Quando o meu pai nos deu a notícia de que íamos para a África, a minha
irmã e eu ficámos numa excitação dos diabos. Estávamos com sete e nove
anos de idade, ela mais velha que eu. Já tínhamos passado duas
temporadas de seis meses cada em Tavira, a família já tinha mudado de
casa duas ou três vezes, de modo que mais uma mudança não era
propriamente novidade.
Só que Tavira estava a dois passos[1], pelo menos estava dentro do universo atingível e conhecido, e a África era um mistério. Era verdadeiramente um outro mundo.
Daí em diante, respirámos África, levámos África para a escola, comemos com ela à mesa, levámo-la para a cama, sonhámos com ela. O que os nossos pais sabiam de Angola, outra palavra mágica que progressivamente foi substituindo África, era muito pouco. Muitas vezes, as nossas perguntas fantasiosas eram complementadas com as fantasias deles. Poucas eram respondidas com informações precisas e muitas outras desencadeavam um rosário de avisos e conselhos: cuidado com os insectos (podem picar), cuidado com as cobras (podem ser víboras, muito venenosas), com os cães, gatos e macacos (podiam ter raiva), com os rios (têm crocodilos e hipopótamos), com os pretos[2] (parece que alguns ainda eram antropófagos)...
Na minha imaginação, íamos viver para uma terra com árvores imensas, donde pendiam lianas, cada uma delas com um imponente macacão na ponta. As casas eram palhotas construídas à beira rio onde deslizavam lentos troncos de árvore, dentre os quais eu tentava descortinar os inevitáveis crocodilos.
Dos pretos tinha uma ideia confusa (cafres seminus espreitando das moitas, de lança em riste, osso atravessado na trunfa e grandes argolas pendentes das orelhas) que acabou por se fixar em duas personagens imaginadas, com idades semelhantes às nossas, e destinadas a voltar connosco para a Metrópole (outra palavra nova, rapidamente integrada no nosso vocabulário): o Mapuço e a Xilau.
Os preparativos da praxe incluíram o encaixotamento da mobília (camas, mesa, etc) pois não se sabia o que nos esperava por lá, muito menos por quanto tempo lá ficaríamos. De facto, nesses tempos pacíficos e sonolentos, era habitual os militares deixarem-se ficar décadas pelas colónias, onde os vencimentos eram superiores e a vida era mais barata que na metrópole.
Isto, para sargentos, como o meu pai, podia fazer a diferença entre uma vida no limiar da pobreza, e um relativo desafogo. Na metrópole, os filhos teriam que, desde cedo, aprender um ofício que lhes permitisse contribuir para as despesas da casa. Na melhor das hipóteses, poderiam ir para o seminário donde sairiam padres ou, ao menos, com alguns estudos. Em África teriam possibilidades de estudar (sem terem que vestir as saias de seminarista) e (quem sabe?) até poderiam chegar um dia à Universidade, onde se produziam (em regime de exclusividade) os canudos, objectos raros e muito eficazes naqueles tempos.
Para os oficiais, as comissões serviam de trampolim para cargos políticos, muitas vezes na administração colonial, para uma mais rápida ascensão na carreira militar ou simplesmente para satisfação do espírito de aventura em caçadas e safaris.
Muitos desses militares por lá ficaram, nem todos enriqueceram. Alguns, minados pelo paludismo, pela bilharziose, pelas biliosas, pela doença do sono, pela sífilis, tiveram um fim de vida muito diferente do que imaginaram quando rumaram a África.
Pensando numa estadia prolongada, um dos produtos que fazia sentido levar era o azeite, latas e mais latas de azeite, não na moderna embalagem de supermercado mas em lata de vinte litros, tipo embalagem hospitalar. Na altura estranhei imenso que em Angola não houvesse azeite (nem vinho), quando as informações que íamos recolhendo[3] eram unânimes em afirmar que a terra era muito fértil, “espeta-se um pau de vassoura na terra, e dias depois já tem raízes e folhas”. Ainda mais estranhei quando me explicaram que a vinha e a oliveira se davam perfeitamente no sul de Angola, mas o Salazar não as deixava plantar. O vinho dava de comer a um milhão de portugueses[4] e era preciso evitar a concorrência; com o azeite, a lógica seria a mesma.
Só que Tavira estava a dois passos[1], pelo menos estava dentro do universo atingível e conhecido, e a África era um mistério. Era verdadeiramente um outro mundo.
Daí em diante, respirámos África, levámos África para a escola, comemos com ela à mesa, levámo-la para a cama, sonhámos com ela. O que os nossos pais sabiam de Angola, outra palavra mágica que progressivamente foi substituindo África, era muito pouco. Muitas vezes, as nossas perguntas fantasiosas eram complementadas com as fantasias deles. Poucas eram respondidas com informações precisas e muitas outras desencadeavam um rosário de avisos e conselhos: cuidado com os insectos (podem picar), cuidado com as cobras (podem ser víboras, muito venenosas), com os cães, gatos e macacos (podiam ter raiva), com os rios (têm crocodilos e hipopótamos), com os pretos[2] (parece que alguns ainda eram antropófagos)...
Na minha imaginação, íamos viver para uma terra com árvores imensas, donde pendiam lianas, cada uma delas com um imponente macacão na ponta. As casas eram palhotas construídas à beira rio onde deslizavam lentos troncos de árvore, dentre os quais eu tentava descortinar os inevitáveis crocodilos.
Dos pretos tinha uma ideia confusa (cafres seminus espreitando das moitas, de lança em riste, osso atravessado na trunfa e grandes argolas pendentes das orelhas) que acabou por se fixar em duas personagens imaginadas, com idades semelhantes às nossas, e destinadas a voltar connosco para a Metrópole (outra palavra nova, rapidamente integrada no nosso vocabulário): o Mapuço e a Xilau.
Os preparativos da praxe incluíram o encaixotamento da mobília (camas, mesa, etc) pois não se sabia o que nos esperava por lá, muito menos por quanto tempo lá ficaríamos. De facto, nesses tempos pacíficos e sonolentos, era habitual os militares deixarem-se ficar décadas pelas colónias, onde os vencimentos eram superiores e a vida era mais barata que na metrópole.
Isto, para sargentos, como o meu pai, podia fazer a diferença entre uma vida no limiar da pobreza, e um relativo desafogo. Na metrópole, os filhos teriam que, desde cedo, aprender um ofício que lhes permitisse contribuir para as despesas da casa. Na melhor das hipóteses, poderiam ir para o seminário donde sairiam padres ou, ao menos, com alguns estudos. Em África teriam possibilidades de estudar (sem terem que vestir as saias de seminarista) e (quem sabe?) até poderiam chegar um dia à Universidade, onde se produziam (em regime de exclusividade) os canudos, objectos raros e muito eficazes naqueles tempos.
Para os oficiais, as comissões serviam de trampolim para cargos políticos, muitas vezes na administração colonial, para uma mais rápida ascensão na carreira militar ou simplesmente para satisfação do espírito de aventura em caçadas e safaris.
Muitos desses militares por lá ficaram, nem todos enriqueceram. Alguns, minados pelo paludismo, pela bilharziose, pelas biliosas, pela doença do sono, pela sífilis, tiveram um fim de vida muito diferente do que imaginaram quando rumaram a África.
Pensando numa estadia prolongada, um dos produtos que fazia sentido levar era o azeite, latas e mais latas de azeite, não na moderna embalagem de supermercado mas em lata de vinte litros, tipo embalagem hospitalar. Na altura estranhei imenso que em Angola não houvesse azeite (nem vinho), quando as informações que íamos recolhendo[3] eram unânimes em afirmar que a terra era muito fértil, “espeta-se um pau de vassoura na terra, e dias depois já tem raízes e folhas”. Ainda mais estranhei quando me explicaram que a vinha e a oliveira se davam perfeitamente no sul de Angola, mas o Salazar não as deixava plantar. O vinho dava de comer a um milhão de portugueses[4] e era preciso evitar a concorrência; com o azeite, a lógica seria a mesma.
E assim, um belo dia partimos para Lisboa, com armas e bagagens, onde embarcámos no Quanza, venerável banheira prestes a fazer trinta anos, mas que ainda faria mais uma década inteirinha antes de passar à reforma[5].
Depois dos enjôos habituais no início da viagem, escalámos Las Palmas e Ponta Negra antes de tocar os portos angolanos de Luanda e Lobito, para finalmente sairmos em Moçâmedes, nosso porto de destino. Lembro-me de ter estranhado ver tão poucos brancos em Ponta Negra (no então Congo Francês, futuro Congo Brazzaville, depois República Popular do Congo), em contraste com as cidades angolanas que escalámos, onde se viam quase tantos brancos como pretos, e nem todos aqueles aparentavam um desafogo por aí além.
Aliás, nos porões do Quanza, em beliches empilhados na periferia interior dos porões, na chamada 3ª classe suplementar, viajou uma malta barulhenta e de “garrafão em punho”, que se destinava a um colonato qualquer (creio que era a Cela, mas não estou certo). Como mais tarde viria a confirmar, o colono típico pouco se distinguia do nativo[6], excepto na cor da pele. Não é de estranhar, pois, que esta característica assumisse por vezes uma importância decisiva nas relações do colono, branco, com o nativo, preto...
Em Moçâmedes estivemos poucos dias, durante os quais pouco mais fizemos que passear e matar o tempo, mas que me proporcionou o primeiro contacto com o deserto. Não tivemos que ir longe, pois a periferia da cidade era um imenso areal que se afastava do mar, ao contrário dos areais a que estávamos habituados.
Finalmente chegou o dia de S. Comboio, e lá fomos, serpenteando serra da Chela acima, até Sá da Bandeira, sede do distrito da Huíla, onde iríamos residir durante os próximos tempos, pouco mais de dois anos.
A linha do Caminho de Ferro de Moçâmedes tinha sido poucos anos antes alargada para a bitola africana (1,067 m), pelo que a viagem não teve o toque de aventura dos tempos antigos. Até 1954, a linha tinha bitola reduzida (60 cm), e os combóios eram pouco mais que brinquedos. Nas subidas mais íngremes os passageiros tinham que descer das carruagens e subir a encosta a pé, enquanto o comboiozinho, mais aliviado, resfolegava serra acima. Quando se chegava a um troço mais plano, os passageiros voltavam a ocupar os seus lugares e a viagem prosseguia normalmente.
Parte do material circulante de bitola reduzida ficou em Sá da Bandeira, com o objectivo de recolher a um museu que, entretanto, seria criado. Até lá, ficou num descampado, não muito distante do Liceu, onde fui visitar as locomotivas e carruagens, pouco maiores que as que circulam no Jardim Zoológico de Lisboa.
. . . . . . . . .
NOTAS:
[1] Naquele tempo, 1957, ir de Lagos a Tavira era uma viagem e tanto, que não se fazia por dá cá aquela palha...
[2] Deixo desde já assente que não me referirei às pessoas de raça negra como negros, nem como pessoas de cor, indígenas, autóctones, nativos, melanodérmicos, ou outro qualquer eufemismo. Referir-me-ei a eles, na maioria dos casos, simplesmente como pretos, por contraposição a brancos. Estou consciente de que esse termo, nos dias de hoje, tem uma carga pejorativa considerável. Não é minha intenção ofender ninguém, mas também não é minha intenção usar outra qualquer designação (como, por exemplo, o idiota pessoa de cor), cuja correcção política mudará, certamente, com a próxima moda que vier dos States...
[3] Como colonos em perspectiva, naturalmente começámos a contactar com pessoas conhecidas (ou conhecidas de conhecidos nossos) que tinham estado em África ou que tinham lá parentes.
[4]
Este condicionalismo protegia, naturalmente, os portugueses de Portugal
(ou de primeira) da concorrência dos portugueses das colónias (de
segunda, os brancos lá nascidos; de terceira os “de cor” assimilados). [2] Deixo desde já assente que não me referirei às pessoas de raça negra como negros, nem como pessoas de cor, indígenas, autóctones, nativos, melanodérmicos, ou outro qualquer eufemismo. Referir-me-ei a eles, na maioria dos casos, simplesmente como pretos, por contraposição a brancos. Estou consciente de que esse termo, nos dias de hoje, tem uma carga pejorativa considerável. Não é minha intenção ofender ninguém, mas também não é minha intenção usar outra qualquer designação (como, por exemplo, o idiota pessoa de cor), cuja correcção política mudará, certamente, com a próxima moda que vier dos States...
[3] Como colonos em perspectiva, naturalmente começámos a contactar com pessoas conhecidas (ou conhecidas de conhecidos nossos) que tinham estado em África ou que tinham lá parentes.
[5]
O Quanza tem uma história peculiar: foi o único navio que Portugal
recebeu a título de reparações de guerra, por conta de algumas unidades
afundadas pela marinha alemã no final da Grande Guerra. Foi lançado à
água em Hamburgo no 1º de Junho de 1929, e foi-lhe dado o nome de
Portugal. Pouco depois descobriu-se que já havia um Portugal nos
registos náuticos do país, de modo que foi preciso arranjar-lhe à pressa
outro nome. E assim, quando o navio foi entregue à Companhia Nacional de Navegação,
em 5 de Setembro de 1929 já não era Portugal, mas Quanza, nome que
manteve até ser abatido, e vendido a um sucateiro de Bilbau, em 1968.
[6]
Nesta fase da minha vida, as palavras novas surgiam em catadupas,
primeiro as portuguesas, a seguir as aportuguesadas do mumuila e depois
as pertencentes a este dialecto.
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