Embora já tenhamos, por diversas vezes, citado o conceito Zeitgeist,
temos aqui, mais uma vez, a oportunidade de apelar para a sua
relevância, por se tratar da ideia do "espírito da época" ou "espírito
dos tempos" e daí partirmos para o estudo do fenómeno do tocoísmo.
No princípio do capítulo referente à colonização, ‘Algumas Especificidades da ‘Situação Colonial’ entre os Zombo Desde 1910 até ao final da 2ª Guerra Mundial (1945)‘,
mencionámos os autores que suportariam a análise e o nosso pensamento
sobre os zombo. Cabe agora a vez de nos auxiliarmos do pensamento do
quinto e último autor: Arthur Ramos de Araújo Pereira, médico
psiquiatra, psicólogo social, indigenista, etnólogo, folklorista e
antropólogo. Evidenciamos que o que mais nos aproxima deste autor são as
comparações que podemos estabelecer, muito nitidamente, com os kongo e, por consequência, com os zombo através de três obras de sua autoria: O Negro Brasileiro (1934)25, O Folklore Negro do Brasil (1935)26 e finalmente Estudos de Folk‑Lore (1951)27.
Demos
a preferência ao citado autor, neste capítulo, para nos aproximarmos
dos conceitos do profeta Simão Gonçalves Toco e da sua obra, dentro das
igrejas cristocêntricas predominantemente existentes no Congo e
especialmente entre os zombo.
Se Arthur Ramos, em 1934, na obra ‘O Negro Brasileiro’, não receia debruçar‑se sobre as propostas do pensamento de Lévy Bruhl, através do ‘método etno‑comparativo’ sobre A Mentalidade Pré‑lógica28 e a Lei da Participação
e, com elas, construir o seu próprio pensamento, também nós, embora com
‘luvas de veludo’ mas mão firme e, apesar dos riscos inerentes à
questão da Mentalidade Pré‑lógica, onde estão sempre presentes os termos civilizado e o primitivo ou selvagem,
expressões que nos obrigam a enquadrar o significado na linguagem da
sua época, começamos por, acerca deste último conceito citar Ramos
(1934: 208) quando ele propõe:
“(…)
É essa persistencia da mentalidade pre‑logica que vem a explicar todos
os factos de survival fetichista entre os negros bahianos de nossos
dias. Em outro logar, procurei demonstrar que as praticas do
curandeirismo, nos meios incultos do Brasil, revelavam a persistencia
desta mentalidade pre‑logica, ou como diz Bleuler, do “pensamento
indisciplinado e autistico”. O “paganismo contemporaneo”, o folk‑lore
das sociedades adiantadas, evidenciam a persistencia destes elementos
pre‑logicos que podem coexistir ao lado dos pensamentos logicos.
Mas
o pensamento logico não pode pretender supplantar inteiramente a
mentalidade pre‑logica. Os responsaveis pela cultura e progresso sociaes
devem attentar bem nesse problema (…)”.
Aqui
temos uma achega bem forte para compreender o pensamento religioso e
político zombo e tudo mais que acerca deles temos vindo a escrever.
Porém, o outro pensamento que é a lei da participação (1934:207) vai entroncar no conceito mencionado acima:
“(…)
A ligação das representações, no primitivo, foge, assim, às leis da
logica formal. Ha nella, relações mysticas que implicam uma participação
entre sêres e objectos entreligados nas representações collectivas.
Lévy‑Bruhl deu o nome de lei da participação ao “principio proprio da
mentalidade primitiva que rege as ligações e as préligações destas
representações”. Só com muita difficuldade apprehende a nossa
mentalidade a significação desta lei, e, por esse motivo, torna‑se
difficil enunciá‑la sob forma abstracta. (…)”
Em 31 de Julho de 2005, fomos convidados, mais uma vez, por anciãos conselheiros, para assistir e participar no congresso tocoísta desse ano, que se realizou nos arredores de Lisboa, em sede própria, na rua Senhor Roubado LT1, Vale do Forno, Odivelas (será simples coincidência o nome da rua?). Relataremos
o que nos parece essencial, a fim de construirmos o corpo desta secção.
Por feliz permissão da direcção da mesa, foi‑nos concedido o registo em
vídeo de toda a cerimónia, por isso, as considerações que fazemos são
cópia fiel do que ali se passou.
Os trabalhos foram iniciados com as seguintes palavras:
“– Zulumongo é a cidade santa do Ntaya em Maquela do Zombo (…)”
O termo Zulumongo, pela tradução à letra, sugere‑nos o seguinte: Zulu quer dizer céu e Mongo significa monte. Ocorre‑nos então fazer uma breve extrapolação: Zulu Mongo significaria para os tocoístas, o que o Monte Sinai significa para os judeus (Êxodo 19:20).
Da
cerimónia, retiramos dois excertos que nos parecem reflectir o seu
espírito. Um dos participantes, com cerca de sessenta e cinco anos de
idade, deu o seu testemunho sobre factos passados há cinquenta anos
atrás, (previamente autorizado pela mesa a usar da palavra) proferindo
as seguintes palavras:
“(…)
– Quando Simão Toco no norte começou a percorrer as aldeias, as
populações que acompanhavam Simão Toco eram vestidas de branco. Nós,
naquela altura éramos muito crianças, mas ouvimos a canção que cantavam
era GUNGA GUELA, que quer dizer “o sino tocava’ e tinha um significado: era o despertar das populações para um reino melhor. Eu acho que a canção GUNGA GUELA, GUELA, era uma canção fetiche que despertava as almas das populações. Não me alongo mais porque estou totalmente comovido pelos cânticos que hoje ouvimos. (…)“
Esta intervenção terminou com a referência ao termo fetiche que nós transferimos para o kikongo por nkisi e ao qual nos referimos, em pormenor, no capítulo quatro, na secção Particularidades do Processo Mágico.
A leitura do discurso do dia esteve a cargo do ‘irmão’ José António Malanga, de que salientamos as seguintes palavras:
“(…)
Ao 56º aniversário da descida do Espírito Santo sobre a Igreja de Nosso
Senhor Jesus Cristo no Mundo, com Sede Espiritual, em Sadi Zulumongo,
Ntaya Makela do Zombo, a direcção Nacional da Igreja, em Portugal, no
dia 25 de Julho de 2005, informa:
Em
Julho de 1946, realizou‑se a conferência missionária internacional das
missões protestantes de todo o mundo, em Leopoldville, capital do
ex‑Congo Belga, com a presença de indivíduos de todas as partes do
globo, na qual se tratou a educação em geral dos Africanos, o aumento da
civilização, dos direitos cívicos e outros e finalmente o aumento da
luz do Evangelho de Cristo. Antes do encerramento da conferência foram
escolhidos três nativos de Angola para dirigirem petições a Deus.
O
1º interveniente o Reverendo Gaspar de Almeida da missão episcopal
Evangélica de Luanda que orou a Deus para aumentar a instrução, educação
e progresso de unificação entre brancos e negros. O 2º orador pedia a
melhoria das condições sociais e que os negros pudessem ganhar dinheiro
como os brancos. Esse africano chamava‑se José Jesser Chipenda. O
terceiro orador foi Simão Gonçalves Toco, foi‑lhe dito pelos
missionários nomeadamente pelo Dr. Tocker (?) da missão do Dondi,
província do Huambo, e o Dr. Brech (?) da missão Africana de Kalukembe,
província da Huíla, que pedisse apenas ao Espírito Santo afim de
converter o povo africano que se encontrava nas trevas do pecado visto
que sem a força do Espírito Santo, África continuaria nas trevas, assim
procedeu o orador, pedindo ao Espírito Santo o aumento da luz do
Evangelho em África.
Em
Julho de 1949, Simão Gonçalves Toco reuniu um grupo de 3*12, que
corresponde a 36 pessoas, em Leopoldville, de noite a fim de perguntar a
Deus se ouviu ou não a oração dirigida, em 1946, com o pedido do
Espírito Santo. À meia‑noite ouviu‑se um grande ruído e viu‑se uma luz.
Muitos tremiam, outros falavam muitas línguas, coisas se passaram
naquela noite. (…)”
1991, Luanda, festa tocoista que não se realizava há dezassete anos e a que assistimos.
Muito
significativo é um relatório que encontrámos no Arquivo Histórico
Militar com a referência 69 02 08, já desclassificado, com o título ‘Apontamentos sobre Simão Toco e a sua seita tomados em 1951 por um sacerdote africano da missão de Kimpangu ex Congo belga’, mencionado por Eduardo dos Santos (1972:365), na obra Movimentos Proféticos e Mágicos de Angola.
Este autor deverá, na nossa opinião, ser consultado, sempre que se
estudem os aspectos mágico religiosos zombo. O que importa aqui referir é
a persistência com que, de tempos a tempos, (como se se tratasse de uma
doença endémica), de acontecimentos revolucionários, nesta zona, a
região banhada pelo rio Fulége, por nós assinalado na secção ‘A 5ª Companhia de Caçadores Indígenas versus Batalhão de Caçadores 88’ e aqui grafado como Mfuelesi, com povoações célebres como o Kimpangu com o seu mercado Kiantanu,
o posto de Masseke e também de Sadi Kiloango, sendo interessante
reflectirmos por momentos, no conteúdo das duas secções. Por nós, que
conhecemos muito bem a região, embora deixássemos de por lá passar, vai
para trinta e dois anos, admitimos que as suas características
geográficas, a riqueza do seu solo e subsolo, bem como o significado
simbólico que ela comporta fará com que os factos vividos e a viver
pelas populações zombo, nela perdurem por muito tempo.
Do relatório, acima referido, extraímos o seguinte trecho:
“(…) Durante a leitura da Bíblia, sobretudo de noite, verificam‑se frequentemente casos de pessoas iluminadas, dizem eles, as quais recebem a inspiração sagrada do Alto. Os Iluminados começam a tremer e a ter esgares; os tremores acentuam‑se, o inspirado
agita‑se fortemente e indica aos leitores da Bíblia o capítulo cuja
inspiração ele acaba de receber. Os leitores lêm então o capítulo
indicado… os assistentes cercam o iluminado e excitam‑no a
comunicar‑lhes as ideias inspiradas…É depois aclamado e levantado pelos
assistentes em sinal de honra e veneração. Acontece com frequência que
na mesma reunião se assiste a dois ou três casos de iluminados,
inspirados pelo “Mpeve a Mvuluzi” – Sopro divino.29(…)”
O sublinhado é nosso, procedemos assim para reforçar a ideia.
Ao
falarmos de Simão Toco não podemos deixar de referir a figura central
do profeta Simão Kimbangu, porventura, a mais representativa personagem
da Teologia Cristã Africana Kongo. Não receamos colocar o termo profeta
porque os teólogos católicos e protestantes kongoleses e angolanos
referem‑se tanto a Simão Kimbangu como a Simão Toco como profetas, tendo
nós assistido, há dias, a uma tese de doutoramento na Universidade
Católica em Lisboa em que aquelas personagens foram textualmente
referidas naqueles termos. São, especialmente eles, que norteiam as
convicções políticas e religiosas dos zombo. A seguir daremos
testemunho, com o devido destaque, a factos vividos entre os zombo,
desde meados da década de cinquenta do século passado até aos anos
noventa seguintes, de situações que tiveram como protagonistas
destacados tocoístas de então.
António Povoa, o Mensageiro Tocoista
Muitos mfumu a kanda,
chefes e ao mesmo tempo conselheiros tradicionais kongo, faleciam de
velhos ou de doença, sem poderem transmitir os seus segredos rigidamente
guardados. Desses segredos, dependia o equilíbrio da vida do clã. A
sabedoria de viverem sob a tutela da administração colonial portuguesa,
fazia com que aparentemente a vida não tivesse nada para transmitir.
Ora, é exactamente a história da ‘Vida Vivida’ que tem o poder de
orientar os povos. Alguns responsáveis transmitem às gerações seguintes
conselhos que, para eles, são paradigmas do seu tempo e do que vem a
seguir, escolhem então entre os seus, o que, por vezes, tem a ver com
indivíduos que não pertencem por consanguinidade ao grupo de parentesco.
Foi
o que aconteceu connosco. António Povoa, responsável tocoísta e
pertencente ao ‘conselho de anciãos’, na época em que pertencer ao grupo
religioso era extremamente delicado, foi‑nos educando de forma muito
especial. Em carta que nos dirigiu a 20 de Julho de 1986 e com uma
relação de muita proximidade diz‑nos, a determinado momento, o seguinte:
“Apesar
de ser esta a primeira vez que lhes escrevo peço‑lhes que não deixem de
ter confiança em mim pois tal facto deve‑se à falta de alguém que
pudesse entregar a carta pessoalmente, porquanto como é do vosso
conhecimento nem todos os segredos devem de ser revelados a toda a gente
e em qualquer momento. Como o caso concreto desta conversa que
constitui segredo religioso e que em nada agradaria a indivíduos não
crentes. (…)”
Em 1991, por ocasião das grandes festividades tocoístas
(realizadas nesse ano, pela primeira vez, após a independência) durante
a nossa estada em Luanda, ficámos alojados no hotel Panorama, situado
na ilha. António Povoa fez questão de ‘conversar’ connosco. Não o fez no hotel, fomos ‘conversar’ para
a praia. Do muito que continuou a ensinar‑nos, ficou a forma de nos
prepararmos para encontrar os caminhos que nos permitiram discernir e
encarar muitos assuntos sobre os zombo, em geral. As conversas só
aconteceram depois de se ter realizado a tal grande festividade tocoísta
que não tinha lugar há mais de dezassete anos. Para que pudéssemos
assistir às celebrações, teve lugar uma reunião especial, em casa do, na
altura, ‘Velho Simão’. Nas festividades estiveram presentes grupos
tocoístas de toda a Angola, foi um privilégio termos assistido, a tantos
momentos que ficaram registados em fotografias.
O agora pastor António Mário a apresentar‑nos à Assembleia
António Povoa era um professor tradicional zombo e, além de conselheiro, entre os doze do ‘Mais Velho Simão’, ou seja, do profeta Simão Gonçalves Toco era ainda um excelente alfaiate, ‘tailleur’, como gostava de ser chamado. Conhecia toda a metodologia da modelagem do vestuário masculino.
Este
aspecto da profissão teve sempre grande relevância entre os zombo
tocoistas. Para Simão Toco, a realização económica do seu povo e
logicamente a sua auto‑suficiência, face a outros aglomerados
populacionais, era factor de primordial importância. Para que se possa
avaliar a forma, como já na altura, escolhia o seu ‘Conselho Director’
citamos do relatório30 do padre católico Alberto Ndandu o seguinte trecho:
“(…)
Em Sadi, povo natal de Simão, a seita funciona sob a direcção de Nkemi,
o mesmo Mbongo‑Mpassi, sucessor imediato de Minguiedi Mfinda.
Este
Nkembi é assistido por um conselho formado por um tesoureiro, por um
económico, por alguns anciãos, por um secretário, por catequistas que
ensinam nas aldeias, pelos alfaiates, etc. (…)”
Aliás, os melhores alfaiates zombo foram, nos anos cinquenta, sessenta e setenta do século passado, quase todos tocoístas. O
perfil humanista de António Povoa, no que se refere ao respeito que
guardava àqueles com quem convivia, fossem o que fossem, fazia dele um
homem muito respeitado. Foi‑nos apresentado por Samuel Eduardo, outro
tocoísta, condutor auto de profissão, que com António Bala
constituíam a nossa protecção, eram os nossos informadores e
companheiros de confiança. Deixemos aqui muito claro que nunca fizeram o
mínimo gesto para atraiçoar os seus, bem pelo contrário, se de
algum modo, a nossa actuação os prejudicava, não deixavam, estamos
certos, de ponderar sobre a questão e resolvê‑la, em conformidade. A
fotografia que acima foi tirada, por volta de 1965, na povoação de Taya, a célebre Zulu Mongo dos seguidores de Simão Toco. Hoje, entre a sua gente, é tratado por Sua Santidade.
A postura do grupo, homens, mulheres e crianças, não deixam margem para
dúvidas. Estava‑se naquele tempo, perante o melhor das elites zombo e
até kongo.
Mais
tarde, o acima referido António Bala ao apresentar‑se para servir em
determinada firma comercial, (sabemo‑lo fidedignamente) informou com a
maior naturalidade, a sua entidade patronal que teria que faltar, uma
manhã por semana, para se apresentar à Policia de Defesa do Estado, em
Maquela do Zombo. Em 1975, fazia parte dos duzentos e cinquenta
trabalhadores da fábrica de vestuário CIV, em Luanda.
Uma
manhã de Fevereiro, desse ano, o pessoal da fábrica encontrava‑se todo
reunido, à porta principal do estabelecimento fabril. O técnico
responsável pela produção, à chegada, perguntou‑lhes o que faziam à
porta. Foi‑lhe respondido que faziam greve. Inquiridos se sabiam o que significava a palavra greve,
responderam que não, só sabiam que não podiam entrar. O director de
produção chamou então, de lado, António Bala e pediu‑lhe que o ajudasse a
resolver a questão. Este, muito calmo, abriu a Bíblia protestante que
trazia sempre consigo (escrita em kikongo) e com ar de quem os reprovava
(apesar de ele mesmo se encontrar à porta quando o responsável chegou)
dirigiu‑se aos colegas de serviço, mais ou menos, por estas palavras:
“Conheço muito bem a palavra de Jesus. Quero lembrar‑vos a seguinte passagem e começou: Vocês,
para serem admitidos ao serviço, entraram por aquela porta estreita, se
querem sair pelo portão largo e espaçoso estão a ir pelo caminho que
conduz à perdição, não façam isso, vamos ao trabalho”
Referia‑se
à passagem do Novo Testamento, Mateus 7:13. Entre os trabalhadores
estavam vários tocoístas, que perceberam a intenção do seu conterrâneo.
Assim que Bala entrou, todos o seguiram. Até que, em 1975, os partidos
políticos começaram a defrontar‑se gravemente, nunca mais houve
problemas na fábrica e António Bala continuou a apresentar‑se
impreterivelmente todas as semanas à PIDE. Sabemos que, por volta dos
finais dos anos oitenta, faleceu.
António
Povoa explicava‑nos então que, as famílias zombo não tocoístas,
dividiam os seus filhos para seguirem a religião católica ou
protestante. De uma forma geral, este procedimento era seguido por
todos. Por exemplo, o pai ia à igreja católica mas a mãe e a avó iam à
igreja protestante. Havia uma grande diferença nas missas. A igreja
protestante adoptou, desde muito cedo, um ritual mais africano, com
cânticos que compreendiam, por isso as mães e avós gostavam mais de ir
lá, fazendo‑se acompanhar pelos netos. Ultimamente, deu‑se um facto
curioso na igreja católica no norte de Angola – foi introduzido na missa
o batuque. Após o início da guerra colonial, os elementos responsáveis
pela igreja evangélica baptista foram expulsos e parte das suas
instalações destruídas. Os zombo daquele tempo, ainda hoje, têm saudades
dos cânticos cantados em kikongo pela congregação protestante.
A
fotografia, ao lado, foi tirada no dia do casamento de António Povoa,
já em Luanda. Pensamos que não seria o seu primeiro casamento. A
correspondência, que trocámos até 1995, é testemunha de uma amizade
recíproca. Depois de todos estes anos, temos muita dificuldade em
aceitar que, alguma vez e propositadamente, o António Povoa quisesse
deliberadamente prejudicar‑nos. Apesar disso, ele sempre soube que a sua
gente disputou, utilizando todos os argumentos, segundo os zombo
válidos, as instalações ‘abandonadas’ pelos comerciantes europeus do
zombo.
Para a frase ‘utilizando todos os argumentos’ recorremos a M. L. Rodrigues de Areia31 (1974:35) quando, a propósito da figura estruturante do sistema mágico religioso kongo, refere:
“(…)
Nos princípios deste século John Weeks, estudando os Kongo, foi um dos
primeiros autores a reconhecer que os nganga exercem uma acção benéfica,
positiva, no seio da comunidade: «Eles (os nganga) libertam o povo dos
maus espíritos e curam as doenças» (Weeks, 1909a:182). A competência
destes operadores benéficos viria, segundo o mesmo autor, do recurso à
medicina tradicional e também do efeito psicossomático exercido pelas
danças, cânticos e imprecações aos espíritos malignos, elementos que
acompanham a aplicação dos remédios ritualizando a doença e a cura
(Weeks, 1909:53). (…)”
A estas linhas de Areia podemos, pelo seu valor documental, acrescentar o que o testemunho ocular do padre Alberto Ndandu32, em 1951, diz a determinada altura do seu relatório:
“Foi
assim que neste dia pudemos encontrar ao longo do caminho do nosso
percurso vários grupos de homens e mulheres, com os bébés às costas que
iam consultar o afamado Nganga Ngongo. Na varanda de sua casa, feita de blocos, pudemos reconhecer algumas pessoas do Ngongo,
acocoradas ou assentadas em troncos de árvores, à espera de serem
atendidas. Atravessando o Mfwelesi e subida a montanha, eis‑nos chegados
à aldeia de Sadi‑Kiloango. O escriturário Alberto que conhecia bem a
aldeia onde havia estado várias vezes, e até no domingo anterior,
disse‑me: ‘É aqui. Acolá está a casa deixada por Simão Toco. Serve
actualmente de templo da seita.’ (…)”
Uma
outra oportunidade para reflectirmos sobre o assunto desta secção
apresentou‑se‑nos, em 1995, com a satisfação de conhecermos David José,
estudante finalista de Sociologia, numa universidade de Lisboa. Tivemos
longas conversas, aproveitávamos jantar e conversar. Entre cerca de
trinta horas de conversa gravada, falamos de tocoístas e do fenómeno da
possessão. David disse a certa altura:
“Os
tocoístas tiveram a possibilidade (paradoxalmente), uma vez que foram
dispersados em pequenos grupos de ao “serem concentrados” enriquecerem
todos os seus conhecimentos da vida. Em grupo, foram mais fortes que
todos os outros grupos que conseguiram juntar o pai a mãe e os filhos.
Nos seus cânticos sentiam e comungavam do mesmo tipo de sentimento e
isso trazia‑lhes alegria, ou melhor, parece que, desse modo,
transbordavam o seu “ser” para o Além. É como que fossem possuídos pelo
Espírito, é como se estivessem tão livres, tão à vontade, tão felizes
que a voz lhes brotava com alegria. Talvez por isso, algumas pessoas às
vezes levantavam‑se a saltitar e um indivíduo estranho ao assunto, era
capaz de ir a passar e, inadvertidamente, dizer que aquele fulano estava
exagerar, porém o que estaria dentro de tal pessoa, é por o de fora do
grupo ignorado, pensar‑se‑ia que estaria bêbado. Há até pessoas que
ficam muito concentradas e são até capazes de saltar e bater em alguém.
Nós podemos até dizer que de tanto saltarem perdem a atenção, mas
geralmente a perca de atenção é também uma grande concentração. A minha
filosofia é que quando vejo alguém na rua a andar e vendo o poste à sua
frente vai lá bater. Nós dizemos que ele ia muito distraído, mas não! Eu
sou capaz de responder que ele ia demasiado concentrado. As pessoas
libertam‑se, criam um mundo à sua volta, concentram o pensamento, estão
tão concentrados que o que os rodeia não interfere em nada no que estão a
fazer e no geral nós dizemos que as pessoas estão com falta de atenção
(...)”
Nunca
mais nos saiu do pensamento esta lição, consideramo‑la extraordinária.
Será bom que reflictamos um pouco, porque também faz sentido para o que
se passou com os “retornados” portugueses que vieram em difíceis
condições, para Portugal, em 1975, referindo‑nos só aos que trouxeram de
seu a roupa do corpo e, hoje, conseguiram, a pulso, orientar (os que
puderam ou quiseram) as suas famílias.
Este texto faz parte de um texto mais vasto intitulado " Os Zombo na Tradição, na Colónia e na Independência (III Parte). O Comércio de Fronteira em Tempo de Guerra", do Professor Doutor José Carlos de Oliveira, retirado DAQUI
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