MEMÓRIAS José Carlos Rodrigues
Imbondeiro (foto do autor)
Entrei hoje casualmente no seu Site e devo dar-lhe parabéns pois está
muito bem escrito e documentado com boas fotos.
Em 27 de Outubro de 1975, exactamente da mesma forma e pelos mesmo
motivos de todos que vieram nessa altura, o mesmo já depois de independência, enfim
também tenho as minha Memórias para descrever e vou fazê-lo quando tiver mais tempo.
Tenho 55 anos de idade, nasci em 1951 e saí de Angola há quase 31
anos. O motivo de lhe mandar este mail, são apenas dois e são os factos que mais
marcaram a minha vida: o primeiro, é uma pequena correcção, que de tanto ser repetida
em tudo quanto é livro e até documentação oficial, passou a ser verdade, mas a verdade
e essa, vivi eu e vi com estes olhos que a terra há-de comer, é que os cubanos chegaram
a Angola, não em Outubro mas muito antes, embora já não precisando a data foi em meados
de Agosto de 1975, sempre desmentido por todos o canais oficiais da altura e pelo próprio
"careca" Rosa Coutinho, que exactamente no dia que os cubanos desembarcaram que
foi num sábado, nunca mais esqueço pois foi exactamente em Porto Amboim que eles
desembarcaram em solo angolano.
Eu estava na altura em Novo Redondo onde era o chefe da fábrica de
algodão do Chingo, estava casado há pouco tempo e vivia numa suite do Hotel Senador na
Avenida da Praia.
No dia que fiz um mês de casado em Julho, dia 29, pelas 15 horas da
tarde começaram os tiros em Novo Redondo, obrigando a população a resguardar-se durante
três longos dias no Palácio do Governo à espera de uma coluna militar portuguesa.
Enfim, várias peripécias foram vividas depois disso e acabámos sempre em fuga aos tiros
que no Lobito, para onde fomos, quer em Benguela, quer em Nova Lisboa onde fui sozinho
porque tinha lá deixado o meu carro a reparar e pintar (uma viagem dramática e cheia de
casos onde vi a morte por perto várias vezes).
Mesmo depois disto tudo pensei sempre que sendo angolano deveria ficar
na minha terra. Ajudei muita gente a por os caixotes das suas coisas nos barcos do Porto
do Lobito, mas nunca pensei vir. Entretanto as coisas acalmaram um pouco em Novo Redondo e
eu que tinha prometido e fechar o balanço da empresa onde estava, regressei a Novo
Redondo sozinho e fui terminar o que tinha prometido.
Entretanto, como tinha os meus pais e família em Posto Amboim onde
nasci, ia aos fim de semana para lá e foi num desses fins de semanada de Agosto quando
vim à rua num sábado, vi com os meus olhos todo aquele aparato de militares que se
posicionavam de 100 em 100 metros de metralhadoras apontadas às pessoas, e descarregavam
e arrancavam de imediato para as frentes de combate de Luanda e Huambo, camiões, carros
blindados, tanques e milhares de soldados.
Acredite que ainda hoje vejo e sinto a cena como tal, mais parecendo
que estava a ver aqueles filmes da II Guerra Mundial (o material dos cubanos era muito
parecido e antiquado).
Fiquei quieto e mudo pois nesse dia perdi a esperança de ficar em
Angola e de ver aquela terra evoluir num sentido positivo, convivendo nela toda a
sociedade multirracial que ninguém acreditava que existia, mas quem lá esteve sabe que
era assim e também sabe que hoje seria um verdadeiro país desenvolvido e com 50 ou 60
milhões de habitantes seria mesmo o maior país de África e um dos maiores do mundo. Mas
não deixaram, não quiseram, tiveram medo de mostrar para o resto do mundo que seria
possível viveram brancos negros e mestiços todos juntos viverem em ambiente saudável de
paz em alegria. Não deixaram!!!
Nesse sábado que parece ontem ainda, cheguei a casa e ouvi na rádio
ao almoço exactamente o "careca" (almirante vermelho Rosa Coutinho) dizer aos
jornalista: cubanos em Angola?, vocês inventam cada uma? Nem pensar.
Foi nesse dia que disse ao meu pai português da Sertã que estava
desde 1917 em Angola sem nunca ter vindo mais a Portugal, pela primeira vez: "Pai
isto acabou. Já não vai ter fim e o país está tramado e nós também". Vou
arrumar as minhas coisas e vou na ponte aérea, seja o que Deus quiser mas Angola jamais
será a minha Angola.
O meu pai que sempre nos dissera vocês são angolanos devem lutar e
viver na vossa terra apenas olhou para mim (e ainda hoje choro quando me lembro da sua
cara, choro ainda também) pôs-me as mãos em cima dos ombros e disse: "vai filho,
tu és novo e ainda tens uma vida pela frente, vai e vai de cabeça levantada".
Eu disse-lhe: "pai vamos todos isto não vai ser nada". E ele
disse-me: "eu sou um velho e tenho 75 anos nunca voltei a Portugal também eu não
vou agora a mim eles não me fazem mal precisam de mim mas tu vais e não voltamos a falar
nisto, vais e tratas amanhã de tudo que precisas".
Nesse sábado chorei sozinho nessa praia de Porto Amboim, olhando para
os batelões que descarregavam continuamente o material e os soldados cubanos.
O autor na praia (foto do autor)
É preciso notar que esta costa tinha de praia dum morro ao outro cerca
de 6 km. E deste morro ao outro lado que se vê na outra foto da Vila de Porto
Amboim até ao morro dos "3caminhos" (?) havia mais de 15 km de praias. Uma
verdadeira maravilha da natureza. Também eu eu vi entrar os Cubanos,
penso que os primeiros que puseram pé em terras de Angola, em meados de Agosto de 1975.
Foi por ali que descarregaram todo o seu material bélico e de imediato avançaram para as
frentes dos combates. Não ficaram mais que dois dias em Porto Amboim. Parecendo aquilo
que é, este era o 4º. Porto em tonelagens de cargas e descargas de Angola. Por aqui
passavam todo o café, algodão, óleo de palma e outros que saíam de Angola e entrava o
vinho por exemplo que vinha em barris de madeira. Todos os grandes navios de carga ou
mistos da altura paravam aqui, Ambrizete, Ganda, Pátria, Zaire etc. E ficavam à
cerca de 300 m da praia, sendo depois o transbordo feito por batelões. Nesses dias
trabalhava-se 24 horas sobre 24 horas. Hoje desta bela imagem apenas existe a areia, o
morro, o cais embora maltratado e o mar. Tudo o resto da Restinga, o cinema novo que ali
foi construído e o campo de desportos de salão, tudo desapareceu engolido pelo mar e
pela falta de cuidados. Nada, mesmo nada, desse sítio lindo onde se passaram belos
momentos, ali existe mais.
E assim foi. Saí de Angola depois de vários problemas (tive que
dormir no meu carro uma semana inteira no Lobito para conseguir pô-lo no último navio de
carros que saiu de Angola e no dia 27 de Outro) aterrei no aeroporto de Lisboa com
10.000$00 de Angola e outra de algumas recordações pessoais deixando para trás uma vida
que estava no inicio e bem bonita já, mas sobretudo deixando para trás as ilusões, os
sonhos, a família, os amigos (muitos deles ou quase todos pretos e mestiços) o coração
muito especialmente o espírito, a alma ficou lá e ainda deve andar por lá a vaguear.
Desculpe o tempo que levei a descrever isto mas também um dia terei de
descarregar em memórias escritas todas as emoções que ainda estão acumuladas dentro de
mim me fazem constantemente sofrer e assim há-de ser até à minha morte.
Mas foi exactamente esse sábado de Agosto e esses cubanos que ainda
não estavam em Angola( apenas deviam ser fardas e bonecos de madeira), que decidiram a
minha retirada e cortaram aos pedaços o meu coração de angolano.
Portanto não acredite nas datas dos documentos. Acredite que os
cubanos chegaram a Porto Amboim a primeira terra de Angola a porem os pés (uns dias
depois acho que também desembarcaram na zona do Ambriz e Ambrizete).
Infelizmente tinha fotos deste facto bem como outras colhidas do meu
tempo da tropa no comando chefe da Fortaleza de Luanda, mas tudo por lá ficou e alguns
desses foram destruídos e roubados em dois controles dos pioneiros (miúdos armados em
soldados do MPLA mas que se fosse preciso disparavam sem saber porquê).
Esta é a verdade acredite. Tão verdade que os meus olhos ainda vêem
a imagem e verão sempre.
O segundo facto que queria dizer, era apenas a constatação de que
provavelmente o 25 de Abril ter sido uma guerra de terrorismo ter acabado em Angola.
Entrei para a tropa em 22 de Outubro de 1971 (emocionei-me um bocado depois ao fim destes
anos todos vi hoje aqui no seu Site a foto da porta do Regimento do quartel de Nova Lisboa
onde fiz a recruta) e depois de um mês de mato onde nada acontecia quase sempre, fui
colocado em Luanda na fortaleza como um dos responsáveis da cantina da messe dos
oficiais, assistia e dava apoio às reuniões que lá se faziam com as mais altas patentes
militares, portuguesas e por vezes também estrangeiras com o general Luz da Cunha na
altura e até ao 25 de Abril o Chefe do Estado Maior em Angola.
Além disso também estive destacado alguns meses nos serviços de
psicologia na guerra, também lá na fortaleza e embora sem os poder mostrar porque me
foram destruídos, tive várias vezes na mão cópias dos mapas do controle do terrorismo,
cartas das organizações que apoiavam os movimento turras e outros documentos e posso
afirmar sem dúvidas que em 74 não havia qualquer zona (repito qualquer zona) do
território angolano ocupado por qualquer movimento (UNITA, MPLA, FNLA ou qualquer outro)
e também esses movimentos já não tinham apoios de armas apenas de medicamentos,
cobertores e mantimentos que lhes eram dados pelos americanos, russos, suecos noruegueses
e outros países que pela democracia os apoiavam.
Portanto já não havia guerra. Os movimentos estavam dominados e
passavam fome, apenas fazer combates de emboscadas e fuga em algumas zonas do Leste de
Angola (aliás quem os viu entrar em Angola depois do 25 de Abril) sabe muito bem como
eles se apresentaram, esfarrapados, esfomeados e com uma maioria de canhangulos tendo
apenas o FNLA que recrutou zairenses e recebeu fardas novinhas bem com metralhadoras que
ainda brilhavam. Lembra-se disso com certeza.
Ora bem não havendo guerra em Angola, a paz interessava a quem? E sem
guerra como seria as fortunas que os nossos militaras (alguns claro) fizeram. Então não
havia luta a altura mais indicada para o 25 de Abril. Um dia veremos alguns destes
valorosos e briosos heróis, como Soares, Otelo Saraiva & Cª entrar a história deste
25 de Abril. Agora não me venham é a dizer que se perdeu a Guerra em Angola por isso é
a mentira mais infame que se poderá contar e pelos menos a memória dos que morreram
naquela terra não merecem isso.
Bem já vou longo mais poderia dizer, mas apenas queria referir estes
dois factos. Pelo menos é a minha verdade e não a verdade da história mas quantas
verdades nós aprendemos ao longo dos anos na escola, no liceu e nos livros que são
apenas as verdades possíveis ou as verdades que a política deixou escrever?
Acho que esta pergunta é uma bela forma
de terminar. (...) Nós fomos impedidos de ser um país e quando digo nós, refiro-me aos
que nasceram em Angola e aos portugueses que eram tão angolanos também mas não seremos
nunca impedidos de ter memória, de ter coração, de ter alma, de ter espírito e de ter
saudades.
José Carlos Rodrigues NV034970@netvisao.pt
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