Rui Ramos
Este estudo tem como objecto as linguagens utilizadas em Portugal para conceber o fenomeno da ocupação de territorios ultramarinos nos séculos XIX e XX. O seu ponto de partida esta na frequência com que os entusiastas do dominio português em Africa citaram 0 caso do Brasil para afiangar os seus projectos africanos. Segun-
do um deles, em 1877, o objectivo era "fazer do nosso vasto império africano um novo Brasil de urn novo Portugal” 1 Porque é que nunca se utilizou a ideia de uma “nova India” para recomendar o ”império africano”? Simplesmente porque o Estado da India andava entao reduzido a um negocio modesto, enquanto o Brasil era grande e próspero? De facto, a concepção do "império africano” como um ”novo Brasil", em vez de uma ”nova India, pressupunha uma certa noção do que os portugueses haviam feito no Brasil e na India e do que precisavam fazer em Africa. Isso mesmo se deduz do modo como, em 1980, um dos mais categorizados estudiosos do ultramar portugués, Orlando Ribeiro, explicou o ”fracasso da colonizagao de Angola" através das diferengas entra essa colonizagéo e a colonizagao do Brasil?
No presente estudo, procuro explicar esta invocagao do Brasil no seguimento do que escrevi sobre a critica as ”descobertas e conquistas” em Mousinho da Silveira, Alexandre Herculano, Oliveira Martins e Antero de Quental. Nesse outro estudo, defendi que a condenação do passado ultramarino por essas personalidades fazia sentido no contexto da cultura do patriotismo civico, um dos ingredientes principais da monarquia constitucional portuguesa no século XIX. Na base desta cultura, estava a tradigção do republicanismo classico europeu, que via a solugao para o problema do governo no estabelecimento de uma comunidade igualitaria, unida pelo civismo, fixa num territorio, e com um modo de vida estavel, preferencialmente agrario. Como argumentei no referido estudo, os autores atras mencionados partilhavam destes principios e por isso deram prioridade a ”colonização interna”,o povoamento e ocupação do Portugal europeuu‘ Neste estudo, vou argumentar que, no quadro desta cultura civica, 0 Brasil, por contraste corn a India, pode ser repensado como um prolongamento ultramarino desta ”colonizag5o interna”. A oposição entre a India e o Brasil sustentou a distinção entre dois tipos de expansao ultramarina — uma expansao militar e aristocratica, e outra expansao pacifica e democratica. Esta dicotomia serviu de fundamento aos juizos de valor sobre 0 passado ultramarino e afectou o modo como foi pensado o destino dos dominios africanos.
A ”causa perdida" da India e a "nova patria portuguesa" do Brasil Nos meados do século XIX, a defesa do padroado portugués do Oriente contra asintromissoes papais, supostamente apoiadas pela companhia inglesa das Indias,suscitou um novo interesse pela historia do Estado da India. Alexandre Herculano,que sempre condenara o império oriental como uma das causas da decadéncia nacional, declarava-se agora disposto a combater "pe1os vestigios do sangue de nossos avos esparzido no Oriente”, incluindo as ”prerrogativas temporais do Padroado”. 5 Foi entao que Iosé Heliodoro da Cunha Rivara, secretario do governador do Estado da India em 1855, se lancou a criar, com 0 seu Arquivo Portugués-Oriental(1857-1876), 0 equivalente asiatico dos Portugaliae Monumenta Historica (1856). Rivara acabaria, em 1858, por ser oficialmente incurnbido de continuar a cronica oficial da India, negligenciada desde o século XVIII. Em Lisboa, entretanto, a Academia Real das Ciéncias inaugurara a Colecgfio de Monumentos Inéditos para a Histéria das Conquistas dos Portugueses (1855), em que predominou a matéria oriental. 6
No entanto, esta publicação de documentos, que prosseguiu animada pelo centenario de 1898, nunca contrariou a costumeira apreciagao fundamentalmente negativa sobre os efeitos da "conquista da India”.7 O modo como o tema é tratado no Diciomirio Popular dirigido por Manuel Pinheiro Chagas em 1876 é revelador.8 O que se admirava na India eram as proezas militares, a mernoria do ”vastissimo império" imaginado por Afonso de Albuquerque, ”o vulto mais brilhante dos nossos anais", comparado a Alexandre e a Napoleao num ”simile justissimo”. Albuquerque fora ”bom e justo” para os indianos e recomendara aos seus subordinados ”o respeito pelas crencas religiosas dos naturais”. Os seus sucessores, porém, "não souberam como ele conciliar a estima e a simpatia dos indios”. O dominio portugués consistiu, por isso, num puro exercicio de violéncia. so se "sustentava a força de continuas e ininterruptas vitorias”. Mal a ”corrupcao” fez vacilar o poder militar, ”foi tudo a pior". Depois, ingleses e holandeses ”cornecararn a juntar—se aos indigenas para demolir o novo império”. O Estado da India chegou assirn ao século XIX reduzido a "uma lingua de terra de pouco valor comercial e agricola, conservado como reliquia das nossas velhas glorias, e que a tolerancia inglesa nos deixa". Ocontraste com a India inglesa, ”do tarnanho de toda a Europa ocidental", era por demais deprimente. A razao da diferente fortuna era tarnbém claraz os ingleses tinham seguido uma politica "liberal", procurando "conquistar a afeicao dos indigenas em vez de os assustar”.
A sorte do Estado da India foi abordada por Antero de Quental num comentario ao livro de Frederico Diniz Ayala, Goa Antiga e Moderna (1888). Da sua leitura, Antero concluia que ”desde que nao quisemos nem podemos assimilar o elemento indigena na India, pela forga das coisas, ele, que era a maioria, tinha de acabar por nos expu1sar”.9 O sentido desta ”assimilagao” é indirectamente esclarecido por Antero quando lamenta, na mesma ocasiéo, que os governos liberais nunca tivessem cornpreendido ”o movimento politico naturalista chamado das nacionalidades,que é umas feicoes notaveis do nosso século". (sublinhados meus) Assimilar signi-
ficava, portanto, integrar numa nacao, nacionalizar. Ora, essa tarefa tinha sido comprometida pelo aspecto militar e intolerante da acgao portuguesa na Asia, aspecto sublinhado por Antero na sua célebre conferéncia de 1871 sobre as "Causas da Decadéncia dos Povos Peninsulares”.
Por tudo isto, a lndia era, segundo Antero, ”uma causa perdida e que o tinha
de ser”.1° O contraste com o Brasil nao podia ser maior. N0 fim do século XIX, espe-
rava-se que, seguindo a logica da ”transferéncia do império”, a inevitavel decaden-
cia da Europa fosse seguida pela hegemonia mundial das Américas, com o Brasil a
assumir o papel de grande poténcia civilizadora no século XX.“ As razoes da dife-
renga entre a decadéncia do Estado da lndia e o sucesso do Brasil foram explicadas
na primeira grande obra colectiva de historiografia dos descobrimentos, precisa-
mente a Histéria da Colonizagfio Portuguesa no Brasil (1921-1926), dirigida por Carlos
Malheiro Dias e financiada pela poderosa comunidade de capitalistas portugueses
do Brasil.” Achave da fortuna brasileira aparecia logo no titulo da obra: "coloniza-
géio”. O mote da obra era dado pela oposigao entre ”os processos inglés e portu-
gués” de colonizagao na América. A primeira diferenga respeitava a natureza dos
colonos. Os ingleses e escoceses que haviam desembarcado na América do Norte
eram ”aventureiros”, que “nae sabiam e nao queriam dedicar-se ao cultivo das ter-
ras". Pelo contrario, os portugueses chegados antes da descoberta dos diamantes e
do ouro eram auténticos colonos, lavradores, preparados para se converterem em
”fundadores da patria”: "Heroicidade e amor, néio uma cobiga sordida, criaram 0
Brasi1”. Em segundo lugar, os ingleses adoptaram "um processo colonizador que
recusava a encorporagao do aborigene e preferia extermina-lo a civiliza-lo”. Ora os
portugueses, nao so néo ”dispunham de recursos para executar o exterminio”,
como ”nem o premeditaram”. A0 contrario, seguiram uma ”politica de concilia-
gao”. Por isso, a nova nagao brasileira pode fundar-se ”nas trés ragas ja unidas e
mescladas: a portuguesa, a aborigene e a africana”. Carlos Malheiro Dias sublinha-
va que nao tinha havido aqui mera pieguice filantropica: "A politica altruista de
Portugal correspondia a uma verdadeira razao de estado, derivava das condigoes
em que o empreedimento colonizar se realizava, com o parco material de uma po-
pulagao exigua”. De facto, "so uma politica colonizadora que encorporasse o au-
toctone e dele fizesse, melhorado pela mestigagem, urn colaborador, poderia haver
conservado a integridade de dominio tao colossal”.13
Assim, 0 estabelecimento portugués no Brasil estivera isento, segundo Carlos
Malheiro Dias, da ”politica imperialista” adoptada na Asia e em Marrocos, onde se
haviam seguido os ”processos sanguinarios do oriente". Enquanto na india houve—
ra ”conquista", no Brasil houvera ”colonização”. ”Colonização” conservava, aqui,
o seu significado antigo, ou "romano", como dizia Malheiro Dias: por um lado,
"povoamento”, estabelecimento de "colonos" numa terra nova; por outro lado,
aculturagao dos indigenas. Apartir daqui, os autores da H istéria da Colonização Por-
tuguesa do Brasil desenvolvem uma curiosa analogia entre a ocupagao do Brasil no
século XVI e o povoamento de Portugal na Idade Média. Os dois primeiros volu-
mes da obra ainda estavam dedicados sobretudo a questao do descobrimento e das
navegagoes ao longo do litoral. Mas o terceiro volume tinha um titulo que era um
programa: ”Colonizag5o: A Idade Média Brasileira (1521-1580)”. De facto, o que
Malheiro Dias e os seus colaboradores fizeram, sob semelhante titulo, foi projectar
na América o mundo ideal imaginado por Alexandre Herculano para 0 Portugaleuropeu a partir da historia medieval: uma sociedade rural de lavradores livres, a
caminho da autonomia politica. Na Europa, esse ”Portugal rural e municipalista da
idade média, 0 das energias populares, o da fé candida e bérbara”, havia sido arrui-
nado pela conquista do oriente. Mas enquanto o Portugal europeu se afundava na
India, surgia no Brasil ”um novo e imperecivel império, que sobreviveria aos sécu-
los, e para onde os desterrados haviam transportado, com os arados e as lancas,
aquela robusta concepcao de patria batalhadora e rural”. Em suma, o Brasil era a re-
encarnagao, nos tropicos, do Portugal medieval. A preservação brasileira das anti-
gas virtudes portuguesas era um dos topicos de outro colaborador da Histéria da
Colonização Portuguesa, o medievalista Paulo Meréa. Meréa sublinhava que, embo-
ra em Portugal ja então se sentisse os efeitos da centralizagao monarquica classica-
mente denunciada por Alexandre Herculano, D. I050 III ainda adoptara para o Bra-
sil, tal como nas ilhas do Atlantico, a ”politica tradicional” das donatorias.“
Esta versao tropical do ruralismo liberal de Alexandre Herculano nao ficou
circunscrita a Histéria dirigida por Carlos Malheiro Dias. Na década de 1940, Gil-
berto Freyre, o mais célebre dos cientistas sociais brasileiros, sublinhava, na mesma
linha de interpretacao, que, felizmente, ”o elemento humano basico da colonização
agraria do Brasil” haviam sido os ”portugueses cle boa e antiga linhagem rural”, os
”chamados portugueses velhos”, acompanhados pelos "camponeses analfabe-
tos”, que mantinham o ”tradicional amor da agricultura”, o ”amor das arvores e da
vida rural". Os outros portugueses, os "inimigos da agricultura”, os ”judeus urba-
nos”, tinham desempenhado um papel meramente complementar, ajudando, com
o seu jeito para o comércio, a circulacao dos produtos da agricultura. Do estabeleci-
mento no Brasil de uma populagao rural, proviera uma nova ”patria", isto é, cria-
ra-se aquela relacao intima, emocional, completa, entre os habitantes e a terra. Essa
relagao preparara a ”autonomia”, de modo que 0 Brasil passou naturalmente de
”colonia”, ainda submetida a metropole, a uma ”patria” independente.“
Em suma, a India e o Brasil ofereciam o contraste entre, respectivamente, uma
expansao guerreira, assente nacoacgao dos indigenas, e uma expansao baseada no
povoamento rural e na assimilacao. De um lado, fundara-se um dominio militar, sempre ressentido pelos povos a ele sujeitos, e que por isso so durara enquanto houvera forga. Do outro lado, haviam-se lancado as bases de uma comunidade autonoma, uma réplica da comunidade de origem dos colonizadores, onde os povos indigenas se haviam também integrado. O divorcio entre Portugal e a India, apesar da manutencao do Estado da India, era fatal. Pelo contrario, entre Portugal e o Brasil havia, apesar da independéncia brasileira, uma continuidade organica. Alias, na Historia de Malheiro Dias, o historiador brasileiro Oliveira Lima explicava que a nação portuguesa do Brasil se comecara a encarninhar para a independéncia, não contra Portugal, mas durante o dominio espanhol (1580-1640), isto é, contra Espanha. Assim, a origem da autonomia brasileira estava, paradoxalmente, no patriotismo portugués.“ Na portada da obra, declarara-se, significativamente, que ”o Brasil nao chegou a ser uma colonia. Foi logo nação, foi logo patria: a nova patria portuguesa”. Dai o ”sentimento nacionalista da colonizacao” de que falava Malheiro Dias. Nãp era um ponto de vista novo. Alberto de Oliveira, o principal teórico do "nacionalismo" literario em 1894, ja tinha visto no Brasil 0 ”testamenteiro da nossa riqueza espiritual”, nao apenas um novo Portugal, mas um Portugal-maior."
A prioridade da ”colonização interna” na cultura do patriotismo civico do século XIX, e a ideia das duas expansoes. A oposiçaoo entre a India e oBrasil, pressuposta pela História da Colonização Portuguesa do Brasil, expressava a sabedoria corrente entre os literatos e eruditos portugueses da segunda metade do século XIX. A historia da India era uma historia de guerras no mar e cercos a cidades costeiras, a de um ”império maritime”. Em 1877, o historiador Costa Lobo notava que ”a intenção dos portugueses nunca foi povoar a India”. Em 1885, o Conde de’Ficalho,resumia assim a saga do império oriental: "Os portugueses saquearam a India: a India corrompeu-os". Pelo contrario, a historia do Brasil era a historia da emergéncia de uma nagao em "terras fertilissimas”, proprias para a ”colonização”. Por isso, a conquista da India era mesmo deplorada, na medida em que, no século XVI, distraira os portugueses da sua mais gloriosa obra, a colonizagao do Brasil.“
Qual o sentido deste profundo contraste entre o dominio militar da India e o povoamento rural do Brasil? Não era uma oposigao inédita. Ia em 1608, nos Did10-
gos do Sitio de Lisboa, Luis Mendes de Vasconcelos estabelecera a antitese muito cla-
ramente. Alndia era uma ”milicia" que consumia gente ”continuamente”. O Brasil
e as ilhas do Atlantico, pelo contrario, tinham-se "povoad0" e abasteciam 0 reino
de agucar e pao: “e assim destas terras recebemos o beneficio que a conquista da
India nos nega”. De facto, a ”conquista da India cai no género deleitoso”, uma glo-
ria unicamente militar, de tal modo que "fora mais util nao se intentar a conquista
da India”.19 Por outro lado, a dicotomia entre ”conquista" e ”coloniza<;ao” nao era
um tema especificamente portugués. Hegel, por exemplo, utilizou—a para explicar
a aparente diferenga de fortuna entre a América do norte e a do sul. Depois de citar
a divergéncia religiosa (a América do norte era protestante, e a do sul era catolica),
Hegel acrescentava que ”outra diferença é que a América do sul foi conquistada, en-
quanto a do nortefoi colonizada. Os espanhois apoderaram-se da América do sul para
dominar e fazer—se ricos, quer por meio de cargos publicos, quer por meio de exac-
g6es".2° (sublinhado meu) Assim, o Brasil era reduzido a uma ”conquista" por con-
traste com a ”coloniza<;ao” norte-americana — era o contrario da tese de Carlos
Malheiro Dias, mas obedecia a mesma logica.
Para compreendermos o contexto ideologico em que, nos fins do século XIX e
principios do século XX, a ”conquista” e a ”colonização" foram diversamente valo-
rizadas, teremos de regressar a uma das outras referéncias da fantasia medieval da
História da Colonização Portuguesa no Brasil: Oliveira Martins.“ Martins não foi a ins-
piragao directa dessa Historia, mas usou as mesmas classificagoes historicas. Nos
seus escritos sobre a expansao portuguesa, Oliveira Martins distinguira trés tipos
de estabelecimentos ultramarinos: as ”feitorias" do Oriente, as ”fazendas” de
Africa e do Brasil e as ”povoacoes" das ilhas atlanticas. Como se , Martins, tal
como Carlos Malheiro Dias, usava também a distincao entre povoamento e outras
formas de dominio para perceber a expansao ultramarina. Ao contrario dos cola-
boradores da Historia da Colonização, porém, Martins considerava que o Brasil, em
pleno século XIX, ainda nao arrancara da fase de ”fazenda” ou ”plantagao”, para se
tornar uma nacao completa. O Brasil sofria de uma populacao demasiado hetero-
génea (por causa da emigração africana, alema e chinesa) e da monocultura do
café. Ou seja, a equipa de Carlos Malheiro Dias dava como adquirido aquilo que
Oliveira Martins ainda considerava um objectivo a alcancar. Os conselhos de Mar-
tins aos brasileiros partiam do principio de que ”so uma populacao homogénea
fixa, mais ou menos produtora de tudo o que é essencial a vida, pode constituir ver-
dadeiramente uma nagao”. Ora, estas recomendacoes eram semelhantes as que fez
aos portugueses no seu projecto de Fomento Rural de 1887.22
Já indicamos, noutro estudo sobre este mesmo tema, como o programa de Fo-
mento Rural expressava um projecto politico, o de criar em Portugal uma comuni-
dade democratica fundada numa massa de lavradores proprietarios. O ponto de
partida de Oliveira Martins era a ideia de que a liberdade politica so era possivel
entre iguais. Em Portugal, esta comunidade igualitaria so poderia ser realizada se a
populacao fosse transformada numa massa de lavradores prosperos. Em Politica e
Economia Nacional, Martins citou Aristoteles, Maquiavel e Montesquieu,” as prin-
cipais referéncias da tradicao europeia do republicanismo classico, para provar
que o ideal do cidadao de um estado livre correspondia ao ”lavrador soldado", ao
chefe de familia na posse dos meios necessarios para levar uma vida independen-
te.“ Sem este tipo de populacao, a democracia era impossivel. Ganhoes analfabetos
e operarios miseraveis nao podiam constituir a base de uma cidadania. O ”pilar da
liberdade” estava numa classe de produtores livres, que Oliveira Martins desejava
proteger da concorréncia e incertezas da economia internacional.”
Martins ecoava aqui as preocupacoes civicas dos politicos liberais do século
XIX. Como se apercebeu Iohn Stuart Mill, os liberais acarinharam sempre os peque-
nos proprietarios e lavradores, em que reconhecerarn a base da estabilidade
social.“ Alexandre Herculano imaginou Portugal como um pais de pequenas alde-
ias, povoadas por lavradores patrioticos e padres de espirito aberto. Era essa a filo-
sofia da novela O Pdroco de Aldeia, publicada pela primeira vez em O Panorama em
1843, e que permeou as novelas de Julio Diniz, de grande voga em 1868-1871. Tam-
bém Antonio Feliciano de Castilho, em 1850, elegera os campos como 0 sitio em que
os bandos politicos e as classes se podiam desfazer numa vida mediana e na comu-
nhao com a natureza, como os ”Romanos da Republica, essa gente exemplar". Por
isso, concluia Castilho: ”para Portugal nao ha ja hoje outra ocupacao possivel. A
conquista? Nao. Os descobrimentos? N50. As minas? N50. A Industria? Nao. As
nossas conquistas, os nossos descobrimentos, as nossas minas, a nossa industria, é
0 solo da Patria. E o unico mister para que ainda nos restam bracos, instrumentos,
forcas, e liberdade. E 0 unico lavor, em que nenhumas invejas estrangeiras perige-
sas hao-de vir perturbar-nos. O ceptro de D. Afonso Henriques e o de D. Manuel,
perderam-se; 0 de D. Iosé quebrou-se. Ceptro, e nao escarneo, so pode ser hoje no
Trono Portugués, o de D. Sancho I e o de D. Diniz".27
Os reis "povoadores” da primeira dinastia haviam também de servir de pa-
tronos ao célebre projecto de fomento rural apresentado por Oliveira Martins ao
parlamento em 1887. Depois de referir o crescimento demografico entre os séculos
XII e XV, Martins esclarecia: ”Como se aumentou assim a populagao? Colonizando.
Os nossos reis da primeira dinastia foram os construtores das bases do nosso edifi-
cio étnico”. (sublinhado meu) Segundo Martins, Portugal desenvolvera-se através
de um processo de ”coloniza<;ao”, com a descida da populagao crista desde o norte
até as terras meridionais conquistadas aos Mouros. No século XVI, porém, 0 impé-
rio ultramarino desviara essa corrente de emigragao para a India e 0 Brasil. O sul do
reino ficou abandonado, nas maos de grandes latifundiarios que, por negligéncia
mas sobretudo por falta de mao de obra, deixaram sobreviver as charnecas. Entre-
tanto, 0 império ultramarino acabara, mas a distorgao permanecia: a populagao do
norte continuava air para o Brasil, enquanto os imensos desertos do sul aguarda-
vam cultivadores. Assim, um dos objectivos que Martins atribuiu a um sistema de
”protec<;ao do trabalho nacional" foi a ”colonizagao” do sul do reino. Obras hidrau-
licas regariam as planicies aridas. Famflias de cultivadores do norte, de "colonos",
seriam atraidas para o sul. Os latifundiarios alentejanos seriam encorajados a ar-
rendar pequenos casais. Entretanto, a crescente produgao de cereais e outros ali-
mentos tornariam o pais auto-suficiente. A nova populagao rural abriria um novo
mercado para a industria. Tudo isto se faria debaixo da asa carinhosa do estado. O
estado defenderia os cerealicultores e indutriais com uma pauta alfandegaria in-
transponivel, investiria em infraestruturas, dispensaria crédito para os colonos e
regularia a transmissao de propriedade enfitéutica, de modo a salvaguardar os di-
reitos dos cultivadores. O sul era a nova fronteira, o horizonte de uma verdadeira
”colonizag5o naciona1": ”a colonizagao interna”. O objectivo de Martins era tornar
Portugal numa ”nagao-colmeia”, ”uma nagao vivendo dos seus proprios recursos
naturais”, um modelo que Martins contrastava com 0 tipo de nagoes "coloniais ou
comerciais" como a Gra-Bretanha e a Holanda. Tal como Castilho em 1850, Martins
convencera-se de que Portugal nunca seria outra vez uma poténcia colonial. Em
1873, em Portugal e 0 Social ismo, Martins apontara o destino dos portugueses: torna-
rem-se ”uma nagao de proprietarios rurais": "(. . .) com Proudhon entendo que a
justa distribuição da propriedade coalharia um territorio de pequenas casas, cada
qual com a sua famflia semi-camponesa, semi-cidada, em volta uma courela e um
jardim, e por toda a parte 0 bem estar que provem da liberdade, da igualdade e do
trabalho”.28
Martins articulava assim as velhas e novas aspiragoes da élite liberal portuguesa.
A esquerda liberal desejara sempre encher as aridas planicies do Alentejo com "cida-
daos honestos”, tornar a liberdade "real" através de reforma agréria, obras pfiblicas e
acesso ao crédito.” Adireita liberal, por sua vez, descobria, no fim do século XD(, que a
”forga conservadora do ruralismo” constituia 0 ”agente ponderador que equilibra a
vida historica dos povos e lhe mantem a continuidade através das metamorfoses im-
postas pela misteriosa energia evolutiva”.3° Por isso, em 1898, em plena quadra da co-
memoragao da viagem de Vasco da Gama, a grande imprensa de Lisboa lembrava que
0 ”comércio da india foi a nossa ruina" e recordava o Velho do Restelof“ Quando se fa-
lava de ”co1onizagao”, era do Alentejo que se tratava.”
Este projecto de "colonizacao interna” nao correspondia apenas as tendén
cias dominantes na cultura politica portuguesa da segunda metade do século XIX.
Os radicais ingleses ligados ao lider liberal Ioseph Chamberlain, por exemplo, ti-
nham desenvolvido uma visao politica muito semelhante a de Oliveira Martins.
Também eles defendiam 0 estabelecimento em Inglaterra de uma sociedade demo-
cratica de pequenos lavradores independentes, que esperavam ressuscitar contra
as devastacoes do industrialismo. Dadas as diferencas entre Portugal e a Inglater-
ra, a analogia entre os projectos de Chamberlain e Martins reforca a hipotese de o
"ruralismo" dos planos de Martins nao derivar de uma mera consagracao das con-
dicoes existentes em Portugal, mas de um projecto politico fundado numa comum
cultura europeia de patriotismo civico. De facto, o projecto de estabelecer uma de-
mocracia de pequenos produtores independentes uniu varios movimentos politi-
cos na Europa e na America do Norte na viragem do século XIX para o século XX.
Por detras destes programas de reforma social fundada no regresso a terra e na dis-
seminacao da sua propriedade estava a ideia de que todos os conflitos regionais,
sociais e culturais podiam ser ultrapassados se a maior parte da populacao se inte-
grasse numa comunidade de pequenos produtores, preferencialmente lavradores
proprietarios. Nunca, até ao século XX, foi claro para todos que o destino da Europa
estivesse nas fabricas, lojas e escritorios das grandes cidades. No fim do século XIX,
a propriedade camponesa e a sua relacao com a vida colectiva converteram num to-
pico favorito dos novos cientistas sociais, nao apenas por curiosidade arqueologica
mas com um sentido normativo. Era o caso dos discipulos de Frederic Le Play, que
em 1909-1910 entraram em Portugal com o patrocinio de D. Manuel para descobrir
o modelo de familia ideal entre os camponeses do noroeste do pais.”
A utopia da ”colonizacao interna” continha em si a repulsa da ideia de expan-
sao ultramarina, tal como é claro em Antonio Sérgio, um dos herdeiros de Oliveira
Martins no principio do século XX. Em 1924, Sergio opos ”dois pensamentos politi-
cos nacionais”: um correspondia a ”escola da precedéncia da colonizacao metropo-
litana (em 1957, Sérgio emendou para "do trabalho agricola ou manufactureiro")";
o outro, a "escola da precedéncia da actividade do transporte, do trafico, da explo-
ragao comercial dos produtos do ultramar”.3“ Sérgio aproveitava aqui uma ideia de
Oliveira Martins, que, nos Filhos de D. I050 I, opusera a politica representada pelo
infante D. Pedro a politica do infante D. Henrique: a primeira era a do ”bom senso",
da concentragao de esforcos no proprio pais; a segunda era a da ”aventura ultrama-
rina”.35 Na politica de ”transporte", Sérgio distinguia a heranca nefasta de uma
aristocracia guerreira, desviada do trabalho produtivo pela reconquista na Penin-
sula Ibérica. Anobreza portuguesa, ao contrario da aristocracia provincial inglesa,
habituara—se a viver a custa da depredacao contra os mouros e asiaticos, da inquisi-
cao contra os judeus, da exploracao dos escravos negros. Os descobrimentos nao ti-
nham sido mais do que a extensao da rapinagem ao ultramar. Os portugueses nun-
ca haviam desenvolvido uma "Vida norma1”, isto é, a vida baseada no trabalho, na
industria.“ Por detras desta visao, levantava-se também a inspiracao positivista.
Herbert Spencer estabelecera que as sociedades evoluiam ”normalmente" de uma
fase guerreira-predadora para uma fase industrial-pacifica.” A decadéncia dos ibé—
ricos explicava-se pela sua fixacao na fase guerreira-predadora, que os deixara
desadaptados em relagao ao meio ambiente moderno. Os descobrimentos, segun-do Sérgio, eram precisamente o sintoma dessa fixagao portuguesa numa fase ultra-
passada da evolucao humana. Nem 0 aspecto comercial os poderia redimir, visto
que Sérgio considerava a ”traficancia” como uma outra maneira habilidosa de vi-
ver sem trabalhar, semelhante a "cavalaria". O ideal de Sérgio, igual ao de Oliveira
Martins, estava nos “povos de equilibrada fundagao agraria".33
O objectivo de Sérgio era apoiar os projectos do seu amigo Ezequiel de Cam-
pos, colaborador da Seam Nova, ministro da Agricultura, e (segundo Sérgio) testa-
menteiro da proposta de fomento rural de Oliveira Martins. Mas havia de ser com 0
proprio Ezequiel de Campos que Sérgio aprenderia que a preferéncia pela “fixa-
gao” nao excluia a expansao ultramarina. Campos, tal como Oliveira Martins, que-
ria ocupar o territorio metropolitano, através de ”obras de rega e enxugo". Preten-
dia mesmo "reduzir o urbanismo”, proibindo novas construcoes nas cidades e vi-
las. Os portugueses deviam ser incentivados a retirar-se para os campos, para 0 que
seria conveniente ”facultar terra e meios de cultivo a todos os portugueses que de-
sejem ser cultivadores". Quanto ao ultramar, Campos nao considerava "prudente
sonhar planos larguissimos de fomento colonial que nao somos capazes de reali-
zar". Mas, segundo ele, também a expansao ultramarina podia ser concebida den-
tro do espirito ruralista que devia presidir a ocupagao da metrople. Colonizar, para
Ezequiel de Campos, devia consistir em povoar os planaltos angolanos com "culti-
vadores". Outro ”seareiro”, Quirino de Iesus, resumiria o projecto ao escrever que
se tratava de ”colonizar” tanto Portugal, como Angola. A ocupagao do ultramar, se-
gundo os colegas de Antonio Sérgio na Seam Nova, deveria consistir numa “coloni-
zacao agricola”, a unica maneira de ”nacionalizar" as colonias, quer ”enraizando”
a “raga branca” nas ”regioes habitaveis”, isto é, nos planaltos angolanos, quer dan-
do “estimulo aos indigenas para a cultura”. 3° Sérgio acabou por absorver esta ligao
e convenceu-se finalmente de que o dominio do ultramar podia ser também "fixa-
gao”, um prolongamento da "coloniza<;ao interna”, com o estabelecirnento de po-
pulagao em actividades agricolas que lhe permitissem uma vida desafogada e esta-
vel dentro de uma comunidade democratica.
Tinha sido este tipo de expansao ultramarina que Carlos Malheiro Dias e os
seus colaboradores haviam identificado no Brasil. Malheiro Dias caracterizara este
método de colonizagao de duas maneiras: por um lado, como proprio dos povos
pequenos e sem muitos capitais, que so através da fixagao de uma populacao rural
poderiam aspirar a ocupar territorios; por outro lado, como o método ”romano”,
por oposicao a ”concepção fenicia”, favoravel as meras feitorias comerciais.“ O
que, portanto, estivera sempre errado na expansao ultramarina fora o ”espirito
guerreiro” que impedira a ”colonizagao"—— algo que Antero de Quental jé sugerira
em 1871.42 Assim, a redencao do ultramar estava, simplesmente, na aplicagao ai do
modelo da ”colonizac€1ointerna". Este recurso, de resto, ja havia sido sugerido em
1905 pelo goés Francisco Fernandes para salvar a lndia. Fernandes atribuia a erni—
gracao dos rapazes educados de Goa para a lndia inglesa a dissolucao das familias
e a expansao dos latiffindios. Para fixar populagao, congeminou uma adaptagao in-
diana do projecto de Fomento Rural apresentado por Oliveira Martins em 1887.
Através da enfiteuse e da instituigao dos casais defamilia, criar-se-ia uma classe de
pequenos proprietarios em Goa. Um pouco mais de autonomia municipal desper-tar-lhes-ia o civismo. Estariam assim criadas as condigoes para a emergéncia de
uma nacao portuguesa na lndia segundo o "rnétodo romano".‘*3
Foi, portanto, no quadro da cultura de patriotismo civico, com a sua preferen-
cia pela colonizacao interna, que o contraste entre as ”feitorias-fortalezas” da costa
de Africa e da lndia, por um lado, e 0 ”povoamento" das ilhas atlanticas e do Brasil,
por outro, se popularizou e converteu no factor explicativo mais favorecido pelos
historiadores da expanséo que se formaram na primeira metade do século XX, a
volta dos grandes empreendimentos colectivos desta época, como a Historia da Co-
lonizagao Portaguesa do Brasil (1922), a H istoria de Portugal (1928) ou a Historia da
Expansao Portaguesa no Mundo (1937). Assim, Manuel Murias, um dos coordenado-
res da Historia da Expansao Portugaesa no Mundo, concebeu a existéncia de duas ”es-
colas" de expansao, logo estabelecidas no século XV: uma desenvolvida nas ”pra-
gas da Africa e feitorias africanas”, e outra apurada durante "a povoacao das ilhas
do Atlantico”. A partir daqui, a expansao portuguesa produzira ”dois irnpérios”:
um, no Oriente, ”de base militar e comercia1”, e 0 outro, no Brasil, ”de base agraria
como nas terras conquistadas na Peninsula aos mouros e nas ilhas de novo achadas
e povoadas”.4‘* Na Historia de Portugal dirigida por Damiao Peres, Iaime Cortesao,
que alias tarnbém colaborara com Carlos Malheiro Dias no projecto brasileiro, usa-
ra ja esta dicotomia para explicar os diferentes destinos das possessoes portugue-
sas no século XVII. A tendéncia geral tinha sido, nesse século, para a decadéncia,
mas decadéncia sobretudo ”naquelas sociedades coloniais, onde, em vez de procu-
rarem estabelecer pela agricultura e a industria uma solida e sa economia, os Portu-
gueses se deram quase exclusivamente a exploracao do trabalho alheio pela violen-
cia e ao corrosivo comércio da escravatura". Era esse o caso da lndia e da Africa.
Nao era, porém, o caso do Brasil. Ai, num ”ambiente de luta e de trabalho”, "depa-
rasse-nos o mesrno portugués do fim da Idade Média”. ‘*5
Também o mais importante e reputado historiador da expansao portuguesa
da segunda metade do século XX, Vitorino Magalhées Godinho, fez desta oposigao
um dos fundarnentos dos seus juizos sobre a expansao. Desde 1945, Godinho sepa-
rou duas politicas da expansao: a pilhagem nobiliarquica, tal como ela teria sido
praticada em Marrocos e na lndia, e ”uma politica de descobertas geograficas, po-
voamento e contactos pacificos”. O apogeu desta ultima ter-se—ia dado entre 1440 a
1448, sob a regéncia do infante D. Pedro, a quem se deveria ”o incremento da colo-
nizacao e exploracao dos Agores, bem como o avanco mais consideravel nos deso-
brimentos geogréficos e o estabelecimeno de relacoes comerciais nas costas do
Saara e da Guiné”. A ”colonizacao”, no sentido definido pelos apologistas da ”co-
lonizacao interna”, permeava as preferéncias de Godinho. Com efeito, Godinho
sublinhava que o estabelecimento portugués em Marrocos falhara no século XV,
nao porque o ”lugar nao se prestava a lavoura", mas sobretudo porque ”os nobres
que iarn a Ceuta pretendiam enriquecer rapidamente e regressar ao reino, de modo
que, em vez de protegerem a colonizagao portuguesa e as aldeias dos mouros, preferiam em frequentes cavalgadas, roubar gado, saquear povoacoes e apresar cativos que
pagavam bons resgates”. Assim, segundo Vitorino Magalhães Godinho, as duas
primeiras ”causas da decadéncia marroquina na segunda metade do século XV e
pequenos proprietarios em Goa. Um pouco mais de autonomia municipal desper-tar-lhes-ia 0 civismo. Estariam assim criadas as condicoes para a emergéncia de
uma nacao portuguesa na lndia segundo o ”método romano”.“3
Foi, portanto, no quadro da cultura de patriotismo civico, com a sua preferen-
cia pela colonizagao interna, que o contraste entre as ”feitorias—fortalezas" da costa
de Africa e da lndia, por um lado, e 0 ”povoamento” das ilhas atlanticas e do Brasil,
por outro, se popularizou e converteu no factor explicativo mais favorecido pelos
historiadores da expansao que se formaram na primeira metade do século XX, a
volta dos grandes empreendimentos colectivos desta época, como a H istéria da C0-
lonizagao Portuguesa do Brasil (1922), a Histéria de Portugal (1928) ou a Histéria da
Expansdo Portuguesa no Mundo (1937). Assim, Manuel Murias, um dos coordenado-
res da H istéria da Expansao Portuguesa no Mundo, concebeu a existéncia de duas "es-
colas" de expansao, logo estabelecidas no século XV: uma desenvolvida nas ”pra—
gas da Africa e feitorias africanas”, e outra apurada durante "a povoacao das ilhas
do Atlantico”. A partir daqui, a expansao portuguesa produzira ”dois impérios”:
urn, no Oriente, ”de base militar e comercial”, e o outro, no Brasil, ”de base agraria
como nas terras conquistadas na Peninsula aos mouros e nas ilhas de novo achadas
e povoadas”.“4
Na História de Portugal dirigida por Damiao Peres, Iaime Cortesao,
que alias também colaborara com Carlos Malheiro Dias no projecto brasileiro, usa-
ra ja esta dicotomia para explicar os diferentes destinos das possessoes portugue—
sas no século XVII. A tendéncia geral tinha sido, nesse século, para a decadéncia,
mas decadência sobretudo ”naquelas sociedades coloniais, onde, em vez de procu-
rarem estabelecer pela agricultura e a industria uma solida e sa economia, os Portu-
gueses se deram quase exclusivamente a exploracao do trabalho alheio pela violén—
cia e ao corrosivo comércio da escravatura”. Era esse 0 caso da lndia e da Africa.
Nao era, porém, o caso do Brasil. Ai, num ”ambiente de luta e de trabalho", ”depa-
rasse-nos 0 mesmo portugués do fim da ldade Média”. 45
Também o mais importante e reputado historiador da expansao portuguesa
da segunda metade do século XX, Vitorino Magalhaes Godinho, fez desta oposigao
um dos fundamentos dos seus juizos sobre a expansao. Desde 1945, Godinho sepa-
rou duas politicas da expansao: a pilhagem nobiliarquica, tal como ela teria sido
praticada em Marrocos e na lndia, e ”uma politica de descobertas geograficas, po-
voamento e contactos pacificos O apogeu desta ultima ter-se-ia dado entre 1440 a
1448, sob a regéncia do infante D. Pedro, a quem se deveria "0 incremento da colo-
nizagao e exploragao dos Acores, bem como o avanco mais consideravel nos deso-
brimentos geograficos e o estabelecimeno de relagoes comerciais nas costas do
Saara e da Guiné”. A ”colonização”, no sentido definido pelos apologistas da ”co—
lonizacao interna”, permeava as preferéncias de Godinho. Com efeito, Godinho
sublinhava que o estabelecimento portugués em Marrocos falhara no século XV,
nao porque o ”lugar nao se prestava :1 lavoura", mas sobretudo porque ”os nobres
que iam a Ceuta pretendiam enriquecer rapidamente e regressar ao reino, de modo
que, em vez de protegerem a colonizagfio portuguesa e as aldeias dos mouros, preferiam, em frequentes cavalgadas, roubar gado, saquear povoacoes e apresar cativos que pagavam bons resgates”. Assim, segundo Vitorino Magalhaes Godinho, as duas
primeiras "causas da decadéncia marroquina na segunda metade do século XV e
“UM NOVO BRASIL DE UM NOVO PORTUGAL” no século XVI” teriam sido: em primeiro lugar, "a auséncia de politica de colonização e de fomento agricola e industrial”; em segundo lugar, ”depredações e consequente despovoamento provocado pela cobica desenfreada dos cavaleiros" — e Godinho acrescentava: ”mesmo fenómeno que no Império oriental” (sublinhados meus).“Ou seja, a expansao portuguesa teria falhado sempre que descambou em razia de cavaleiros irresponsaveis, em simples militarismo, sem a preocupacao de fixar populacao portuguesa e integrar pacificamente as populacoes locais. Esta visaoda expansao era fundamentalmente democratica, em dois sentidos: quer pela sua preferéncia por movimentos populacionais, de massas, quer por uma declarada repugnancia pelos ”fidalgos”.
O historiador brasileiro Oliveira Lima, no iiltimo estudo da Histéria da Colonizagao Portuguesa do Brasil, notava que os fidalgos portugueses estabelecidos no Brasil haviam sido ”dem0cratizad0s pelo ambiente social e naiguns casos pelos cruzamentos (sublinhado meu).‘” De resto, porém, a predominancia da fidalguia em qualquer empresa foi sempre entendido como a causa principal de eventuais desastres. Era assim que Iaime Cortesao explicava o descalabro do Estado da india, onde ”a nobreza militar fora sempre a classe dominante": ”a sua indisciplina, que por vezes degenerou em lutas civis, apressou a queda do império". A ”intolerancia feroz” que o ”fanatismo" inspirava as ”ordens religiosas” sabotara o padroado. Segundo Cortesao, no entanto, havia na Asia uma ”excepçãao”: Macau. Ora Macau teria escapado a decadéncia portuguesa no Oriente, precisamente porque era uma comunidade burguesa, civil. Em Macau desenvolvera-se, segundo Cortesao, ”uma burguesia comercial riquissima, a qual, a maneira das repablicas urbanas da Idade Média, logo se organizou democraticamente”. (sublinhados meus) Era portanto uma pequena repfiblica, onde o sentimento da patria se desenvolvera, ajudado pelo trabalho honesto e pela igualdade. A sobrevivéncia e prosperidade de Macau no século XVII confirmava a regra geral da expansao portuguesa: tudo tinha corrido bem, sempre que ”(as comunidades portuguesas) se desenvolveram em bases de trabalho normal e fora da tutela asfixiante e do exemplo dissolvente da nobreza militar”.48
Assim, na primeira metade do século XX, a separacao entre Marrocos, India, e
Brasil na historia da expansao, mais do que geografica e cronologica, adquiriu uma
dimensao tematica. Marrocos e a India forneciam temas militares, enquanto 0 Bra-
sil era pretexto de estudos sobre ”colonizacao” e ”integraçãao territorial”.4° Ora, esta
compartimentagao nao era um mero produto dos ”dados”. Era o resultado da apli-
cacao de uma dicotomia ideologica a plasticidade das fontes. Tal é visivel no facto
de ser perfeitamente praticavel contar a historia dos varios "impérios" portugue—
ses de uma maneira igual, independentemente das paragens. Podia-se reduzir as
expansoes ao mesmo batalhar de exploradores, cavaleiros e missionaries. No caso
do Brasil, por exemplo, bastava dar mais énfase as guerras contra os holandeses no
século XVII para reduzir a ”colonizacao” a uma campanha militar.5° Mas podia—se
também promover as expansoes a mesma nobre fixacao de portugueses e aportu-
guesamento de indigenas. Foi o que fez para o caso da India o goés Guilherme Mo-
niz Barreto, a partir do livro do seu conterraneo Frederico Diniz Ayala. Em Goa, se-
gundo Moniz Barreto, tinha existido uma ”colonia portuguesa”, constituida pelas
familias chamadas ”descendentes”, que tradicionalmente forneciam os oficiais ao
exército portugués do Estado da lndia. Barreto descreveu essa ”colonia" em termosmuito parecidos com os utilizados por Jaime Cortesão para Macau, como ”seme-
lhante ao das pequenas republicas da antiguidade ou da renascenga italiana, Ate-
nas ou Veneza”. Solidaria entre si, a nobreza militar de Goa identificara-se total-
mente com o ”dever civico”. Em pleno século XIX, constituiam o ultimo grupo por-
tugués em que sobreviviam ”os instintos, as tradigoes e 0 génio mesmo do velho
Portugal do século XVI".51 As fontes nao determinavam as visoes historiograficas.
Em suma, na primeira metade do século XX, a historiografia portuguesa co-
megara a trabalhar com dois ideais-tipos de expansao ultramarina. Uma, a expan-
sao militar, aristocratica; outra, a expansao pacifica, sobretudo rural, democratica.
A lndia representava a primeira; o Brasil, a segunda.
A historia dos impérios de Marrocos e da lndia era uma saga de famosos cavaleiros e de alguns santos missionarios. O império do Brasil tinha, pelo contrario, uma feigao anonima e planeada. A separar um e outro estava a oposição entre dois tipos sociais: de um lado, a socieda- de aristocratica, guerreira, fundada na conquista e na pilhagem; do outro lado, a so ciedade civil, igualitaria, fundada na produgao e na troca, mas sobretudo numa forma de vida estavel representada pelas comunidades de pequenos lavradores abastados. Por detras desta visao dicotomica, estava um projecto de transformagao da sociedade portuguesa, concebido no quadro da cultura do patriotismo civico do estado liberal, fortemente marcado pela tradição europeia do republicanismo classico. Esse projecto apontava para a democratizagao da vida portuguesa através da
constituigao de uma populagao de lavradores independentes, suficientemente
abastados para poderem desempenhar os seus deveres civicos no quadro do esta-
do liberal. Foi este modelo que, num primeiro momento, serviu para condenar a ex-
panséo ultramarina, mas que, num segundo momento, se projectou no ultrarnar. O
modelo da expanséo favorecido pelos adeptos da ”colonizaçao interna" viria as-
sim a corresponder : a criação, no ultramar, de uma naçao, tal como aquela que se es-
perava criar no Portugal europeu. A História da Colonizado Portuguesa no Brasil era
uma simples ilustração deste desejo, a de que a dominagao ultramarina pudesse as-
sentar no ”método romano”, através do povoamento com migrantes metropolita-
nos e da aculturagao dos indigenas, e portanto ser entendida como a réplica daque—
la comunidade igualitaria e auténoma que se desejava construir no Portugal
europeu.
O terceiro Portugal: a projecão em Africa do modelo da colonização
interna Podemos seguir a consolidaçao deste pensamento através das congeminagoes dos principais entusiastas do esforço de ocupagao entre 1870 e 1940.
Repare—se que o nosso objectivo nao é esgotar as razoes de determinadas medidas e orientaçoes, mas apenas explorar as linguagens em que essas medidas e orientaçoes foram formuladas.
A dicotomia entre conquista e colonização, traduzida na oposicao entre uma era passada, em que a expansão ultramarina se fundara na forga militar, e uma nova era, em que devia predominar 0 trabalho, sobretudo 0 trabalho agricola, foi o ponto de partida do que I050 de Andrade Corvo e Julio de Vilhena escreveram sobre o ultramar. Corvo foi o ministro da marinha e ultramar dos governos de Fontes Pereira de Melo na década de 1870, e Vilhena teve a mesma pasta duas vezes, em 1881 e 1890. Corvo e Vilhena néo foram apenas responsaveis pela politica ultramarina em momentos cruciais do ultimo quartel do século XIX, mas quiseram também, em estudos e relatorios oficiais, elaborar a doutrina correspondente a essa politica.
Em 1883, João de Andrade Corvo esclarecia que a ocupacao de Africa nunca poderia ser o prolongamento da antiga historia colonial, da época da India, onde os portugueses se tinham ocupado sobretudo com o ”monopolio do comércio das especiarias, guardado e mantido pela forga”. Esse ”século das conquistas e monopolios” tinha sido uma época de corrupcao de costumes e de fanatismo, causa da ”de-
cadência” que se seguiu. O novo periodo da historia colonial, que Corvo esperava
ver inaugurar-se no fim do século XIX, seria 0 ”periodo do trabalho livre, da explo-
ragao das riquezas naturais: 0 periodo do verdadeiro desenvolvimento agricola,
industrial e comercial, em condições normais e em conformidade com os principios
economicos” (sublinhado meu). Em relagao a Africa, Corvo, acima de tudo, conde-
nava a tradigao do trafico de escravos. A escravatura impedira a ”coloniza<;50” da
Africa, a0 despovoar a terra e desviar os portugueses da ”agricultura".52 Vilhena,
na mesma linha, recomendava uma época de ”capital e trabalho" para ultrapassar
o ”periodo da conquista, da espada e da cruz, da aventura cavalheiresca e fidalga,
do feito audacioso, nem sempre digno do poema épico, porque nao raras vezes en-
cobria a crueldade, a extorsao e a rapina".53 Ou seja, a colonizacao portuguesa de
Africa, como disse um dos admiradores da politica de Corvo, devia iniciar—se como
um capitulo distinto, fechando 0 ”periodo homérico, politico, militar e religioso
das colonias”.54 Para isso, como ja aconselhara um outro ministro do ultramar, Luis
Augusto Rebelo da Silva (1869), era preciso renunciar a atitude de ”fidalgos” con-
quistadores. Era, sobretudo, necessário renegar a memoria do "imenso emporio
criado na india”, ao qual se havia, durante décadas, sacrificado a América e a Afri-
ca.55
A concepcao da colonizagao africana como uma empresa radicalmente dife-
rente da conquista militar e fidalga, que era suposto ter comprometido 0 império
do Qriente no século XVI, foi um passo essencial para possibilitar que a ocupagao
de Africa viesse a ser assimilada ao tipo de ”colonizacao interna” favorecido pela
cultura do patriotismo civico. Esta assimilação, bem como as suas razoes mais pro-
fundas, transparece no livro que o major Henrique de Carvalho, antigo director das
obras pfiblicas em Angola, publicou em 1892, sob o patrocinio da revista Coldnias
Portuguesas, uma das mais importantes fontes de propaganda africanista. Como to-
dos os africanistas, Carvalho ressentia a ”forte descrenga a respeito das nossas ac-
tuais colonias” que dominava em Portugal. Segundo Carvalho, os cépticos haviam
concluido apressadamente que Portugal, nao dispondo dos recursos militares e fi-
nanceiros das poténcias europeias interessadas na ocupacao e exploração de Afri-
ca, estava condenado a ser espoliado mais tarde ou mais cedo. Havia ainda a
convicção, confirmada por Oliveira Martins, de que a grande prioridade nacionalera explorar a propria metropole, sobretudo "arrotear os terrenos que se acham in-
cultos”. Contra este quadro cle cepticismo colonial e prioridades domésticas, Hen-
rique de Carvalho esforgava-se por provar duas coisasr em primeiro lugar, que os
portugueses, ao contrario do que parecia, tinham vantagens sobre os outros euro-
peus no que dizia respeito a Africa; em segundo lugar, que a ocupacao de Africa in-
teressava ao pais da mesma maneira que o povoamento dos incultos no Alentejo.
Os outros estados europeus preocupavam-se apenas em "manter o seu prestigio
nacional e abrir novos mercados ao seu comércio e as suas industrias”. Os Portu-
gueses, porém, tinham motivos mais nobres: colonizar as "terras da Africa central”
e ”adogar e transformar a natureza dos seus indigenas e o seu modo de ser social”.
A razao desta diferenca era racial. Os Portugueses eram, com espanhois, italianos e
judeus, os unicos europeus capazes de se adaptar "as terras e aos climas intertropi-
cais". Em relacao a estes, porém, os portugueses tinham ainda a vantagem de ser
um povo rural. Enquanto os outros europeus tratavam de explorar Africa, so os
Portugueses estavam em condicoes de la se instalar e conviver corn as populacoes
nativas, porque ”os indigenas adaptam-se com facilidade aos usos e costumes dos
portugueses, que”, de todos os europeus, “sac os mais brandos para com eles”. Os
indigenas eram essenciais nesta politica de ocupacao, porque o africano era ”um
colono precioso e um trabalhador por exceléncia”. Carvalho condenava o sistema
de plantagoes com trabalho servil, na medida em que ”retardavam" os progressos
da agricultura. O que interessava era fazer dos indigenas ”pequenos proprietarios
agricolas” e artesaos. Era fundamental desfazer a sombra da escravatura, que fize-
ra os indigenas desconfiados. Apolitica a seguir era “progressive: e assimiladora”.
As fazendas abertas pelos portugueses seriam ”escolas praticas” para os indige-
nas. Alias, os primeiros colonos deveriam ser os proprios indigenas. Eles prepara-
riam 0 terreno para o influxo de portugueses. Os ”cruzamentos” entre os emigran-
tes e os indigenas (depois de estes ja estarem civilizados), como em Cabo Verde,
criariam "verdadeiras colonias portuguesas”. O objectivo final era fundar novas
”nag6es” que, um dia, viriam a emancipar-se, com vantagem para a metrépole,
pois as ”relag6es que essa nacao depois mantem com os povos transformados em
nacao livre, nao serao menos Liteis nem menos vantajosas do que nos tempos em
que se conservaram sob 0 seu regime colonial". E Carvalho concluia: ”Assim se ro-
bustecem as nacionalidades” no mundo. 56
' Desta forma, Henrique de Carvalho, na década de 1890, redimia a ocupacao
de Africa, contra os cépticos e os puritanos da ”colonizacao interna”, através da sua
inscricao no projecto, alimentado pelo patriotismo civico, de desenvolvimento da
comunidade nacional. O dominio de Africa passava, assim, a ser parte do mesmo
projecto de "colonização interna”. Ora, nao era bem assim que se pensavam os im-
périos mundiais na Europa do fim do século XIX. A rebelião das colonias europeias
na America no fim do século XVIII, principio do século XIX, parecia provar que
qualquer politica de integracao imperial estava’ condenada ao fracasso. Muitos
passaram a preferir 0 tipo de dominio inglés na India: um império indirecto, sem
despesas para a metropole ("mantid0 por tropas indianas e page com dinheiro in-
diano"), e meramente vocacionado para a exploracao econémica. John-Robert
“UM NOVO BRASIL DE UM NOVO PORTUGAL” 143 Seeley recomendara a redugao dos impérios as grandes armadas policiando rotas e portos. Paul Leroy-Beaulieu advogara os investimentos privados, "emigração de
capitais", mas sem ”emigração de gente".57 Mas a concepcao da ocupacao de Africa
como prolongamento da colonizacéio interna servia varios objectivos no caso por-
tugués. Em primeiro lugar, permitia contornar a prioridade dada, no quadro da
cultura do patriotismo civico, a construgao da nacao na Europa. Em segundo lugar,
possibilitava imaginar um futuro colonial para um pais pequeno e fraco, sem
meios para manter grandes esquadras ou exportar capitais, numa época em que os
impérios pareciam uma prerrogativa das poténcias militares e financeiras. Em ter-
ceiro lugar, satisfazia a xenofobia vigente na élite portuguesa do fim do século XIX.
Os pequenos aforamentos a lavradores nacionais, sobre os quais tanto se legislou,
eram a alternativa para 0 sistema das concessoes a companhias estrangeiras, que
todos temiam viesse a ”desnacionalizar” o ultramar.58
Poi neste contexto que, em 1890, o médico Francisco Silva Telles argumentou
ser a fixacao de populagoes o unico meio que restava aos portugueses para salva-
rem os territorios tropicais das cobicas de ingleses e alemaes. Telles, goés descen-
dente, foi um dos grandes animadores da Sociedade de Geografia de Lisboa e 0
principal organizador do I Congresso Colonial Nacional de 1901, que a sua geracéo
viu como o ”c0mplemento do tri—centenério de Camoes e a desforra do Ultimatum
de 1890".” Segundo Telles, a hegemonia em Africa iria ser decidida pela raca euro-
peia que conseguisse proceder a uma "emigra<;ao consciente, calculada e sisternati—
ca". Os ingleses e 0s demais povos do norte da Europa nunca sobreviveriam em
Africa. Mas os portugueses, sobretudo os do sul, tinham, devido aos seu fundo
étnico, ja formado pela miscegenacao, capacidades ingénitas para se adaptarem
aos climas tropicais. A sua fixacéo em Angola seria possivel desde que se erradicas—
se o paludismo. Por outro lado, havia ainda a considerar o que Silva Telles chamava
a ”colonizac5o mista”, isto é, a miscegenagao, que os ingleses e alemées jamais pra-
ticavam. Tinha sido essa a via pela qual a "raga portuguesa se tem fixado nos tropi-
cos". Teles descreve-a assim: ”a raga invasora funde-se com a indigena a diversos
graus, mas conserva grupos de famflias na maior pureza de sangue”. Tratava—se,
assim, de aproveitar a multiplicacao proporcionada pela mesticagem ao mesmo
tempo que se salvaguardava a hegemonia portuguesa.
A preferéncia pela fixacéo de populacao era acompanhada, em Teles, pela re-
cusa da exploracao comercial das colénias, a inglesa. Telles considerava-a contra-
producente. A Europa ja sofria de sobreprodugao industrial, desemprego, e baixa
de salarios. N50 havia qualquer vantagem em criar ainda mais concorréncia em
Africa: ”Feitorias opulentas e colonias agricolas com trabalhadores indigenas enri-
quecem grandes companhias, aumentam os capitais da metropole”, mas também
”aumentam ainda mais, pelo excesso de industrialismo e de riqueza, a crise social
que atravessa as grandes massas de proletarios”. A colonizacao de Africa so p0de-
ria ser benéfica se redundasse na ”fixa<;ao da raca”.61 Como insinuava um deputa-
do em 1896, a expanséo em Africa interessava na medida em que se pudesse lé esta-
belecer, como pequenos proprietarios, os proletarios que sofriam na metropolez "E
nas nossas colonias que o espirito revolucionario do trabalhador se acalrnara”.‘2
Assim, segundo Henrique de Carvalho ou Silva Telles, ”colonizar" em Africa,
deveria, forgosamente, significar ”colonizar e povoar" como se fizera nas ilhas doAtlantico e no Brasil: ”colonizar com portugueses", isto é, ”nacionalizar”. De facto,
na década de 1890, a ocupagao de Africa, mais especificamente dos planaltos de
Mogamedes e Benguela, seria equiparada a ocupagao das charnecas do Alentejo:
tratava~se, em ambos os casos, de fixar uma populagao de produtores de cereais, de
fundar um ”celeiro". Entre 1884 e 1892, foram para la enviados dois mil colonos
madeirenses.“ Esta obsessao é também notoria nos dois mais famosos governado-
res-gerais de Angola no século XX: Henrique de Paiva Couceiro (1907-1909) e Nor-
ton de Matos (1912-1915, 1921-1924). Tanto uns como outro se transformaram, du-
rante a primeira metade do século XX, nas principals referéncias oraculares do pen-
samento colonial para a direita monarquica (Paiva Couceiro) e para a esquerda re-
publicana (Norton de Matos). Nas suas publicagoes sobre assuntos africanos, Pai-
va Couceiro tornou claro que ”a ideia, a politica, os objectivos a prosseguir em
Angola visariam — segundo nos -- a tornar a possessao ultramarina numa grande
provincia portuguesa, falando a nossa lingua, seguindo os nossos usos, mantendo
as nossas tradiçoes — prolongando, enfim, através das ilhas atlanticas, a propria
Patria-Mae".“ O mesmo, alias, diria um dos seus colaboradores, 0 coronel Ioao de
Almeida, ministro das colonias em 1926: a unica politica viavel para Angola era ”a
colonizagao, tomada a palavra no seu verdadeiro significado — constituigao dum
fragmento da patria num novo territorio, pela transmigragao da sua populagao,
com os habitos, tradigoes e costumes pecualiares”."5 (sublinhado meu) Do outro
lado da barricada, o general Norton de Matos nem por isso deixava de partilhar das
mesmas convicgoes colonizadoras. Para ele, a colonizagao que importava era a da
criagao de novas ”nações”. A todos os que gabavam as vantagens do dominio colo-
nial a inglesa ou a holandesa, Norton de Matos respondia, invocando precisamente
o caso do Brasil: ”A minha opiniao, de ha muito formada, é que os holandeses
teriam feito do Brasil, se o seu dominio se tivesse mantido, uma colonia mais pros-
pera e mais produtiva do que a que os portugueses conseguiram, mas de modo al-
gum teriam criado uma nação (. . .) A Holanda foi sempre um grande valorizador
das terras de além-mar, um grande organizador do trabalho indigena; nunca foi,
porém, um pais colonizador em sentido portugués”. No Brasil, os protugueses ha-
viam realizado uma colonizagao rural, propria do ”pais de lavradores" que, segun-
do o historiador Lucio de Azevedo (citado por Norton de Matos), Portugal tinha
sido na Idade Média. Ou seja, 0 Brasil, como ja 0 imaginara Malheiro Dias, era o
Portugal medieval, era a ”transplantagao” de uma sociedade rural europeia para
os tropicos. E Norton de Matos insinuava: "Nã0 é esta a obra de Angola ?”"°
A ”transplantação" ruralista tinha que ver, alias, com uma outra angfistia que
obcecou tanto Paiva Couceiro como Norton de Matos: 0 risco da ”desnacionaliza-
gao” de Angola, através das intrusoes alemas e sul-africanas. Nada melhor, para im-
pedir uma infiltragao estrangeira, do que importar familias metropolitanas e formar
com elas um nucleo irredutivel de portugueses. Por isso, Norton de Matos, a quem
nao repugnavam a assimilagao e mesmo a miscegenagao, nao estava disposto, ao
contrario de Henrique de Carvalho e de Silva Telles, a recorrer a mestigagem imedia-
tamente. Nos primeiros tempos, seria necessario manter os dois grupos afastados.
Por um lado, os africanos estavam demasiado atrasados. Precisavam de protecção
para se desenvolverem gradualmente. Por outro lado, era necessario, acima detudo, preservar os colonos portugueses em estado puro, para melhor resistirem
a influxos estrangeiros. Os raciocinios de Norton de Matos estiveram sempre
determinados por consideracoes de estratégia internacional. Norton desejava
manter duas correntes de emigraca/0 de ”familias rurais portuguesas” para 0
Brasil e Angola: "A colonizacao da Africa Portuguesa e emigracao para o Brasil
tém de fazer—se simultaneamente”. Em,1937, apelava a participacao brasileira
na expansao da cultura portuguesa na Africa austral, e a formagao de um "blo-
co” no Atlantico sul, para barrar o caminho a outros imperialismos.“
Tal inspiraçao nunca desapareceu das instancias oficiais. Em 1928, 0 Alto Co-
missario em Angola, Antonio Vicente Ferreira, propunha-se instalar na provincia
”alguns milhoes de habitantes”, para a criacao de ”uma verdadeira nacao, consti-
tuida por populacao branca, de preferéncia portuguesa: um segundo Brasil, ou me-
lhor, um terceiro Portugal". O favorecimento de Angola é sintomético do que se
pretendia fazer: é que Angola, nao so tinha melhor clima, mas era considerada terra
de pequenas empresas, enquanto Mocarnbique parecia definitivamente entregue a
"grandes empresas, publicas ou capitalistas”.°8 Em 1939, este tipo de pensamento
havia de florescer exuberantemente nos projectos para a colonizaçao dos planaltos
do sul de Angola, apresentados por Francisco Iosé Vieira Machado, o mais dura-
douro Ministro da Colonias de Oliveira Salazar (1936-1944).“ Machado declarava
Portugal ”um pais colonizador por exceléncia”, vocacao provada logo pela ocupa-
gao das ilhas do Atlantico, que teria servido de modelo a colonizacao do Brasil.
Afonso de Albuquerque, na india, também tratara de colonizacao, quando, em
1509, sugeriu ”os casamentos de portugueses com mulheres indias”, uma ”medida
(que) nao tinha so propositos colonizadores”, mas também ”tendia a desfazer de-
sinteligéncias entre as duas ragas em presenga”. Machado queria preparar os futu-
ros colonos num Instituto de Colonizaçao, uma espécie de Casa Pia colonial, onde,
sob a direccao de "missionaries catélicos portugueses”, se iriam formar os "lavra-
dores africanos portugueses” e as suas esposas. Para erradicar do espirito dos colo-
nos ”a ideia de regresso”, estes seriam escolhidos de preferéncia entre érfaos. A "fi-
xagao da raga branca” iria ser directamente dirigida por uma Iunta de Colonização
sediada em Luanda. O objectivo nao era criar ”grandes produtores de géneros co-
loniais, mas fixar (gente) a terra de Africa", visto que os colonos sao "o melhor pa-
drao da nossa soberania". Por isso, previa—se que os ”géneros cultivados devem
destinar-se sobretudo ao consumo” dos proprios. O comércio estaria assegurado
pela prépria Iunta, que abriria uma loja onde se trocassem os géneros a venda por
produtos das colheitas locais. Assim, esperava-se instalar em Angola um mundo
rural de pequenos proprietarios vivendo em comunidades homogéneas e auto-su-
ficientes, com os seus artificies, uma réplica mais do que perfeita das comunidades
camponesas da metropole. Os povoadores deveriam viver em aldeias de 50 casas,
”de tipo rural portugués, mobiladas com simplicidade e com suas dependéncias de
caracter agricola, plantando no quintal arvores de fruto e um pequeno hortejo”.
Cada aldeia teria, pelo menos, ”um moleiro, um padeiro, um sapateiro, um serra-
lheiro, um carpinteiro e um ferrador". As zonas de colonizacao nao deveriam ter
mais de 15.000 hectares (sendo mais pequenas em regime de regadio) e os lotes
individuais nunca poderiam ser superiores a 150 hectares, sendo indivisiveis e ina-lienaveis, como os casais de familia sobre que se pretendia edificar a ”colonizacao
interna”. Por outro lado, Machado preocupava-se, tal como recomendara Norton
de Matos, em isolar os novos povoadores. As "z0nas de colonizacao” nao deveriam
estar em contacto corn ”reservas indigenas”. O recurso a mao de obra indigena néo
era aconselhado e so poderia dar—se por decisao das autoridades.7° Alias, esta se-
gregacao nao afectava apenas os negros. Também os angolanos brancos estavam
impedidos de frequentar as novas povoacoes de brancos da metropole, para nao
corromperem a sua pureza provincial.
Nos projectos de colonizacao Francisco Vieira Machado reflectem-se todos
os temas da colonizacao interna. Ora, a inspiracao nao so era nitida, como até
abertamente reivindicada pelo proprio autor dos projectos. Em 1940, durante a
”semana das colénias”, 0 medievalista Torcato de Sousa Soares, professor da
Universidade de Coimbra, fez uma conferéncia na Sociedade de Geografia de
Lisboa sobre a "A Colonizacao na Fundacao”. Francisco Vieira Machado era um
dos presentes. No fim, saudou a conferéncia como uma ”licao” para a nova tare-
fa de colonizar Africa." O método a adoptar na colonizacao de Africa devia ser,
portanto, 0 da ”transferéncia de uma civilizacao rural”. Na década de 1930, pro-
pagandistas coloniais, como Henrique Galvao, ja haviam sugerido que seria em
Africa que os citadinos cansados da luta pela vida encontrariam a harmonia do
trabalho na terra.” Mais tarde, na década de 1950, arrancou em forca ideia de re-
solver o problema do excesso demografico da metrépole — calculado num mi-
lhao de pessoas — através da réplica dos campos portugueses em Africa. Em
Angola, foram fundados colonatos de transmontanos com base no pequeno ca-
sal familiar, com carros de bois e culturas de sequeiro. Tal como em 1884-1892,
quis-se que as propriedades fossem pequenas, 0 equivalente do norte de Portu-
gal. Proibiu-se o recurso a mao de obra negra e nao se pos agua canalizada nas
casas para que, ao frequentarem 0 chafariz, os colonos fossem obrigados a re-
constituir a convivéncia aldea. Era, como notou Orlando Ribeiro, a tentativa de
realizar em Africa o que nao se pudera fazer no Alentejo.”
A historia da expansao na década de 1930 ficou marcada pelos esforcos para
impor 0 tema da ”colonizacao”. Em 1937, no Primeiro Congresso de Historia da
Expansao Portuguesa no Mundo (Lisboa), o general Iosé Iustino Teixeira Botelho,
da comissao orientadora do congresso, distinguiu trés ”modalidades diferentes"
na expansao ultramarina portuguesa, correspondentes a trés histérias diferentes: a
Historia das Navegacoes, sobretudo interessada com os estudos de nautica e de
geografia e focando no século XV; a Histéria da Expansao no Mundo, cobrindo as
viagens, missionacao e comércio do século XVI; e a Histéria da Colonização, devo-
tada a obra de povoamento e administracao nas ilhas do Atlantico, no Brasil e mais
recentemente em Africa. Ora, segundo Teixeira Botelho, era a esta que os historia-
dores portugueses deviam dar prioridade, pela sua ”importancia politica interna-
cional de actualidade”.74
A reducao da historia da expansao a histéria da ”co1onizacao” foi sempre aca-
rinhada pelos organismos interessados no ultramar. Assim, em 1934, o cronista do
Boletim Geral das Colónias congratulava—se por a Exposicao Colonial do Porto ter
ultrapassado a fixacao nos ”feitos dos homens das Descobertas e Conquistas”, paraprivilegiar 0 ”Esfoção Colonizador Portugués”.75 Em Iunho de 1937, finalmente,
levantava-se em Lisboa, no palacio das exposigoes do Parque Eduardo VII, a
Exposicao Historica da Ocupacao, destinada, segundo o decreto—lei n°. 27.269,
de 24 de Novembro de 1936, a ”mostrar os trabalhos e accao dos portugueses
para assimilacao dos indigenas e para defesa do ultramar portugués, durante o
século XIX até as campanhas da Grande Guerra". De facto, a Exposicao combi-
nava varias visoes da expansao. A sala dos brasoes era uma celebracéo nobiliér-
quica, exibindo os escudos dos homens de armas do passado. A sala militar reu-
nia estandartes, espadas e condecoragoes. Um Parque de Material de Guerra
dava o cheiro da polvora. Mas tinha-se o cuidado de chamar a atengao para que
a guerra so importara para abrir caminho ao povoamento e a ” elevagao das tri-
bos selvagens ao nivel moral duma crenca e duma cultura mais generosa”.76 A
”ocupacao militar colonia1" contemporanea ficou confinada a mais pequena
sala. Até de Mousinho de Albuquerque se publicitavam agora directivas para
uma politica pacifica e compreensiva em relacao aos indigenas. Ahistoria tinha
de ser reescrita: ”Mocambique nunca esteve a ferro e fogo. Nas campanhas que
se travaram exerceu-se a maior economia de vidas, brancas e negras. E so se fez
guerra em ultimo extremo”.77
No catalogo, Marcello Caetano explicava a hierarquia dos valores: "Pene-
tragao, povoamento. .. —— mas é toda a colonizaçao! " Instrucao, politica médica e
sanitaria, actividades cientificas, administracao, a ”luta contra os negreiros”, a
”protecgao e civilizacao dos indigenas” (através do trabalho), eram os grandes
temas da Exposicao. Também havia salas de Marrocos (organizada por David
Lopes), do Brasil (Serafim Leite), do Oriente, da Marinharia e da Fé. Na sala do
Oriente, privilegiava—se o tema do ”contacto com novas formas de vida e de civi-
lizacao” e o papel de Portugal como ”agente do conteudo espiritual da civiliza-
cao moderna”. A sala do Brasil vincava 0 prolongamento de Portugal na Améri—
ca: ”Ao iniciar-se a colonizacéo positiva, aparecem logo, no solo brasileiro, os
simbolos concelhios da metropole, com os seus pelourinhos e regalias”. Ora o
caso brasileiro importava porque ”opera-se lwoje, em Africa, processo idéntico
ao da colonizacao do Brasil". A ocupacao de Africa nao consistia numa conquis—
ta como a de Ceuta ou Malaca. Era a construcao de uma nação, como no Brasil.
Finalmente, a sala da Fé ilustrava o modo como Portugal emendara ”o conceito
colonial antigo”: "Antes dele, a colonização era de interesse imediato: explora-
cao e comércio. Portugal, mantendo embora este conceito material, revestiu—o
de um elemento novo e preponderante": a evangelizacéo, que, tal como a conce-
bia Serafim Leite, parecia uma verséo clerical da ”civilização” do liberalismo,
consistindo praticamente em instrucéo, assistência, ciencia e defesa do ”direito
das gentes”. Por isso, no Brasil, os portugueses nunca haviam praticado “o pro-
cesso a que Novicow chama eliminação biologica, a liquidação pura e simples
do aborigene, para se instalar o colono em seu lugar”.78
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