Gilberto Freyre no Deserto do Namibe
Aspectos Gerais de um Processo
Agradeço à Comissão Organizadora das Comemorações
Henriquinas em Portugal, presidida pelo erudito Professor Caeiro da
Matta, o convite extremamente honroso que me faz participar, com esta
conferência de carácter universitário, nas mesmas comemorações. Agradeco
a S. Ex.a o Embaixador do Brasil sua presença ilustre nesta reunião.
Vejo com particular agrado, entre os presentes, homens públicos e
intelectuais tão modernos nas suas idéias quanto fiéis nos seus
sentimentos às melhores tradições henriquinas. Também aqui se acham
homens de estudo vindos de outros países: figuras notáveis pelo saber,
que estão em Lisboa para prestar homenagem à memória daquele que soube
ser, em Sagres, amigo de sábios de várias procedências. Meus
agradecimentos se estendem a todo o selecto público que aqui se reúne
hoje para ouvir a palavra de um conferencista nada eloquente sobre um
tema que, sendo principalmente técnico, não se prestaria, aliás, à
retórica das orações congratulatórias. Nem sou orador nem estimo tal
espécie de eloquência. Meu empenho de homem de estudo, de tal modo
desejoso de independência que nem aos compromissos permanentes de
cátedra ou às responsabilidades intelectuais de professor universitário
se tem deixado prender - donde não ostentar titulos ou graus
acadêmicos,embora não os repudie nos momentos justos, nem buscar
condecorações oficiais - vem sendo, em face dos valores ibéricos, em
geral, e portugueses, em particular (dos quais venho há anos me
ocupando), antes o de procurar reabilitá-los contra exageros
negativistas que o de exaltá-los, além da análise ou da intepretação
crítica, com o fervor dos apologistas apenas líricos quando não sómente
detirâmbicos.
Compreende-se assim que não agrade nem a uns nem a
outros desses extremistas; e que a maior receptividade intelectual às
minhas idéias e aos meus trabalhos sobre tais assuntos venha sendo antes
dos meios não-ibéricos-ainda há pouco das universidades alemãs-que de
alguns dos ibéricos. Meu afã tem sido-desculpai esta introdução
deselegantemente autobiográfica - e continua a ser o de procurar
analisar, interpretar e situar, através de uma antropologia ou
sociologia que há dois meses, em Paris, o pensador Jean-Paul Sartre, ao
comentar generosamente, antes de partir para o Brasil, um dos meus
trabalhos, considerava existencial, valores por muito tempo julgados
apenas abstractamente por uns ou sómente emocionalmente por outros; e
negados ou exaltados conforme a exclusividade ou a predominância
exagerada de um desses critérios. é um afã crítico, um ânimo análitico,
um esforço de compreensão a que não tem faltado, admito, amor. Algum
amor. Talvez, muito amor. Menos, porém - espero -, o amor que cega que o
amor que concorre para esclarecer.
Uma advertência: a de que emprego o adjectivo
luso-tropical para designar a comunidade de língua portuguesa, por
considerar que, nessa comunidade, as predominâncias são hoje
luso-tropicais. 0 próprio Portugal europeu é considerado, sob esse
critério sociológico de predominâncias, um trecho da Europa tocado em
seu físico pelo Trópico e colorido consideravelmente, em sua estrutura
social e em sua configuração cultural, por influências absorvidas de
civilizações ou culturas tropicais.
Integração de racas autóctones e de culturas diferentes da europeia na Comunidade Luso-Tropical: aspectos gerais de um processo
Integração significa, em moderna linguagem
especificamente sociológica, aquele processo social que tende a
harmonizar e unificar unidades diversas ou em conflito, sejam essas
unidades elementos de personalidade desgarrados ou desintegrados-assunto
mais psiquiátrico que sociológico-, indivíduos com relação a outros
indivíduos ou a grupos, grupos com relação a outros grupos. Integrar
quer dizer, na mesma linguagem especificamente sociológica, unir
entidades seperadas num todo coeso, um tanto diferente da pura soma das
suas partes, como se verifica quando tribos ou estados e até nações
diferentes passam a fazer de tal modo parte de um conjunto, seja
nacional ou transnacional, que dessa participação resulta uma cultura
senão homogénea, com tendência a homogénea, formada por traços
mùltuamente adaptados-ou adaptáveis-uns aos outros. Assim compreendida, a
integração contrasta com a subjugação de uma minoria por uma maioria;
ou-pode-se acrescentar-de uma maioria por uma minoria, contrastando
também com a própria assimilação.
Sirvo-me, em grande parte, nestas considerações
iniciais sobre um processo hoje tão em foco - com a crise
franco-africana, principalmente - de definições, já clássicas, de Watson
e de Coyle, consagradas pelo Professor Henry -Pratt Fairchild no seu
Dictionary of Sociology. Em grande parte, porque, ao apresentá-las,
apresento-as acrescentando-lhes palavras em que se reflectem, sendo
conclusões, sugestões derivadas de um já longo estudo pessoal dos mesmos
processos, no qual a matéria principal de observação vem sendo, em
relação a grupos não-europeus e a culturas não-europeias, a hispânica e,
dentro dessa particularização, especialmente a portuguesa em relação
com os mesmos povos e com as mesmas culturas.
Assim qualificadas as expressões
<>, <>,
<>, vê-se que, no sistema de relações do
Português com grupos não-europeus e com culturas não-europeias, embora
se tenha verificado por vezes, na. história dessas relações, subjugação
da mais crua de não-europeus por portugueses - que o diga o exemplo
do<> - e, outras tantas vezes,
assimilação da mais intencionalmente absorvente - do que é exemplo,
ainda hoje, a quase glorificação, no direito ultramarino de Portugal, da
figura do <> -, a tendência mais característica
do mesmo sistema vem sendo no sentido da <>.
Integração perturbada, quer no Oriente, quer noutras áreas de contacto
do Português com não-europeus, por essas duas tendências, sem que,
entretanto, em nenhuma área das mais importantes ou em nenhuma fase das
mais expressivas da expansão lusitana em espaços não-europeus, essa
perturbação tenha ido ao extremo de tornar o método de subjugação
violenta de povos estranhos ou de sistemática assimilação de culturas
exóticas a constante no sistema das relações do Português com esses
povos ou com essas culturas.
É comum referirem-se historiadores, antropólogos e
sociólogos ao contacto de europeus com não-europeus como expressão de um
especialíssimo processo que, não chegando a ser nem de subjugação nem
de assimilação, menos ainda de integração, poderia ser caracterizado
como sendo, ou tendo sido, de europeização. A tendência para a
europeização raramente deixou de assinalar as relações dos Portugueses
com não-europeus, embora a alguns de nós pareça que o empenho da gente
lusitana, ao tomar contacto com esses povos, tenha sido, quase sempre,
mais o de socialmente cristianizá-las que o de culturalmente
europeizá-las. 0 que talvez se deva antes a um retardamento que a um
adiantamento na cultura dos Portugueses, que, a partir do século XVI ou
desde esse século, vem sofrendo a competição, que em algumas áreas se
tornou vitoriosa, da parte de outros europeus. Mesmo assim, criaram, no
Oriente, uma Índia mais cristocêntrica que etnocêntricamente portuguesa,
em Macau, uma pequena ilha socialmente cristã ou para-cristã e étnica e
culturalmente sino-lusitana, no Brasil e nas Áricas, sociedades
cristocêntricas em suas predominâncias de comportamento, embora de modo
algum de todo portuguesas na composição étnica de suas populações ou
sequer de suas élites ou na consubstanciação das suas culturas, de
formas iniciais on básicas abertas a substâncias diferentes das
europeias.
Que espécie de retardamento de cultura-retardamento com
relação a povos europeus seus vizinhos e, desde o século XVI e
principalmente desde o XVII, seus rivais, nas aventuras de expansão em
espaços não-europeus - terá caracterizado o português colonizador, desde
então, de tantas áreas tropicais, em suas relações com essas mesmas
áreas, e Ihe favorecido, nessas e noutras áreas, uma política social de
integração de raças autóctones e de culturas diferentes das europeias
num todo inicialmente europeu, além de cristão, em suas próprias
predominâncias de cultura, mas com tendências a homogéneo sob a forma de
um terceiro tipo de cultura ou de civilização: nem o europeu nem o das
populações incorporadas desde o início na comunidade luso-cristã ? Terá
realmente havido tal retardamento ? Terá sido ele favorável a uma
política social com relação a não-europeus e às suas culturas que nenhum
outro povo europeu conseguiu, até hoje, seguir com o mesmo êxito alcançado pelo Português sob a forma de uma política de integração ?
Sou dos que admitem ter havido tal retardamento; e, por
minha conta, vou além: aventuro-me a sugerir ter sido um retardamento,
esse - se é que realmente houve - antes vantajoso que desvantajoso para
as relações do Português com não-europeuse para a política de integração
que, mais do que qualquer outra, vem caracterizando essas relações.
Mais do que as violências de subjugação. Mais do que as tendências à
pura ou sistemática assimilação do exótico ao castiço.
De que modo se teria retardado Portugal com relação ao
adiantamento alcancado pelo Norte da Europa, ao definir-se a fase mais
activa de expansão dessa Europa e da ibérica em espaços não-europeus?
Ter-se-ia retardado principalmente no tocante à chamada Revolução
Industrial que, quase de súbito, alterou profundamente - todos o
sabemos-, naquela Europa - a do Norte -, as relações entre classes e
entre indivíduos. Relações que, entretanto, continuaram na Europa
ibérica, sendo as mesmas da fase mais caracteristicamente pré-industrial
e pré-burguesa, outrora comum a toda a Europa cristã, mais semelhantes
às daquela fase que parecidas com as da nova: nova e renovadora.
Renovadora, sobretudo, das sociedades norte-europeias tornadas, pelo
Industrialismo e pelo Protestantismo, além de bíblicas, isto é,
partidárias da leitura e interpretação da Biblia pelo indivíduo médio e
apenas alfabetizado, adeptas de uma intensa valorização não só do
indivíduo, em geral, como desse individuo médio, em particular, de
repente investido, por essas novas circunstâncias e por essa nova
filosofia social, de responsabilidades até então desempenhadas por
entidades especializadas em dirigir ou orientar o conjunto social,
enquanto a gente média como que se sentia, quase toda, socialmente
segura e psicamente satisfeita na sua situação de gente dirigida ou
orientada.
Com as novas responsabilidades de que se viu investida,
a gente média parece ter-se sentido, pelo menos durante um período
considerável de tempo social, insegura; e com esse sentimento de
insegurança a respeito do seu próprio valor e da sua capacidade de
dirigir-se a si mesma é que teria passado a ser o principal elemento
representativo não só da Europa como do Cristianismo junto a
não-europeus. Sua superioridade com relação a todos esses não-europeus
ostensivamente se manifestaria em suas novas técnicas de produção e
industrial; e em suas noções de mensuração de tempo – no tempo
cronométrico; e com relação a muitos dos mesmos não-europeus, serem,
como cristãos reformados, indivíduos biblíco, alfabetizados e até
literários, no sentido antropólogico da palavra; capazes, portanto, de
um saber de que os analfabetizados eram incapazes. A tal superioridade
corresponderia o facto biólogico de serem brancos: outra ostensiva
insígnia de superioridade a distingui-los dos não-europeus rústicos,
anlfabetos, pré-literários.
Seriam, porém, superioridades todas essas que
precisariam de ser afirmadas, entre inferiores, por superiores não de
todo de ser afirmadas, entre inferiores, por superiores não de todo
seguros de ser superiores a tais inferiores. O burguês norte-europe, por
vezes pedantemente bíblico no seu cristianismo reformado e
enfáticamente neo-industrialna técnica de produção económica - - uma
gente média -, parece ter precisado de reagir contra o sentimento de
insegutança, característico, aliás, de todo indivíduo ou de todo grupo
novo no poder, na cultura e na riqueza, exagerando-se nas manifestações
ostensivas de sua superioridade. Uma das evidências de superioredade
teria sido, para aquele norte-europeu, desde o século XVI e
principalmente desde o XVII, desgarrado entre não-europeus, a que
estaria a olhos vistos na sua brancura de pele e nos seus
característicos de raça.
Essas especulações sobre dois passados europeus,
contraditórios em cários pontos e que se manifestamram em dois
comportamentos, também em vários pontos contraditórios, de colonizadores
europeus em face de populações e de culturas não-europeias de espaços
não-europeus, são especulações de carácter, senão sociológico,
para-sociológico, que se baseiam em factos irrecusáveis, característicos
dos mesmos dois passados e dos mesmos dois comportamentos e que nos
permitem sugerir – ficando a sugestão a depender, para a sua maior
validade como chave de interpretação sicial, de minucioso estudo
histórico do assunto – Ter sido um desses comportamentos, em seus
começos, característicamente pré-burguês, o outro, também em seus
começos, característicamente neo-burguês. O pré-burguês – pré-burguês
nas suas predominâncias e não de todo, como não eram de todo
neo-burguêses dos séculos XVI ao XIX os Norte-Europeus, tendo havido
entre eles até no século XIX sobrevivências de cultura pré-burguesa –
ter-se-ia manifestado num sentimento generalizado de segurança do
Europeu cristão em face de povos não-cristãos, reforçado em muitos
portugueses e espanhóis pelo seu já consolidado triunfo de povos
pré-burgueses, cavalheirescos, sobre os Mouros. Esse sentimento de
segurança teria favorecido o contacto íntimo de portugueses, como
europeus, com povos não-europeus e com suas culturas: contacto também
favoracido pela circunstância de grande parte dos Portugueses e dos
Espanhóis que começaram a se espalhar, desde o século XVI, por espaços
não-europeus erem sido homens analfabetos, cristãos orais e folclóricos e
não bíblicos; e, por conseguinte, em situação de muitos mais fraterna e
fàcilmente se entenderem com povos não-europeus, quer dos chamados
primitivos, quer dos denominados civilizados (entre os quais pouco eram
os grupos sociològicamente literários), do que os homens médios da
Europa do Norte: cristãos hirtamente bíblicos e inseguramente
neo-burguês – além de europeus e de brancos condicionados também por
essas duas situações, então novas para eles: a de cristãos bíblicos e a
de burgueses – nas predominâncias das suas atitudes e do seu
comportamento.
Acresce que, como povo ainda, em grande parte,
predominantemente pré-burguês e pré-industrial nas suas atitudes, o
Português que, a partir principalmente do século XVI, se tornou
coloizador de espaços não-europeus adoptou, nesses espaços, quando neles
fundou grandes plantações de cana-de-açúcar, um tipo de escravidão
também predominantemente pré-burguês e pré-industrial em seus
característicos; e em nítido contraste com o tipo de escravidão
predominantemente industrial e burguês que seria, quase sempre, o
adoptado por outros europeus nos mesmos espaços. Desse pré-burguesismo,
assim como de outros factores que não interessa aqui considerar,
resultou, evidentemente, um sistema especialíssimo de relações de
senhores com escravos nos espaços não-europeus marcados pela presença
portuguêsa; e à sombra do qual foi possível a tendência para a
subjulgação de não-europeus por dominadores europeus e o próprio pendor
para a assimilação de não-europeus num tipo inflexìvelmente europeus de
civilização. Tais tendências, porém, se adoçaram frequentes vezes, numa
outra tendência para a integração de dominadores e de dominados, de
brancos e povos de cor, de europeus e não-europeus num novo tipo de
sociedade e num novo tipo de civilização, caracterizado pela
presença, nessa terceira sociedade e nessa terceira cultura, dos povos
de cor e das culturas não-europeias. Não só presença: participação.
Já procurámos considerar o caso particularmente
brasileiro de interpretação da tradição henriquina de seguro social dos
cativos, dando-se oportunidade de ascensão a muitos deles. Consideremos,
agora, o assunto em alguns dos seus aspectos gerais, sem nos
afastarmos, entretanto, desse expressivo exemplo.
A preocupação com a segurança social dos cativos, dos
trabalhadores, dos neo-cristãos, vindos de culturas onde civilizações
tropicais, diferentes das europeias, caracterizou, nos seus dias por
assim dizer castiços, o sistema tanto português, em geral, como
brasileiro, em particular, de escravidão antes patriarcal do que
industrial: a utilizada por portugueses e, independente o Brasil do
Estado mas não da comunidade ou da cultura predominantemente portuguesa,
por brasileiros, na colonização agrária de regiões tropicais. Sistema
que, com todas as suas falhas, contribuiu para a integração não só do
Português no Trópico, como do nativo do Trópico nos estilos de vida
levados da Europa a regiões tropicais pelo Português, em particular, e
pelo Hispano, em geral.
Note-se que, no Brasil, até o fim do século XIX se
conservou, com a relativa protecção do escravo pelo senhor patriarcal,
de modo afectivo e familiar -e com o compadrio a ligar até senhores e
escravos -, um sistema de seguridade social condicionado pelo tipo
patriarcal, doméstico, persistentemente árabe, renitentemente
pré-industrial e pré-burguês, de escravidão. 0 tipo de escravidão que o
Português adoptara do Mouro para, sobre essa técnica de trabalho e,
principalmente, sobre esse sistema de relações entre europeus e grande
parte de não-europeus - os cristianizados -, desenvolver sua expansão
nos Trópicos.
Na África e no Oriente, a extinção como que prematura
do regímen patriarcal de escravidão não permitiu que se processassem do
mesmo modo que no Brasil nem a integração do não-Europeu pelo Europeu em
ambiente familiar, patriarcal doméstico, nem a protecção do trabalhador
não-europeu pelo senhor europeu ou cristão. 0 facto de se ter o regímen
de trabalho escravo, de feitio patriarcal e adoçado por uma inspiração
cristã vinda do Infante, prolongado no Brasil até o fim do século XIX parece
a alguns de nós, investigadores do assunto, ter representado evidente
vantagem para a consolidação, no Brasil, de um tipo luso-tropical de
civilização, quase sempre caracterizado, quer pela protecção do escravo
pelo senhor, quer pela oportunidade concedida ao escravo de concorrer
para um novo tipo de convivência, com valores e técnicas especificamente
tropicais.
Pode-se afirmar do método de integração de não-cristãos
em sistema luso-cristão de convivência, através da escravidão de tipo
patriarcal, com a condição de escravo modificada ou adoçada pela de
afilhado do senhor, que, tendo sido um método de assimilação cultural e
de protecção social inaugurado pelo Infante D. Henrique no século XV, se
prolongou no Brasil, ainda mais do que na África e no meio de
deformações e de deficiências consideráveis, até o século XIX. A
despeito de todas essas deformações e de todas essas deficiências, foi
graças principalmente a esse método que, dentro do sistema brasileiro de
organização patriarcal de economia, de sociedade e de cultura, se
processou a integração do Africano, escravo ou descendente imediato de
escravo, num tipo de comunidade ou de sociedade e num estilo geral de
cultura - comunidade e estilo predominantemente euro-cristãos - de que
ele, de ordinário, o mesmo africano passou a sentir-se participante.
A instituição do afilhado, a do dote, o compadrio
agiram poderosamente, no Brasil e noutras áreas de formação portuguesa,
no sentido de tornar possíveis relações de tal modo afectivas, de tal
maneira complexas - subtilmente psico-sociais até - entre senhores e
escravos e entre descendentes de senhores e descendentes de escravos e,
também, a favor da ascensão dos indivíduos e subgrupos socialmente mais
fracos, favorecidos, nessa ascensão, pelo socialmente mais forte, que a
fórmula <>, proposta por alguns para o
esclarecimento ou a interpretação do desenvolvimento social brasileiro,
resulta mecânica, simplista e inadequada. A interpretação do mesmo
desenvolvimento social brasileiro pelo complexo Casa -Grande &
Senzala - preferida por outros analistas desse desenvolvimento - está
longe de ser apenas uma nova expressão verbal ou simbólica dessa
fórmula. é mais compreensiva do que ela pela importância que atribui a
um conjunto de relações criadas não apenas pela subordinação de escravos
a senhores no plano da actividade económica e da hierarquia social, mas
por uma vasta e subtil interpenetração de atitudes, valores, motivos de
vida, estilos de cultura - os senhoris e os servis, os europeus
e os não-europeus - condicionados por um tipo patriarcal de
convivência, particularmente favorável a tal interpenetração.
Desse tipo patriarcal de convivência é que se pode
afirmar ter nascido com a política social de integração de não-europeus
em sistema luso-cristão e, dentro desse sistema de protecção a
neo-cristãos, inaugurada no século XV pelo Infante D. Henrique, ao
procurar dar sentido amplamente cristão às primeiras relações entre
cristãos e não-cristãos, entre europeus e não-europeus - e não apenas
entre senhores e escravos - na África ocupada pelos Portugueses e entre
os portugueses que acolheram em suas casas patriarcais os primeiros
cativos vindos da África. Desenvolveu-se o sistema no Brasil; mas a sua
origem parece a alguns de nós inconfundível: a política inaugurada pelo
Infante no remoto século XV.
Venho sugerindo neste ensaio, já demasiado longo para
os seus modestos objectivos, que as normas de segurança do trabalhador
cativo e de integração desse cativo ou desse trabalhador, quando exótico
ou de origem exótica, no sistema português patriarcal e cristão de
família e de sociedade, traçado pelo Infante D. Henrique, informaram, em
grande parte, o desenvolvimento dos métodos escravocráticos de
protecção do escravo pelo senhor e de incorporação do mesmo escravo à
família patriarcal do mesmo senhor seguidos pela gente lusitana na sua
consolidação sócio-económica em áreas tropicais. Principalmente no
Brasil.
Que esses métodos, de possível origem maometana mas
cristianizados de todo pelo Infante, distinguiram o sistema
escravocrático luso-tropical dos demais sistemas de escravidão
euro-tropicais, parece-me evidente. São muitos os depoimentos de
estrangeiros idóneos que assinalam tal diferença, em face de uma maior
benignidade - destacada por esses estrangeiros da parte de portugueses e
de brasileiros estabelecidos patriarcalmente em áreas tropicais com
fazendas e engenhos, com relação a seus escravos, vários dos quais
tornados pelos patriarcas de casas-grandes, pessoas de casa, tratados
pela gente senhoril como membros da família e feitos participantes
integrais, senão das crenças católicas, dos ritos católicos, de
baptizados, de crisma, de casamento, de morte, da liturgia da Igreja e
das principais normas cristãs de comportamento e de convivência.
A não poucos desses escravos no Brasil, quer colonial,
quer imperial, foram dadas, dentro da tradição henriquina, oportunidades
de ascensão social pelo casamento e pela instrução, iguais ou quase
iguais, às que se concediam aos filhos brancos das famílias a que
pertenciam sociològicamente os cativos.
Não são poucos os depoimentos idóneos que registam tais
facilidades, mercê das quais numerosos filhos de escravos, de
indivíduos nascidos escravos, se tornaram, na sociedade brasileira,
rivais de brancos senhoris, ou de origern senhoril, nas funções que Ihes
foi dado desempenho e no prestígio que alcançaram através do desempenho
de tais funções.
Em trabalho universitário de mocidade, escrito e
publicado em língua inglesa, procurei salientar alguns dos aspectos que
parecem ter diferenciado o sistema escravocrático brasileiro e não só é a
caracterização válida para o sistema que se possa denominar brasileiro,
em particular, como para o português, em geral - dos demais sistemas
escravocráticos seus contemporâneos, através de uma maior beniguidade da
parte dos senhores nas relações com os escravos. Sugeri mais que essa
benignidade se afirmava na comparação do tratamento do escravo tipico
das áreas de formação portuguesa - típico porque vários foram os
escravos, não só no Brasil, como em Angola e em Moçambique, vítimas de
maus senhores - pelo senhor brasileiro ou português típico e a cuja
família o mesmo escravo sociològicamente pertencia - com o tratamento
recebido de industriais pelos operários, nas fábricas europeias -
principalmente inglesas - dos primeiros decénios do século XIX. A tese,
na sua primeira parte, foi, senão impugnada, posta em dúvida por um
generoso intérprete do que se pode considerar a filosofia de história
que meus trabalhos sugerem: o Professor Lewis Hanke, neste particular
seguido recentemente pelo também professor James Duffy.
Não me parece, porém, que os eruditos de Harvard tenham
apresentado um só argumento que de facto comprometesse aquela tese. Sua
atitude é a de quem, sem conhecimento especializado do assunto, reluta
em aceitar uma <> difícil, com
efeito, de ser compreendida sem um estudo das particularidades que a
explicam histórica e sociològicamente.
É essa benignidade que me parece, hoje, dever
ser associada às normas de segurança do trabalhador e de integração do
cativo exótico ou de origem exótica num sistema luso-cristão de
sociedade ou de comunidade traçadas pelo Infante D. Henrique. 0 exemplo
maometano de escravidão doméstica, familiar e patriarcal, não Ihe teria
sido estranho. Mas ele soube traçar, de modo nítido e inconfundível, uma
política caracterìsticamente cristã e portuguesa de relações de cativos
com senhores, de africanos com europeus, de que evidentemente se
impregnou grande parte do sistema de colonização portuguesa em sua
tendência para se tornar a despeito do regime de trabalho escravo que
por tanto tempo vigorou nas áreas sob seu domínio, um sistema
integrativo. Embora tenhamos de admitir graves desvios do espirito
henriquino no desenvolvimento desse sistema - Afonso de Albuquerque
chegou a ser, neste particular, na Índia, uma espécie de anti-Henrique -
a verdade é que as normas henriquinas se estenderam da Europa vizinha
da África negra aos trópicos mais distantes, marcados pela presença
portuguesa. Principalmente ao Brasil.
Ainda há pouco, lendo o livro, publicado em Londres em
1878, em que os ingleses C. Barnington Brow e William Lidstone registam
suas observações do Brasil que conheceram já no fim da era
escravocrática, deparo, à página 26 de Fifteen thousand miles on the Amazon and its tributaries, com
este depoimento - mais um depoimento a ser acrescentado aos vários que
já se conhecem sobre o assunto - a respeito de uma típica fazenda
patriarcal por eles visitada no Norte do então Império: <> but spoke of them
always as belonging to his household.>> 0 método henriquino em
pleno vigor no Brasil escravocrático da segunda metade do século XIX.
Assim se explica - pela sobrevivência, pela
persistência, pela permanência na sociedade, escravocrática é certo,
mas, ao mesmo tempo, patriarcal do Brasil do século XIX, de normas de
tratamento de escravos por senhores vindas de D. Henrique - o facto de
ter havido, com efeito, no Brasil, um regímen de escravidão que de
ordinário ou em parte foi uma escravidão antes doméstica que agrária ou
agrário-industrial; uma função de organização familiar que condicionava a
actividade económica, base sòmente material de sua existência e não
apenas expressão dessa actividade económica independente daquela
organização: uma organização rocada de sugestões cristãs, influenciada
pelo apreço, da parte dos seus dirigentes, por valores dos chamados
espirituais; conservadora de normas de contacto de brancos com pretos
inauguradas pelo Infante.
Não se nega ter o puro afã de dominação política ou de
exploração económica tomado por vezes exagerado relevo no jogo de
relações de portugueses da Europa com não-europeus. Em certas fases ou
circunstâncias tem chegado esse afã a comprometer aquelas constantes de
política social. Não digo, nem nunca ousei dizer, do Português europeu
que vem sendo um povo perfeito em sua política social com não-europeus. 0
que é digno de atenção nessa política é a sua constância - a constância
da sua relativa benignidade - a despeito das imperfeições.
Mais do que nunca saberá de certo o Português
conservar-se fiel às inspirações henriquinas, em vez de procurar, já
agora arcaicamente, seguir, naquelas relações, normas de povos
estritamente europeus - e o Português, sobretudo depois de D. Henrique,
não é povo estritamente europeu - com não-europeus. Seria um desvio
perigoso de tradições vindas dos dias daquele príncipe e desenvolvidas
principalmente no Brasil: uni Brasil tão henriquino no seu
desenvolvimento em democracia étnica e em democracia social.
Fonte: FREYRE, Gilberto. Integração das raças autóctones e de culturas diferentes da européia na comunidade luso-tropical: aspectos gerais de um processo. Lisboa: Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, 1961. 15p.
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