joão morgado fernandes jorge gonçalves * |
Qual foi, em seu entender, o factor determinante dos processos da independência em 1974/75? A razão principal que determinou a maneira como decorreu a descolonização foi o facto de termos descolonizado tarde e a más horas e ao fim de dez anos de guerra. Havia factores que deveriam ter servido de advertência, quer a Salazar quer ao Marcelo Caetano, e que não foram tidos em conta. Quando chegou o 25 de Abril, descolonizou-se após um golpe militar que criou instabilidade política e sociológica em Portugal. Tínhamos vivido 48 anos sob a pressão de uma ditadura e foi como se tirássemos a tampa a uma panela de pressão. Por outro lado, o 25 de Abril fez-se fundamentalmente para acabar com a guerra. E a descolonização acabou por se fazer sem cobertura militar, porque, entretanto, deu-se a indisciplina militar no Ultramar. E deu-se a indisciplina militar no Ultramar porquê? Pela simples razão de que o programa do MFA não registou o princípio da autodeterminação, da independência. Naturalmente, os movimentos que nos faziam a guerra desconfiaram "Este princípio está aceite pela ONU, há independências em série, já quase só faltavam as nossas colónias , e Portugal faz uma revolução para se libertar e não reconhece o princípio da autodeterminação?" Ficaram desconfiados. E a guerra continuou. Morreram tantos soldados antes como depois, porque eles aceleraram para negociarem numa posição de força. Resultado: a disciplina esfumou-se, a cadeia de comando rompeu-se, a pressão no sentido da "independência já" foi constante. E foi nessas condições dramáticas que teve que se descolonizar. O ambiente de grande tensão da guerra fria terá contribuído para que não tivesse sido possível uma solução que não passasse pela descolonização total? Mas onde é que não passou pela independência? A hora das independências era de tal ordem que não há memória de nenhum país que dissesse "Eu não quero ser independente, quero ficar ligado ao país colonizador." Não há memória disso. África encontra-se num processo de grande desenvolvimento económico, mas do ponto de vista político tarda em encontrar um modelo de governação. Não podemos continuar a querer influenciar as nossas antigas colónias, ensinando-lhes como devem organizar-se. Eles só não aderiram mais cedo à democracia pela razão simples de que, em Moçambique, houve uma guerra durante muitos anos e, em Angola, eram três movimentos em guerra entre si, cada um deles com uma potência imperialista por detrás. Houve a deslocação das populações, houve toda aquela tragédia, houve a destruição das infraestruturas e não apenas. Cidades ficaram destruídas, Nova Lisboa destruída, a Cidade da Beira destruída... Estão agora a levantar a cabeça, estão agora a reorganizar-se. Não podemos julgá-los como se tivessem estado estes 30 anos em paz e liberdade. E, tendo em conta estas décadas de guerra, o facto de terem logo a seguir aderido ao modelo democrático e económico ocidental é de louvar. Estão a fazê-lo com relativo êxito. Não se salta de uma cultura africana comunitária e autoritária para uma democracia ocidental. As democracias começam por ser formais e passam depois a reais. As nossas democracias ocidentais começaram por não ser perfeitas. No relacionamento entre Portugal e as antigas colónias continua a haver muita dificuldade de aproximação na área da economia. A que se deve essa dificuldade? Faço a crítica a todos os governos portugueses depois do 25 de Abril de ainda não terem sido capazes de compreenderem África e as suas potencialidades. Faço-lhes essa crítica, a todos, sem excepção. Perdemos, em grande medida, uma oportunidade única, mas única mesmo, de termos podido investir em Angola e Moçambique, sobretudo, mas não só. São dois países de enormes potencialidades, enquanto que estamos a investir na Polónia, inclusive no Brasil, um país irmão, sem dúvida, mas que não precisa tanto de nós como Angola e Moçambique precisam. E devo dizer que os investimentos em Angola e Moçambique poderiam ser muito mais rentáveis do ponto de vista económico para o investidor do que aqueles que andamos a fazer noutras latitudes. Vejo a China a investir em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde. Vejo o G8 a reagir pela primeira vez, a dizer "vamos perdoar a dívida a África", como reacção à atitude da China. Estes dois poderosos blocos estão a compreender o que significa Angola e Moçambique, e não apenas. E o que é determinante, do seu ponto de vista, na dificuldade em institucionalizar modelos de relação entre Portugal e África? Há o caso da CPLP, da UCCLA. É culpa portuguesa? As culpas são sempre repartidas, mais do que nós julgamos. Eu às vezes até digo que nós temos tendência para culpar sempre alguém em especial, porque se a culpa não é concentrada, se não há um bode expiatório, não presta. Se for colectivo, se são todos culpados, então ninguém é culpado. Mas a verdade é que, em relação ao colonialismo e em relação à descolonização, a culpa é mais repartida do que se julga. Todos os indivíduos que estiveram com o Salazar não têm culpa da descolonização e da guerra? Todos os indivíduos que lhe bateram palmas, que lhe deram apoio, não têm? Aqueles que depois disseram que sempre foram o que nunca não tinham sido, não têm culpa nenhuma? É evidente que a culpa é muito mais partilhada do que se julga. Até há uma teoria indiana que diz que todos somos culpados de tudo. Acho um bocado excessivo, mas a verdade é que, no fundo disto, há alguma verdade. Uma vez, um velho amigo, colega meu de Lourenço Marques, avô do Francisco Louçã, um grande resistente, entrou-me pelo escritório adentro e disse-me assim "Eu quero ser preso." "O senhor quer o quê?", disse-lhe eu. "Quero ser preso, você ouviu muito bem." "Mas quer ser preso porquê, homem?", insisti. "Quero ser preso porque se eu estou em liberdade com um regime como este, é porque não fiz aquilo que devia, não resisti aquilo que devia ter resistido". E a culpa do que se passou depois, deste distanciamento? Nós não podemos apagar os traumas que a história forma. No momento da descolonização, havia dois traumas. Do lado de África, havia o trauma do ressentimento da era colonial. Houve escravatura, houve trabalho forçado, houve tudo isso, e isso criou um fundo de ressentimento, e esse fundo de ressentimento ainda existe. Nós ainda somos o indivíduo que fez isso. Mas depois os nossos retornados acabaram por ter que se vir embora, perderem os bens, os empregos, afectividades, relações, sonhos, esperanças… e vieram sem nada, com as mãos vazias. Não queria que da parte dessa gente, dos familiares deles, dos amigos deles, não houvesse também um fundo de ressentimento contra a África? É evidente que há um duplo ressentimento, que não é fácil de superar. Mas, por exemplo, a Commonwealth não é um modelo interessante? A Commonwealth teve o génio da antecipação. Quero dizer, foram os primeiros. A Inglaterra foi a primeira a perceber que não podia continuar na Índia, sobretudo na grande Índia, para lá de um certo momento, e criou a Common- wealth, mas a Commonwealth é uma fachada. A rainha da Inglaterra é a rainha daqueles países todos, mas não manda nada. É um símbolo, muito bem, mas é uma habilidade, uma habilidade a que eu tiro o meu chapéu, porque permitiu, apesar de tudo, desinflamar o drama da descolonização. Apesar de tudo, a Commonwealth, e vemos isso em Moçambique, acaba também por ter algum papel de influência económica, por exemplo, de congregar os esforços de comunidades. Isso é uma questão de proximidade. Moçambique está encostada a um grande país, que é a África do Sul. Se em vez de ser inglês fosse chinês, era a mesma coisa. É o encosto, é mais a proximidade geográfica. O relacionamento que vai havendo com as ex-colónias não se deve mais a aproximações pessoais do que a estratégias institucionais? Não há, por exemplo, memória de convocação de um conselho de ministros especial sobre África. Não seria importante? Claro que seria. Mas não se esqueça que, se neste momento lamentamos a falta dessas reuniões, eu lamentei-as muito mais nos governos de que fiz parte durante o processo de descolonização. Nunca o problema foi discutido em conselho de ministros. Nunca. Era discutido no MFA, no Conselho da Revolução, era discutido no Conselho de Estado, era discutido na comissão de descolonização... No Conselho de Ministros nunca foi discutido. África continua a ter um grave problema de repartição social do desenvolvimento. E isto, é evidente que pode ser justificado pelas condições objectivas do passado recente, mas há que fazer alguma coisa para inverter esta lógica. Não é esse o seu entendimento? É evidente. Eu digo-lhe mais não é só África que está a repartir mal. É o mundo inteiro. Os EUA, que são o país mais rico do mundo, têm 40 milhões de pobres. O problema da repartição da riqueza é o problema número um dos modelos económicos e também dos modelos políticos e sociais. Nunca conseguimos isso. É o problema da equação entre a liberdade e a igualdade. Em todo o caso, os países africanos, tirando as críticas que possam ser dirigidas às cúpulas, têm feito um esforço de nivelamento. Quer dizer, há riqueza esporádica e chocante às vezes, mas depois dessa riqueza há um nivelamento, em baixo, superior a muitos países ocidentais. Não há classes médias. É a riqueza e depois a pobreza. E a pobreza, segundo um certo conceito de igualdade. Esse é o problema número um do mundo. Há quem conteste que exista verdadeiramente uma organização de Estado em muitos dos países africanos e, nomeadamente, em alguns de língua portuguesa. Esta questão do Estado, como modelo de organização social e política, pode um elemento de bloqueio do crescimento da economia? O fundamental para o problema do crescimento são os próprios recursos naturais. Quem me dera ter os recursos naturais de Angola em Portugal, ou até os de Moçambique. Angola tem petróleo, tem diamantes, tem ferro, tem manganés, tem ouro... É um país fabuloso. Moçambique não tem estes recursos, mas tem os vales riquíssimos. Tem o vale do Zambeze, que é um Nilo, tem carvão, tem energia. Pode fornecer energia no futuro a toda a África Austral. Quando houver uma solução para explorar estes recursos - e era aí que nós podíamos ter um papel - serão países que vão crescer. Mas crescer é uma coisa, desenvolver é outra. Desenvolver é crescer com justiça, com repartição dos bens. Recentemente, os G8 decidiram perdoar a dívida de África. Esse é o caminho para ajudar África? Têm-se experimentado várias vias. Primeiro, enviar dinheiro. O problema da dívida é esse. Outro, é enviar tecnologia. Mas África não está ainda muito preparada para receber tecnologia. Outro é enviar investimento. Eu acho que têm que se conjugar as três coisas. Alguma ajuda económica sempre que é necessário, sobretudo em situações de calamidade, e de enviar sem a preocupação do pagamento, porque África ainda não está em condições de pagar as dívidas que vai acumulando. Nenhum país estava à espera de receber o dinheiro do seu próprio crédito. Segundo, alguma tecnologia, uma vez que a modernidade implica isso, impõe isso. Mas, sobretudo, investimento. Por uma razão simples. Se for dinheiro, pode haver o desvio desse dinheiro para outras finalidades que não aquela a que se destina. Se vai tecnologia, pode não haver receptividade suficiente para lidar com essa tecnologia e tirar dela a rentabilidade suficiente. Se for investimento, acompanhado da tecnologia necessária, é a solução ideal. É ir explorar com um espírito construtivo, não como antigamente de ir lá "ordenhar a teta". Destes 30 anos de independências, o que mais o marcou? O que me marcou foi a noção de perda de tempo. Porque eu, durante muitos anos, enquanto não começou a guerra em Moçambique, em Angola, na Guiné, defendia uma solução comunitária para a África portuguesa. Eu tinha a percepção de que não era uma comunidade para durar até à eternidade. O meu ponto de vista é que se tratava de uma solução que permitia que, quando houvesse que cortar o cordão umbilical, se cortasse sem dor. Tenho a certeza absoluta de que tinha sido possível, inclusivamente com o Brasil. E defendi isso em textos, uma solução comunitária. Mas depois começou a guerra e eu disse "já não vale a pena. Agora o melhor é a independência e já não se fala mais nisso". É hoje um homem de consciência tranquila quanto à descolonização? Fui o único político português que negociou e assinou todos os acordos da descolonização. Vivi-os por dentro. Todas as tragédias, dramas, etc. E uma das coisas que eu digo é isto responsabilidades, tenho que ter. Pelas funções que exerci, é evidente que teria sempre que ter. Culpas: zero. Nada. Não me pesa a consciência de ter feito alguma coisa com a consciência de que estava errada e que, apesar de tudo, não a corrigi. Ah, isso não. Posso garantir. Tenho a consciência tranquila. E mais. Esperei 30 anos para dizer algumas verdades. Um livro que vou publicar sobre essa matéria não é um livro justificativo, nem é uma autodefesa. Nada disso. Mas, esperei 30 anos para dizer algumas verdades que ilibam, em meu entender, a minha imagem relativamente às críticas de muita gente. E esperei 30 anos porquê? Porque, tal como eu digo, a História serve-se fria. E havia muitas instituições e até muitas pessoas que deviam ser salvaguardadas de algumas verdades que eu lá refiro. * director da RDP África Recomendo também este site: http://ultramar.terraweb.biz/Noticia_RTP_AGuerra_JoaquimFurtado_16OUT2007.htm |
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