Em "Ensaios sobre a statistica das possessões portuguezas na Africa occidental e oriental; na... ", (Google eBook), PG 203 -207 , por José Joaquim Lopes de Lima, Francisco Maria Bordalo, encontrei um relato sobre o modus vivendi de brancos e negros em Luanda às vésperas da abolição do comércio de escravos, que passo a trancrever:
LIV. III. — PART. I. DH
"...Resta-me dizer alguma cousa do modo de viver dos moradores de Loanda. Esta bella cidade contém no seu recinto — funccionarios públicos de todas as jerarchias; — negociantes, mercadores, corretores, e mais gente de commercio; — soldados da guarnição; — marinheiros da armada, e dos navios mercantes; — a gente miúda da terra; — a gente baixa do mar (muxi-loandos, muxi-congos, e cabindos); — e a escravaria dos moradores: começarei pelo fim: os escravos andam vestidos de calça e camisa, e entulham as casas dos senhores como objecto de luxo; pois não é raro encontrar dez,— doze, — ou vinte escravos na casa de um celibatário, que mal teria em que empregar dous ou três criados: dahi nascem muitos vícios, filhos da ociosidade, nesses entes inúteis (e até perigosos) em uma cidade, quando tão úteis poderiam ser na lavoura das terras, ficando os indespensaveis para o serviço domestico, carretos etc.: a gente forra indígena vive em casas palhoças, a que chamam cubatas, apinhadas em um vasto lubyrinto ao sopé do morro de S. Miguel por detraz das casas de pedra que bordam por esse lado a frente da cidade baixa; e também por detraz das casarias nobres da praia do Bungo até á Nazareth; esta gente meia — christà— meia idolatra assiste á missa, e dahi vae folgar e embriagar-se em um lembamento: traz contas ao pescoço, e milongos no seio; quasi toda ella se emprega em oficios mecânicos, ou do serviço dos moradores, e nas vendas a retalho nos mercados etc.:—os muxi-loandos moram na ilha de Loanda fronteira á cidade, e empregam-se ordinariamente na pescaria, abastecendo de peixe a população da capital: em outro tempo as mulheres daquella ilha se occupavam em apanhar o zimbo nas suas praias, aonde hoje apenas vão mariscar, porque o zimbo já agora pouco consumo tem; o viver desta gente é similhanle em tudo ao dos outros indígenas: — os muxi-congos e cabindas são marinheiros das lanchas, e embarcações de cabotagem, e pouca residência fazem em terra, aonde todavia, apesar de estrangeiros, muito bem se entendem com os naturaes da sua classe: toda esta gente traja á europea — calça, e camisa, e chapéu de palha os homens, — saia e camisa as mulheres, — e os que tem mais meios vestem e calçam inteiramente a portugueza. A classe dos marujos portuguezes, e estrangeiros, é aquella que pela sua grande mortalidade tem dado mais má fama áquelle clima, como muito bem pondera Fortunato de Mello na sua Memória, que já por muitas vezes hei citado: darei aqui as suas próprias palavras indicando as causas de tal calamidades:
1.° — o muito que se expunhao ao mais forte ardor do Sol os marinheiros dos navios mercantes, das embarcações (la diz charruas) do Estado e nas cargas e descargas das suas embarcações, molhando-se muitas vezes, e enxugando a roupa no corpo. Todo o mundo sabe, que e sol faz mal mesmo na Europa, e que muito mais acção deve ter dentro dos Trópicos, onde os seus raios sao abrazadores, accrescendo a isto, que o local de área adquire e reflecte um calor extremamente intenso: o resultado era adoecerem de moléstias graves
2. — o nao fazerem cazo dessas mesmas doenças; andarem emquanto podiao (como tantas vezes vi) a titulo de que lhes era muito precizo; andarem ao sol, mesmo com febre; e por tanto quando lhes queriao acudir já naò era tempo: o remédio era a «morte»...
3. o prejuizo, ou prestigio de que, para escapar a ter febres, era necessário andar sempre bem enfrascado em bebidas espirituosas: isto os fazia abuzar delas particularmente da aguardente; o estômago e os intestinos conservavam-se em um estado de irritação a cada passo renovada: o rezultado erao hepatitis, dysenterias de péssima qualidade, e mesmo perniciosas apopleticas, que os conduziao á sepultura!!!
4.—Estarem de«noute, horas e horas, expostos nos Cáes, ou nos escaleres, á cacimba (orvalho), á espera dos seus officiaes, que deviaô ir para « bordo, e que se estavam divertindo na cidade até quazi á madrugada. À cacimba faz tanto mal como o Sol »...
5. « Muitos excessos de outra natureza, que saò tanto ou mais nocivos.»
1.° — o muito que se expunhao ao mais forte ardor do Sol os marinheiros dos navios mercantes, das embarcações (la diz charruas) do Estado e nas cargas e descargas das suas embarcações, molhando-se muitas vezes, e enxugando a roupa no corpo. Todo o mundo sabe, que e sol faz mal mesmo na Europa, e que muito mais acção deve ter dentro dos Trópicos, onde os seus raios sao abrazadores, accrescendo a isto, que o local de área adquire e reflecte um calor extremamente intenso: o resultado era adoecerem de moléstias graves
2. — o nao fazerem cazo dessas mesmas doenças; andarem emquanto podiao (como tantas vezes vi) a titulo de que lhes era muito precizo; andarem ao sol, mesmo com febre; e por tanto quando lhes queriao acudir já naò era tempo: o remédio era a «morte»...
3. o prejuizo, ou prestigio de que, para escapar a ter febres, era necessário andar sempre bem enfrascado em bebidas espirituosas: isto os fazia abuzar delas particularmente da aguardente; o estômago e os intestinos conservavam-se em um estado de irritação a cada passo renovada: o rezultado erao hepatitis, dysenterias de péssima qualidade, e mesmo perniciosas apopleticas, que os conduziao á sepultura!!!
4.—Estarem de«noute, horas e horas, expostos nos Cáes, ou nos escaleres, á cacimba (orvalho), á espera dos seus officiaes, que deviaô ir para « bordo, e que se estavam divertindo na cidade até quazi á madrugada. À cacimba faz tanto mal como o Sol »...
5. « Muitos excessos de outra natureza, que saò tanto ou mais nocivos.»
Estes fataes inconvenientes que existiam no tempo a que se refere F. de Mello, existem ainda em grande parte, com quanto as guarnições dos navios de guerra estejam hoje sujeitas a uma rigorosa disciplina sanitária, e haja em Loanda um hospital fluctuante, com o que muito se tem diminuído a mortalidade, aliás excitada sempre pelo uso imoderado das bebidas irritantes, pela indispensável exposição a um sol ardente, e pela extrema devassidão das negras da terra, cujo contacto é em toda a África perniciosíssimo às compleições europeas: estes malles suo communs aos soldados brancos dos corpos do exercito, que apesar da disciplina dos quartéis, tem sempre sobeja occasiao para se entregarem a prazeres tao nocivos.
Também as classes mais elevadas padecem muito pelos seus deportes, que o mesmo F. de Mello nao deixa de mencionar nos seguintes termos— 6. — Para os Officiaes, e gente polida que alli ia negociar, alem de algumas destas mesmas cauzas, haviaõ ainda as céas immoderadas, que eraõ banquetes, e duravaõ uma grande parte da noite, ceas que deraõ a morte a muita gente: o abuso de passarem noites inteiras a jogar, tendo extremamente esquentando o physico, e o moral & ª»
Eu assisti ha vinte annos por mais de uma vez a essas orgias, em que só figuravam homens (pois que ainda então se observava em Loanda o antigo costume portuguez — de conservar as senhoras em perpetua separação das sociedades do sexo masculino; e pude alli ver, não sem horror, depois de céas opiparas passarem os convidados escandecidos por frequentes libações a destroçar em uma mesa de jogo de azar violentíssimo as suas fortunas, ou as alheias: dalli nasciam a um tempo as hepatytis, e as banca-rotos, e por ultimo a immoralidíide. É certo que a civilisação do século vae já modificando aquellas rudes usanças: consta-me que já em Loanda vae tomando o seu logar na sociedade dos homens o sexo amável destinado melhorar-lhes as inclinações; e também me consta haver alli um theatro particular, a que deu impulso o governador Noronha, e os que se lhe tem seguido; e por certo que em parte alguma pôde dar-se uma maior necessidade de espectáculos lícitos e innocentes, para desviar as classes abastadas do furor do jogo, que todavia predomina ainda.
Quanto ao mais, o viver da gente grave de Loanda é o de uma cidade do Brasil. . . Brazileira é a sua cosinha bem farta de estimulantes; — brazileiro é o dialecto alli usado no trato domestico;— brazileiras parecem as damas na molle indolência em que vegetam, cercadas de um grande séquito d'escravas, ostentando era publico grande luxo no seu vestir, e na pompa que as rodéa; mas andando usualmente meias vestidas e com as pernas nuas quando estão dentro em sua casa; — e tambem os homens pelos seus hábitos e propensões niio vao fora do typo brazileiro. Os transportes de conducção mais usados são as chamadas tipoyas — que vem a ser — uma rede de dormir (das que se usam em toda a America) prosa pelos extremos a uma vara, ou bambu, que assenta sobre a cabeça dos negros conductores, e sobre a qual se forma um docel, donde pendem cortinas de seda, ou de chita ele. — que encobrem a pessoa que vae dentro, e a preservam dos raios do sol: ha ahi também algumas carruagens de rodas, bem como cadeirinhas de condicçao, e por ventura não tardarão a introduzir-se os palanquins á indiana.
Os moradores de Benguella forcejam por seguir quanto podem os usos — bons e maus — dos seus compatriotas de Loanda; mas o viver naquelle paiz é uma lucta continua com a doença, e com a morto: os homens brancos tem contraindo o habito constante de andarem pela rua sempre com a mão no pulso para observar as pulsações, e quando se encontram, a pergunta usual é — se já faltou a febre.. . Mulheres brancas não as ha, nem as pôde haver sob pena de morte certa, maiormente se estiverem elas ainda em idade de poder ter filhos; porque ainda não ha exemplo até hoje de parto de mulher branca, que não custasse a vida á mãe e ao filho: isto diz tudo: todavia nos intervallos da moléstia — boa mesa — e jogo — são os passa-lempos de Benguella; e ahi ha luxo, não só nas casas dos ricos negociantes, mas ainda mesmo nas choupanas dos negros porque a terra regorgita em riqueza pelo seu muito commercio, que por ventura lhe virá a fugir em parte para Mossamedes, se o bom clima daquelle porto -convidar para elle, como é de esperar, casas de commercio de Benguella.
Anres de concluir este capitulo devo apresentar pelas próprias palavras as sensatas observações de um escriptor recommendavel. J. C. Féo Cardoso, na sua Memória impressa em Paris em 1825 — Em geral diz elle fallando do complexo dos Domínios Portuguezes de Angola e Benguella podem assignar-se trez cauzas principaes á decadência da povoação, que alli se observo: primeiro, os «poucos cazamentos nas classes elevadas da sociedade; segunda, a miséria e pobreza no povo; terceira, a immoralidade, a incontinencia e a devassidao dos costumes, em ambas. A primeira provem do uzo, ou abuso introduzido de dar grandes prezentes e jóias ás noivas, o que sendo impossível, a maior parte preferem o celibato ao que chamam descrédito. À segunda he o resultado do sistema já exposto, de ser o povo obrigado a uma vida errante, «trabalhosa, miserável, e pouco lucrativa (alludia ao systema dos carregadores hoje proscripto); a ultima he a consequência necessária das duas: talvez que alguma lei sumptuária empregada com prudência, e mais que tudo o exemplo dos Capitães generaes, e das authoridades superiores, contribuíssem para facilitar os cazamentos dos nobres, diminuindo-lhes os encargos, que por serem de «opinião ensino ainda mais a desarraigar.Em quanto ao povo, dada nova direcção aos capitães, e applicando-se estes com preferencia á agricultura, industria, e commercio de seus productos, necessariamente ha-de haver emprego para muitos braços, e apparecerá a abundância e riqueza, que saò as bases da prosperidade publica e individual, origem sempre de uma povoação robusta, e do seu augmento progressivo. Depois do que atraz deixo escripto fora ocioso o afirmar, que nesta ultima parte sou inteiramente da opinião deste auctor.
Quanto porém a leis sumptuárias, parece-me remedio inefficaz contra preconceitos sociaes, que só por meios indirectos podem vir a desarreigar-se: um delles é certamente o do exemplo; mas nem sempre, — ou antes poucas vezes — os governadores, e altos funccionarios estão no caso de o poder dar, sobre tudo em negócios matrimoniaes. Consignei com tudo este trecho para completar com elle o quadro dos costumes de Angola e Benguella.
Fim da l Parte.
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