colonial, e onde ficou conhecido por “Bibi” entre “os camaradas
mais chegados” do PAIGC, relembra o amigo José Araújo no artigo “No
Tempo dos Aviões” (Tribuna, 1 de Setembro de 1990). No país dos
grandes rios, torna-se, a convite de Luís Cabral, o Primeiro Comissário
de Informação e Cultura e, mais, tarde, no Ministro da Cultura,
trabalhando com os artistas locais, entre os quais o célebre poeta,
compositor e intérprete José Carlos Schwarz, que o dirigente “tanto
encorajou”, recorda José Araújo. Em 1980, Nino Vieira derruba Luís
Cabral, atirando Mário para uma nova errância que se prolongou ao longo
dos dez anos de vida que lhe restavam entre França, Portugal
e Moçambique.
“O exílio torturava-o”, relembra Carlos Moore. “Havia várias camadas
de sofrimento no seu sorriso. Quando falava na guerra civil em Angola
ficava com o olhar perdido e interrogava-se: ‘quem imaginaria que isto
pudesse acontecer?’” E havia “a distância da família”, aponta, costante
desde os tempos da luta nacionalista, e que terá deixado mais marcas
nele próprio que nas suas duas filhas. “Soube desde cedo que o meu pai
não estava connosco, porque tinha algo de muito importante a fazer.
Independentemente da ausência, recebi muitas referências dele, através
de cartas e dos momentos em que estávamos juntos e em que ele nos
transmitia conhecimentos e despertava interesses”, conta a filha mais
nova, Henda Ducados.
Mário Pinto de Andrade faleceu a 26 de Agosto de 1990. Voltou então
“a casa”, onde foi sepultado no Cemitério Alto das Cruzes,em Luanda.
Sarah Maldoror, em take final: “Creio que o Mário vai ter importância
daqui a 10 anos, quando os angolanos escreverem verdadeiramente a
história do seu país. (…) Nessa altura toda a sua dimensão – política e
intelectual – será reconhecida (…) Podemos opinar tudo o que queremos
sobre Mário Pinto de Andrade menos questionar a sua integridade
intelectual ao longo de toda a história do MPLA. Morreu como se devia –
na maior pobreza. Morreu sem deixar nada às filhas. Mas era dono de uma
honestidade e rectidão fora do comum”.
*As cartas e artigos citados fazem parte do espólio de Mário Pinto de Andrade reunido na Fundação Mário Soares, e que está disponível em www.fmsoares.pt/aeb/dossier13
artigo originalmente publicado no Novo Jornal, Angola, Agosto de 2009
por Pedro Cardoso
O valioso tempo dos maduros
Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!
Mário Pinto de Andrade
(Para quem não conhece, político angolano, co-fundador do MPLA)
http://forum.angolaxyami.com/angola/129100-o-valioso-tempo-dos-maduros-por-mario-pinto-de-andrade.html
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