imagem à margem do texto
«Ah,
se eu tivesses menos vinte anos! Que faria ? Havia de pôr os brancos
contra os brancos em África, e os pretos contra os pretos, e brancos e
pretos uns contra os outros e nós haveríamos de sair incólumes no meio
de tudo». Frase proferida por Salazar em 1966 de acordo com o que vem
exarado no livro de Franco Nogueira “Salazar O ultimo combate 1964-1970”
4ªedição ( 2000) da Companhia Editora do Minho S.A.
Nos
Estados Unidos e na Inglaterra é comum usar-se a frase “ fulano tem
esqueletos nos armários”. O que significa? É uma metáfora: quando uma
pessoa fez no passado acções pouco dignificantes ou tem na família
membros que envergonham, de tal maneira que não quer que se saiba,
diz-se que “fulano tem esqueletos nos armários”.
Uma explicação para
esta frase assenta em uma anedota. A netinha pergunta: avozinha, o que é
um amante? Amante, resmunga a avó, lívida, pondo a mão na testa, como
que a recordar-se, e disparando em direcção ao sótão com a presteza que
os anos lhe permitem. Depois de se arrastar pelas escadas, entra no
sótão, vai directa a um grande armário, abre uma das portas e fica
petrificada: de dentro, muito hirto, como é óbvio, cai um esqueleto nu.
Em
África só houve quatro países onde se registaram colonizações
europeias: Argélia,Angola, Moçambique e Zimbabué (ex-Rodésia do Sul).
Nestes países podemos afirmar que houve colonialismo e colonização. Nos
restantes países africanos apenas houve colonialismo. Este verifica-se
quando os metropolitanos não se fixam, apenas desempenham cargos de
funcionalismo, sempre com o fito de um regresso. Há colonização quando
os metropolitanos se fixam com carácter permanente, onde lhes nascem os
filhos e onde procuram o “ultimo refúgio na velhice”. Edificam uma casa
com jardim à frente e horta e pomar no quintal. Há que distinguir entre
colonialismo e colonização; em Angola é fácil distingui-los.
Angola
teria beneficiado imenso se em vez de descolonização tivesse havido um
descolonialismo! Este,sim, acabava com o colonialismo, principal
causador do atraso cultural, económico e, principalmente, social.
O
sótão da história colonial portuguesa tem dois grandes armários: o do
colonialismo e o da descolonização. Armários grandes com trinta
esqueletos. No primeiro, o do colonialismo, jazem quinze esqueletos,
todos começados por C que é a primeira letra de colónia: cidadania,
contrato, centralismo, cultura, comunicações, conhecimento científico da
colónia, centrifugação do capital, crédito, consumo, castigos
corporais, censura, colonatos, cartas de chamada, carências de energia, e
compadrios (concessões, comissões, condicionamentos e cunhas).
Erros
cabeludos que persistiram até ao início do” Tempo Extra”(1961), e
alguns até ao “arriar do glorioso pendão das quinas”. Erros que deixaram
os quinze esqueletos que atestam as causas de todas as tragédias que
viriam a seguir e que, infelizmente, perdurarão durante umas boas (ou
más, se persistir o egoísmo actual dos dirigentes) dezenas de anos.
O
“Tempo Extra” refere-se aos 13 anos finais do colonialismo (1961 a
1974) em que o governo metropolitano finalmente acabou com um cipoal
obsoleto de leis e proibições e tentou desenvolver a colónia. Muito se
fez, mas não foi o suficiente, as partes social e política falharam,
estrondosamente.
Façamos, resumidamente, porque eles serão dissecados
exaustivamente ao longo destas mucandas, a exumação destes esqueletos.
Esta exumação é mais do que legítima, não é que se pretende exumar o
esqueleto do D.Afonso Henriques primeiro rei de Portugal (século12)!
1º) Cidadania.-
é o principal esqueleto do colonialismo Nunca os governos de Lisboa,
até 1961, aceitaram que os africanos tivessem um estatuto de cidadão
pleno. No fim do século 19, e princípios do século 20, os luandenses e
os benguelenses estiveram perto de uma cidadania plena, especialmente
quando a república foi implantada em Portugal em 1910. Talvez por
inspiração dos ideais libertários dos maçons (românticos) esteve-se
perto da liberdade. Fugaz, infelizmente. A influência da oligarquia
colonial, residente em Lisboa-os oligas-, foi superior às boas intenções
da maçonaria. Note-se que, nesta altura, ainda não havia colonos. A
burguesia angolana era, fundamentalmente, africana ou de raiz africana.
As fronteiras de Angola ainda não estavam definidas.
Mas as
esperanças esvaneceram-se, definitivamente, com o povoamento maciço de
europeus a partir de 1920, e depois, fundamentalmente, com o advento da
ditadura em Portugal(1926) cuja base imperial era o Darwinismo Social.
Repetimos que em Luanda e Benguela floresceram as únicas burguesias
africanas em toda a África, com forte incidência de 1860 até 1920. Uma
explicação para o facto de serem cidades que escaparam à senda de
destruições que caracterizou a independência.Uma explicação para o facto
de os seus naturais terem assumido os destinos do país. Não é sem razão
que Benguela é hoje a segunda capital do país; no tempo colonial era
Huambo (ex-Nova Lisboa). Uma explicação para o facto de os militares
portugueses terem favorecido estas burguesias africanas. Os oligas
preferiam esta burguesia "l
usitanizada" aos outros africanos.
Eles lá sabiam porquê, hoje entendem-se, e protegem-se fraternalmente,
dando a ideia de que se odeiam. O Alto-Comissário Rosa Coutinho explica
esta preferência porque acha que eles escrevem poesia em português e
gostam de bacalhau. Almirantemente resumindo: 500 anos de história
acabam numa bacalhoada, seguida de um sarau de poesia.
Os africanos
nasciam com o estatuto de indígena. Como indígenas, não podiam viajar
pelo território, a menos que fossem portadores de uma “autorização do
administrador”. Posteriormente podiam ascender ao estatuto de
“assimilado” caso preenchessem várias condições:
saber falar
correctamente o português, saber ler e escrever e ter uma vida à
europeia, ou seja um casamento monogâmico e uma família organizada.
O
processo de assimilação, para os “indígenas”, era complexo, com “mil e
um documentos”, todos com “assinatura reconhecida”,tão ao gosto do
regime ditatorial que azucrinou os portugueses durante 48 anos. Em 1960,
com estas barreiras, pouco mais de 50 000 tinham conseguido adquirir o
estatuto de assimilado. O indigenato acabou, abruptamente, em 1961.
É
óbvio que a falta de cidadania nunca poderia originar populações
politizadas e com consciência para votarem em referendos ou eleições. É
óbvio que a falta de cidadania deixou os angolanos numa terrível
ignorância em todos os sectores . É óbvio que a falta de cidadania não
origina empresários. È óbvio que a falta de cidadania inviabiliza uma
sociedade urbana. É óbvio que pessoas sem cidadania são uma presa fácil
para propagandas, mentirosas ou oportunistas, que escondem interesses
inconfessáveis.
2º) Contrato.- Este esqueleto surgiu
a reboque do estatuto de indígena. Como os “indígenas” não eram
considerados cidadãos plenos tinham um representante, o curador, com
responsabilidades em todos os trâmites do contrato. Em que consistia o
regime de contrato ? Os”indígenas”, contra a sua vontade, eram sujeitos
ao contrato, e transportados para as pescarias do litoral, para as
fazendas do café, para as roças do litoral, e, principalmente até 1953,
para S.Tomé.
Durante o contrato recebiam roupas, alimentação e um
salário, em muitos casos sob abusos e extorsões que deixaram sequelas
difíceis de sarar. Os que iam para S.Tomé, onde iam ganhar menos do que
na sua terra, raramente regressavam. Henrique Galvão, deputado por
Angola, fartou-se de verberar estas injustiças; nunca foi atendido, pelo
contrário, acabou por ser preso.
Em Angola instalou-se o péssimo
hábito de os colonos irem pedir aos administrativos para arranjarem
pessoal trabalhador. Era um hábito arreigado desde os primórdios e que
nunca sofreu alteração, salvo durante os curtos governos de Norton de
Matos (1912/1914 e 1920/1923). A maioria dos administrativos abominava
esta prática que era imposta pelos “de cima”. Isto acabou em 1961.
Às
vezes o número de contratados era desmesurado: eram os célebres
“contingentes” solicitados através das, também célebres,
“confidenciais”.Como escreveu Adriano Moreira (150) havia um
«...condicionamento de mão de obra indígena consagrado pela doutrina
universitária racista marcelista sobre o papel do indígena na economia, o
trabalho compelido, as culturas obrigatórias, o estatuto de
concessionários refreavam ou anulavam a iniciativa competitiva. Além
disso havia os impedimentos legais à livre circulação dos portugueses
entre as colónias o que matava, na fonte, o aparecimento de uma classe
empresarial».
Os indígenas não podiam viajar para fora da sua área de
residência sem um autorização do administrador do concelho. O fim deste
regime começou com o governo de Venâncio Deslandes em 1961e foi
erradicado com Silvério Marques de 1963 a 1966, tendo provocado a fúria
de alguns colonos e da oligarquia que beneficiavam com ele.
Na
verdade o contrato, assegurado em condições laborais honestas (como
sucedeu após 1961), não é infamante, antes pelo contrário, ele assegura
trabalho a pessoas que dele necessitem e dignifica-as. Trabalhadores
contratados há-os em todo o mundo, nos tempos actuais. O trabalho
sazonal na Europa e nos Estados Unidos é feito por milhões de pessoas,
sem qualquer constrangimento, embora, lamentavelmente, ainda se
verifiquem abusos e violências que nós julgávamos que ficariam
erradicados após a emancipação de África.
No período de compensação,
ou Tempo Extra (1961 a 1974), praticou-se um regime laboral moderno, mas
já era tarde, talvez com mais uns anos e boas ascensões sociais entre
os nativos, se olvidassem as injustiças dos contratos e das
discriminações sociais. Teriam que decorrer, talvez três gerações, para
que as injustiças se esbatessem. Não houve tempo(13 anos) para se
esquecerem os procedimentos que caracterizaram os tempos anteriores a
1961. Isto influiu na saída dos colonos após a independência, muitos
tinham colaborado com estas injustiças, a maioria ignorava-os.
Em
1942 o Governador Geral Freitas Morna escreveu sobre os abusos e tentou,
até, um sistema inovador para suprir as necessidades das fazendas e das
pescarias e que consistia em fixarem-se trabalhadores permanentes,
vivendo com a família em boas casas e com ensino para os filhos. Com tão
boas ideias Freitas Morna só governou 10 meses ! Antes dele Norton de
Matos foi demitido, por duas vezes, devido à sua extrema repugnância
pelo trabalho compelido.
Os angolanos gostavam de rir, em tudo
introduziam ironia. Até meados da década de 50 obtinha-se gasolina
comprando latas (20 litros) ou tambores (200 litros), que depois se
transportavam nas viagens, uma vez que nos “bicanjos” não havia bombas
para abastecimento. Nas povoações do mato havia umas bombas manuais
oferecidas pelos produtores de petróleo do Texas. Estas bombas eram
constituídas por um carrinho, de duas rodas, que fazia lembrar as
quadrigas romanas, só que em vez do Ben Hur (condutor) estava um tambor
de 200 litros. A quadriga tinha uma “torre” de 2,5 m de altura que
terminava em dois reservatórios de 5 litros, para onde era elevada a
gasolina através de uma bomba manual de êmbolo, num sistema de vai-vem.
Enquanto se esvaziava um reservatório para o carro, por gravidade,
bombeava-se a gasolina para o outro reservatório, e assim
sucessivamente, em golfadas de 5 litros. As latas e os tambores vazios
eram depois aproveitadas para transporte de água. Uma água que, durante
uns tempos, tinha um leve travo a gasolina, isto para não dizer que
cheirava e sabia a gasolina.
Um angariador viajou numa camioneta,
apinhada de contratados, durante o cacimbo. Estrada poeirenta e cheia de
buraquinhos, buracos, buracões e crateras. O nosso viajante era
asmático e, aflito com a poeira, pediu para parar a camioneta. Mal pôs
os pés no chão deu uma bombadas para a garganta e ganhou nova vida. E
como “parada dá mijada”, toca a aliviar a bexiga. Um contratado,
espantado, disse para outro companheiro: “iihhh, este branco para mijar
precisa de dar à bomba, é como nas bomba de gasolina...”
3º) Centralismo.-
A concentração de todas as decisões em Lisboa foi total, durante o
tempo colonial e até durante a descolonização. Tornou-se uma obsessão.
Angola nunca teve uma simples autonomia. Em Lisboa sempre imperou uma
mentalidade de poder absoluto em relação às colónias. Os povos coloniais
eram encarados como crianças que precisavam de ser tuteladas. E que
nunca iriam atingir a maioridade, matutavam os oligarcas.
O governo
em Lisboa mantinha uma chantagem induzida, em relação aos colonos,
apoiada, principalmente, em dois pilares: o primeiro era o de que não
havia um exército angolano próprio mas apenas forças militarizadas,
comandadas sempre, até ao nível de sargento, por metropolitanos.Ou seja
não havia exército próprio capaz de fazer “uma virada”. Esta seria logo
esmagada pela tropa metropolitana equipada com material moderno que,
intencionalmente, não existia em Angola.
O segundo era a separação,
deliberada, entre europeus e africanos, não deixando estes subir na
escala social. Com estas duas clivagens o perigo de “um grito do
Ipiranga” nunca iria aparecer. A separação propositada entre a duas
comunidades, a africana e a europeia, garantia uma desunião que
favorecia a Metrópole. Lisboa ciciava aos colonos: «se vocês intentarem a
independência nós vamos embora e vocês não aguentam os “pretos”». O
que, afinal, se verificou, embora nunca tivesse prevalecido qualquer
ideia de um “grito do Ipiranga”. Não havia, ainda, uma base histórica e
população que pudessem amparar uma emancipação igual à do Brasil, ou
seja, feita pelos colonos. Como já o afirmámos a independência foi
exógena, ou seja de fora para dentro.
Os soldados angolanos eram
“indígenas” recrutados por toda a província. O recrutamento destes não
era compelido como o dos contratos. Até já era de boa tradição, em
alguns povos, “fazerem a tropa”. O voluntariado “para a tropa” era já
admitido, pelos africanos, como uma boa iniciação para a vida, e atingia
números interessantes.Por exemplo nos Cuanhamas e nos Quiocos era
tradição, entre eles, o cumprimento do serviço militar. Este dava-lhes a
condição de homem completo.
O mal aparelhado exército em Angola, em
1960, ainda usava a táctica militar B referente ao conflito mundial
1914-1918, até porque o material de guerra, existente, era todo daquele
tempo. Ou seja, não havia tanques ou carros de assalto, não havia
aviação militar, não havia artilharia moderna, nem sequer uma logística
actual. As espingardas e as metralhadoras eram daquela guerra. Qualquer
sublevação interna disporia de infraestruturas e logística próprias do
princípio do século 20, ou seja sem aviação. Esta estava toda em
Portugal.
È paradigmática a frase de um angolano, citada por
C.A.Domingues (73), «O pior mal que os portugueses nos fizeram é o de
nos obrigarem a fazer a luta de libertação a partir do exterior».
Mesmo
aqueles metropolitanos capacitados, com provas dadas, mas com muitos
anos de trópicos, eram encarados,pelos oligas, como “pirados”. É
sintomático o que Marcelo Caetano, quando era Ministro das Colónias
(1944/1947) escreveu a Salazar( 16), a propósito de uma licença
concedida ao Governador da Guiné: « Teria de ir sem vencimentos. Mas
como o homem tem 14 anos de governo tropical e está já na fase de
asneiras frequentes...» Quer dizer, segundo a óptica colonialista, quem
vivia muito tempo nos trópicos ficava “passado dos carretos”.
É de um
paternalismo oco, revelador de uma superioridade própria de um
imperialismo ultrapassado, embora querendo aparentar o contrário, a
frase de Rosa Coutinho, um desastrado governante durante a
descolonização, quando regressou de Lisboa onde se tinha deslocado para
receber, à semelhança do que já sucedia há 500 anos, e com frequências
desmesuradas, ordens do governo centralista, citado em (42):« Tinha que
trazer um rebuçado para esta malta para ver se acalmam; sei que a
situação está um pouco quente e estas medidas podem constituir um tónico
para a incerteza que naturalmente sentem a respeito do futuro; sabem
que vão perder privilégios mas ganham noutros campos».
O conceito
daquele governante, sobre os angolanos, “esta malta”, era este: são uns
pobres diabos que aceitam qualquer balela, uns “rebuçados”, os cérebros
somos nós, as decisões são nossas. É interessante notar que a
mentalidade dos dirigentes, que se seguiram ao golpe de estado de 25 de
Abril, era igual à dos anteriores governantes. Não é preciso ser-se
Sherlock Holmes para se explicar porquê. Eles eram os mesmos, só que com
outras roupagens políticas vestidas à pressa, como nos teatros de
revista, com todo o respeito por este teatro. Que, afinal, fartou-se de
criticar a ditadura, sempre com uma admirável subtileza.
4º) Cultura.-
Com o seu principal atributo o ensino, é outro esqueleto, e avantajado,
que jaz no armário do colonialismo. O ensino levou, sempre, o governo
central a situações beirando o pavor. A 1ª República, que vigorou de
1910 a 1926, inovou, apresentando um certo entusiasmo no ensino.
Talvez
sob inspiração maçónica, já mencionada, criaram-se centenas de escolas,
por toda a colónia, chegando a haver embriões de escolas técnicas,
denominadas escolas-oficinas. O nome da escola de Silva Porto, em 1924,
era Pátria Nova- um perfume filantropo-ia ter ensino técnico, aventou-se
a hipótese da cultura do bicho da seda, os recreios nos novos edifícios
tinham centenas de amoreiras. Posteriormente quase tudo foi abandonado.
Em 1919 foi instituído o primeiro liceu em Angola o depois Liceu
Nacional Salvador Correia, e em 1929 foi criado o segundo liceu na
Huíla, o Liceu Nacional Diogo Cão.
Depois do Liceu da Huíla, em 1929,
foi o vazio absoluto, no ensino secundário; só em 1954 seria criado o
liceu feminino de Luanda e em 1956 os liceus de Nova Lisboa e Benguela.
Todo o ensino secundário, excepto em Luanda e Sá da Bandeira, foi
mantido por particulares, sempre sob a pouca vontade dos governos de
Lisboa. A vigilância oficial sobre este ensino particular foi sempre
apertada. A taxa de reprovações era alta. Houve anos em que ela foi tão
alta que o próprio Governador Geral mandou repetir os exames. A
oligarquia metropolitana vivia obcecada com a frase “quem transmite o
saber, transmite o poder.”
Em 1936 gerou-se em Nova Lisboa um
movimento a favor do ensino secundário. As populações até nem exigiam um
liceu, pugnavam por uma escola técnica. Era grande o entusiasmo, o
próprio Governador do Bié subscreveu a petição. Resultado: zero. Teriam
que decorrer mais 20 anos para a petição ser satisfeita.
Mas no
ensino primário a situação ainda foi pior. À década de 20, caracterizada
pela criação de centenas de escolas, seguiu-se a década de 30
caracterizada pela aniquilação de dezenas de escolas. Motivo: não tinham
alunos! Em 1935 o meu pai, que se encontrava no Vouga (povoação a 30 km
de Silva Porto, hoje Cunhinga), fartou-se de lutar contra o fecho da
escola primária. Mas em vão. A escola foi fechada, mas acabou por
reabrir, talvez por um assomo de vergonha, dois anos depois. Como o
Vouga fecharam-se, na década de 30, dezenas de escolas mas que nunca
mais reabriram. Elas só reabriam quando havia protestos das populações,
como foi o caso do Vouga.
O ensino primário, fora das cidades e
vilas, estava cometido às missões católicas e protestantes. Em Angola
qualquer missão que não fosse católica, era designada de “protestante”. O
que não corresponde à verdade, porque havia missões de muitas crenças
religiosas. As missões bem que se esforçaram por atenuar uma tarefa que
competia, inteiramente, ao governo central. O objectivo das Igrejas é o
culto religioso, mas foi-lhes destinada a alfabetização das populações,
sem verbas. Sem estas, nem Deus lhes podia valer!
O ensino
universitário foi sempre um tabu. O governo central arranjou, sempre,
uns esquemas ou evasivas para protelar a sua instalação. Acabou por ser
implementado em 1963, mas com graves deficiências: não existiam os
cursos de direito, arquitectura, sociologia e economia. Este ultimo
acabou por funcionar, graças à “carolice” de um professor, a partir de
1972.
O esqueleto da cultura ainda foi agravado com a falta de
bibliotecas. Mais adiante, no livro, descreveremos a saga das
bibliotecas que existiam só em decretos e portarias.
A falta ou
deficiência de cultura foi uma das principais causas do atraso, em que
se encontrava Angola, sob o aspecto humanístico.
5º) Comunicações.-
A deficiência de comunicações foi uma das principais causas sob o
aspecto tecnológico. Em 1961 as estradas em Angola eram, praticamente,
as mesmas do que no tempo de Norton de Matos. Eram milhares de
quilómetros, intransitáveis na estação das chuvas, porque o trânsito
tinha decuplicado. A única melhoria, desde a década de 20, foi a
construção de pontes. Muitas pontes. Algumas de grande porte. Para as
pontes não é estranho pensarmos que muito deve ter contribuído o LNEC
(Laboratório Nacional de Engenharia Civil). Era um orgão com prestígio
internacional e com bons trabalhos prestados em Angola. E também a
figura do eng. Edgar Cardoso, um génio da engenharia de pontes. Talvez o
LNEC e o engenheiro forçassem o Governo a fazer grandes projectos.
As
pontes rodoviárias constituiram uma marca do colonialismo. As pontes
aéreas constituiram uma marca da descolonização. As pontes feriadárias
constituem uma marca dos governos ultra-democráticos, em Portugal, que
gostam de governar agradando a tudo, a todos e o tempo todo. Quando o
tesouro apresentar buracos negros com tendência a agruparem-se em um
único grande buraco, toca “a cavar” para a oposição, arvorando-se em
vítima..
Em comunicações a principal negação foi a das estradas. O
governo centralista equivocou-se quando resolveu construir caminhos de
ferro, em uma altura em que o automóvel já se tinha imposto em todo o
mundo. Mas pior do que essa falta de perspectiva histórica (se calhar
até foi de propósito, pois não interessava que Angola explodisse em
progresso) foi a não asfaltagem das estradas. Até 1961, em que se
começou a pavimentação, as estradas ficavam intransitáveis durante as
chuvas. Entre Luanda e Dondo registou-se um “enterranço” histórico em
1958: uma fila de mais de 50 km de camiões atolados na lama. Era
confrangedor o isolamento entre cidades!
Depois da guerra 39-45
apareceram os jipes, viaturas para todo o terreno. Para o
desenvolvimento de Angola era lógico que estes jipes, que em parte até
substituiriam o cavalo, pois podiam ir a locais inacessíveis às outras
viaturas, tivessem estatuto especial, com isenção de impostos, de modo a
serem difundidos por toda a colónia. Pelo contrário, a importação dos
versáteis jipes estava sob “numerus clausus”(número limitado), era só
para uns quantos amigos, ou para endinheirados ou para os serviços
oficiais. Bem lá no fundo era o velho temor do garimpo.
Em telefones
só algumas cidades possuiam rede local, com telefones do tempo de Graham
Bell, apenas Luanda tinha rede automática.. Em 1953 dizia-se que a rede
automática era muito moderna. Mas em 1929 os jornais de Lisboa
escreviam: “A Companhia dos Telefones de Lisboa vai usar em breve os
aparelhos que permitem as ligações pelo simples manejo de uma rodela
numerada o que dispensa a intervenção das meninas da central.”
Telefonemas
entre cidades não existiam. Silva Porto capital de um distrito, só
dispôs de rede telefónica em 1971, mesmo assim recebeu a rede do Lobito,
não automática e com mais de 30 anos. Para se falar tinha que ser aos
gritos e sob escuta da respectiva telefonista. Um campo aberto para
fofocas, facilitando a actuação da censura. Por incrível que pareça, a
cidade em 1959 tinha um único telefone que, nem sequer, estava inserido
em uma cabine, ao abrigo dos curiosos.
E que dizer da televisão?
Nunca percebi a atitude do governo de Lisboa em não permitir a
televisão. Poderia admitir-se que fossem problemas financeiros, mas este
argumento cai por terra, porque havia empresas interessadas na sua
instalação. Os encargos seriam particulares.E, se tivessem que ser
oficiais, não havia problemas financeiros: Angola fechava, sempre as
suas contas com saldos positivos. Ao contrário de outros países, que eu
não cito, por pudor, que estão sempre no “vermelho”, e com taxas de
crescimento estonteantes: 0,2%. Ou então com taxas de crescimento
negativas! O que é crescimento negativo? Em matemática uma função cresce
ou decresce!
Em Setembro de 1974, quando tudo desmoronava, o
presidente da Junta Governativa Rosa Coutinho teve uma atitude ousada:
entregou ao ministro da Coordenação Interterritorial um projecto de
decreto-lei para a instalação da televisão em Angola. No Boletim Oficial
(era assim que se denominava o “diário da república” em Angola) de 30
de Novembro de 1974 foi publicado o Decreto 677/74 que autorizava a
instalação e exploração em Angola do serviço público da TV. Era uma
empresa mista com 51% do capital pertencendo ao governo metropolitano.
Vale dizer: tarde piaste. Rosa Coutinho ainda tentou resgatar a vergonha
da ausência de TV em Angola.
Já em pleno Tempo Extra constitui-se
uma empresa particular de TV, que chegou até a efectuar emissões por
cabo (em 1972 dizia-se que era o futuro da TV, o que se confirmou ) mas,
ingloriamente, nunca conseguiu o alvará. A versão que corria, sempre de
rua porque o governo nunca dava satisfações, explicava que a TV seria
montada em breve, com a aparelhagem obsoleta vinda de Lisboa, uma vez
que a RTP (Rádio e Televisão Portuguesa) iria entrar na era colorida. E
claro, com a aparelhagem obsoleta viriam, também, os programas com um
elevado grau de vetustez, cobertos de musgo. E, é óbvio, com programas
filtrados.
O engraçado de tudo isto (se quisermos rir com desgraças) é
que a África do Sul, indiscutivelmente um país moderno e muito avançado
em tecnologia, alinhava com Portugal na relutância em dotar o país de
uma TV. Tal como em Portugal, o governo minoritário e segregacionista
não tinha interesse na divulgação de notícias e cultura para as massas.
6º)
Conhecimento científico da colónia.- É mais um esqueleto deixado pelo
colonialismo. Meu pai teve vários desabafos sobre a tremenda falta de
curiosidade dos cientistas da Metrópole. O campo de estudo e
investigação era, com um pouco de exagero, infinito. Desde o estudo dos
rios, das doenças ( que eram estudadas em Lisboa!), dos milongos
(remédios nativos que eram desprezados), das plantas medicinais ( que
eram encaradas com sobrançaria) da fauna (os crocodilos foram sempre
denominados jacarés), da flora (havia centenas de frutas nativas que
podiam ser comercializadas), do clima, até ao estudo da orla marítima e
do mar, havia um universo para ser investigado. A Carta Fitogeográfica
de Angola elaborada por John Gossweilar e Mendonça foi feita em Angola
em 1939. Só em 1973 é que saiu uma carta actualizada, graças à carolice
do eng.º Grandvaux Barbosa que residia em Angola.
Nunca saíu qualquer
carta geológica acessível aos habitantes de Angola, como era, por
exemplo, a carta aerofotogramétrica em escala 1/100 000. O conhecimento
geológico de Angola (se o havia) estava fechado a sete chaves, só os
oligas a ele tinham acesso. Uma campanha bem urdida convenceu os
angolanos que, geologicamente, era “tudo areia”. Diamantes só na Lunda.
Nos E.U.A. compra-se qualquer folha da carta geológica em uma banca de
jornais.
Mas nada! O interesse das universidades metropolitanas era
diminuto, ressalve-se alguns cientistas que se arriscaram, quase por
conta própria.A única contribuição das universidades portuguesas eram as
visitas dos orfeões e das tunas académicas.
O distrito do Bié nunca
recebeu a visita de qualquer grupo de alunos ou professores que
estivessem interessados em estudar qualquer assunto. Nunca ninguém
estagiou no Bié. Só teatros, tunas, orfeons, orquestras de tangos,
cantadores de fados, passeios turísticos e discursos patrióticos. Estes
sim, eram em cascatas e intermináveis, chegavam a ocupar, nos dias
seguintes,em transcrições, duas e mais páginas nos jornais. É óbvio que
poucos tinham a pachorra de os ler porque eram longos, chatos e
repetitivos.
É certo que havia a Junta de Investigações do Ultramar,
com a sede em Lisboa. No cacimbo éramos visitados por uns cientistas que
efectuavam estudos que depois eram publicados em livros sobre assuntos
meramente académicos. Livros que abordassem assuntos de interesse
prático, e aplicação imediata, conheci muito poucos. E os poucos que
conheci foram escritos por técnicos que residiam em Angola e que
deixaram obras de elevada qualidade científica e excelente aplicação
prática. Mas, mesmo estes, foram publicados já no Tempo Extra
(1961/1974). Antes, “não havia verba”. Exemplos positivos: o esplêndido
livro de Castanheira Diniz, neste livro referido n vezes,
Características Mesológicas de Angola publicado em 1973, de circulação
restrita (porquê ?), e a carta fitogeográfica de Grandvaux Barbosa,
citada acima.
Nunca me esqueço do seguinte: um alfarrabista em
S.Paulo (que no Brasil se denomina sebo), ao saber que eu era de Angola,
levou-me a um sala onde se encontravam milhares de livros no chão. Eram
livros editados pela Junta de Investigações do Ultramar. “Escolha os
que quiser”, disse-me ele,” é de graça”. Se quiser pode levá-los todos,
só me estão a ocupar espaço, até agora ninguém comprou qualquer livro. A
Junta enviava toneladas de livros para o Brasil, onde ninguém tinha
interesse em lê-los, e enviava muito poucos para Angola, onde havia, de
facto, muitos interessados em lê-los.
Só para dar um exemplo: Uma das
publicações da Junta de Investigações do Ultramar tinha por
título:”Contribuition à l´étude de la famille du Pa231 par des
correlations angulaires de quelques cascades y-y et xy”.
Na década de
40, estudava-se geografia e história de Angola, só na 4ª classe,
através de dois livrinhos que se mantiveram no activo até fins de 1960 .
Nunca lobriguei qualquer livro sobre história ou geografia, só na
década de 70 é que, finalmente apareceram obras úteis feitas por
residentes em Angola, como, por exemplo, a obra acima referenciada de
Castanheira Diniz. A história e geografia de Angola eram,
propositadamente, olvidadas.
O antigo ministro do Ultramar Adriano
Moreira confessa que em 1955 assistiu à Conferência Interafricana das
Ciências Humanas que se realizou em Bukavu de 23 de Agosto a 3 de
Setembro. Escreveu (150): «Foi lá que me dei conta , pela primeira vez
com verdadeiro dramatismo, do atraso português nos domínios da
investigação e do ensino em todos os campos das ciências humanas que
interessavam ao Ultramar, incluindo a problemática política
contemporânea».
Esta falta de investigação e actualização das
ciências humanas iria ser fatal, vinte anos depois. Enquanto os
dirigentes e militantes dos movimentos independentistas estavam muito
politizados, em Angola era confrangedora a falta de politização e, até, a
falta de informação. Quando os angolanos se deram conta das correntes
políticas que apareceram no período da pré-independência ficaram
atónitos e desnorteados.
7º) Centrifugação do capital.-
O esquema económico que prevaleceu até à década de 60 foi um
mercantilismo vazio, apoiado na mais valia do trabalho,
preponderantemente indígena. O pouco capital que se conhecia era só
obtido através do trabalho mal remunerado. Se sobrasse capital era de
imediato transferido para a metrópole, isto é, era centrifugado. Capital
através de créditos estrangeiros para investimento, nem vê-lo. Mas
subsistiu sempre um paradoxo: os grandes capitais eram centrifugados de
imediato mas as pequenas poupanças eram centripetadas ou sejam eram
obrigadas a ficar em Angola. Mas, para estas,nem sequer havia
remuneração, através de juros compensatórios.
Havia uma forma
indirecta da centrifugação de capitais, mas não a menor: a apropriação
das divisas angolanas provenientes da exportação de dezenas de géneros.
Angola exportava em 1973 mais de 40 artigos, cada um de valor superior a
um milhão de dólares , com relevância para café, petróleo (era o início
da “cornucópia” então com 147 068 barris diários), diamantes, minério
de ferro, farinha de peixe, algodão em rama, sisal, peixe fresco
refrigerado ou congelado,banana fresca, madeira em bruto e cimento. Por
isso a balança comercial portuguesa tinha um certo desafogo graças às
divisas de Angola.
8º) Crédito.- Existia uma
flagrante falta de capitais. E não havia onde os obter. Conheci um
dentista (em 1956) que chegou a ter no banco, em depósitos à ordem, a
quantia de 1 250 contos. Um Vollkswagen custava em 1956 cerca de 50
contos (2 000 dólares na época). De acordo com este “câmbio” seriam hoje
25 carros ou cerca de 450 000 euros ou 90 000 contos. Uma enorme
quantia (1 250 contos na época) sem quaisquer juros, um verdadeiro maná
para um banco. Uma quantia inerte em um banco, porque o depositante não
tinha onde a aplicar. O Banco de Angola não proporcionava crédito a
longo prazo, o único que fomenta riqueza firme. E não pagava juros, nem
às pequenas poupanças.
Os colonos arranjaram “esquemas” habilidosos,
mas éticos, para contornarem o flagrante vazio de moeda. Os comerciantes
conseguiam solver os seus compromissos através de letras e sucessivas
reformas. Ter-se uma letra protestada (que não foi paga dentro do prazo)
era uma enorme vergonha! Os funcionários conseguiam aguentar o dia a
dia através dos livros de débitos (a célebre caderneta do “aponte”) e,
especialmente, dos vales.
Uma vale consistia no seguinte: em um
pequeno papel, quanto mais pequeno melhor para o devedor, pois se
perderia com facilidade, ele escrevia: Vale 12 angolares, por exemplo,
punha a assinatura a data e pronto, já podia levar a mercadoria. Quanto
ao pagamento isso às vezes, ficava para as “calendas gregas”, ou para o
dia de S.Nunca.
Por piada contava-se que um comerciante não conseguia
eliminar os ratos no armazém. Pôs ratoeiras com pão, carne,todos com
veneno de rato e nada. Parece que os ratos eram metropolitanos recém
chegados à colónia (estávamos na década de 40). Seriam, segundo a
terminologia oficial, colonos ratos. Eram espertos e muito vorazes, logo
que chegaram começaram “a explorar as riquezas do país”.Por fim alguém
lhe sugeriu a colocação de um pedaço de queijo na ratoeira, afinal eram
ratos europeus de fino paladar, não resistiriam a uma iguaria europeia.
Era a década de 40, ainda se não fabricavam queijos industriais em
Angola. O comerciante, seguindo as praxes da economia angolana, e como
não tinha queijo, pôs um pedaço de papel na ratoeira onde estava
escrito: Vale 1 pedaço de queijo. No dia seguinte, perplexidade: a
ratoeira tinha disparado, mas em lugar de um rato estava outro bilhete
onde estava escrito: Vale 1 rato. Os vales funcionavam, mesmo, em
qualquer situação!.
Os colonos, por não disporem de um mercado
moderno, por estarem inseridos em um contexto de salários baixíssimos,
quase o mercantilismo do século 19, e de não disporem de poupanças
remuneradas, podiam esperar uma velhice de miséria, a menos que tivessem
filhos com “o liceu” ou seja funcionários públicos. O governo de Lisboa
inteirou-se disto e criou, em Silva Porto, a Mansão dos Velhos Colonos,
um abrigo de 3ª idade. Basta folhear os jornais da década de 40 para se
ler, com grande frequência, a morte de “um velho colono, praticamente
na miséria”. O hospital de Silva Porto mudou-se em 1951 para um dos
edifícios da Mansão dos Colonos e por lá ficou até 1962, ocupando as
instalações destinadas à terceira idade
Antes da criação da Mansão
muitos colonos, principalmente aqueles que não tinham filhos, morriam na
miséria. O caso mais pungente foi o do médico João Pessoa. Vivia em
Cantanhede onde tinha bens de raiz. Entusiasmado foi para Angola como
avençado do Caminho de Ferro de Benguela. Vendeu tudo o que tinha em
Portugal e estabeleceu-se em Nova Sintra (actual Catabola, no Bié). Tudo
deu errado. Ele tinha pena das pessoas e não cobrava honorários. Morreu
quase na miséria em Nova Lisboa perante a indiferença dos governos
coloniais. Este caso, por ser paradigmático, já foi referido
anteriormente.
As poupanças não remuneradas podem agregar-se ao
esqueleto do crédito. Em Portugal havia os certificados de aforro, bem
remunerados e com boas taxas de permanência, que garantiam, e
estimulavam, as pequenas poupanças. Em Angola, quem tivesse dinheiro (um
caso raro) teria que o pôr de baixo do colchão (duríssimo,de palha de
milho ou de chipipa, como é óbvio, para quem é pobre!). Refira-se que
não havia inflação ostensiva.
A única remuneração das poupanças era
na Caixa Económica Postal onde eram contempladas, com juros de 2% ao
ano, sobre um valor máximo de 24 contos ( 1 000 dólares). Mesmo assim,
esta microscópica remuneração do capitais só foi instituída em 7 de
Dezembro de 1949. Era flagrante: no Banco de Angola havia milhões de
contos, provenientes de “depósitos obrigatórios”, um capital
escandalosamente inerte!
Em 1969 foi criado o Instituto de Crédito de
Angola destinado a operações de crédito a longo prazo, o tal que
fomenta a agricultura, a pecuária, a pesca, a florestação, a energia e o
turismo, tudo RR (recursos renováveis). Com que dinheiro? Será que os
banqueiros metropolitanos acordaram do sono hipnótico de mais de meio
século? Será que o governo de Lisboa foi magnânimo? Pois bem, o dinheiro
veio dos tais “depósitos obrigatórios”.
Costa Oliveira em 1972 (163)
exara que«O Instituto de Crédito está concebido por forma a
transformar-se numa instituição financeira poderosa, capaz de fornecer
contribuição relevante para o desenvolvimento económico da província».
Este Instituto alimentou-se com os “depósitos obrigatórios”.
Na
realidade os “depósitos obrigatórios” existiam desde o aparecimento do
primeiro banco emissor o Banco Nacional Ultramarino em 1865. Durante 100
anos os “depósitos obrigatórios”, que depois foram transferidos em 1926
para o Banco de Angola, foram recebendo dinheiros oficiais e judiciais
das diversas pendências, concursos, cauções e testamentos em litígio.
Embora houvesse alguns levantamentos posteriores(cerca de 30%), havia,
sempre, um grande volume de dinheiro inerte e sem vencer juros. Era um
dinheiro morto, em uma terra sedenta por capitais. Como foi isto
possível? Como é possível que uma pré-nação, ávida de capitais e a quem
os bancos metropolitanos tratavam com desprezo, detenha uma tão grande
quantia, na época seriam 2,5 milhões de contos, completamente parados,
durante cem anos? Esta verba de 2,5 milhões de contos equivale hoje,
talvez, a mais de 750 milhões de euros.
Não admira que Angola
apresentasse uma deflação (vazio monetário) crónica. Não havia bancos de
crédito, não havia poupança, não havia investimentos, não havia macro
desenvolvimento económico.
Não conheci um angolano milionário, um
ricaço que vivesse permanentemente na colónia, que habitasse em uma
mansão. Só havia um único banco, o Banco de Angola, que, como é óbvio,
era o emissor da colónia. Mas que tinha a sede em Lisboa. A moeda até
1953 era o angolar, que depois passou a denominar-se escudo angolano, um
dinheiro que nada valia, apesar de nele constar a efígie do Presidente
da República de Portugal. Não tinha valor facial como depois ficou
cruelmente provado quando se deu a debandada geral. Após a
descolonização o dinheiro colonial servia para forrar paredes. Se fosse
hoje dava para snifar, se fossem notas novas. E, no entanto, as notas
tinham a efígie do Presidente da República Portuguesa.
Em princípios
da década de 50 o governo central recriou um novo banco, pomposamente
denominado Banco do Fomento Nacional. Entrou em “funcionamento”, com
grande estardalhaço, no dia 5 de Janeiro de 1960. “Funcionou” no
edifício do Banco de Angola em Luanda em duas salas, tinha um director
geral, que era engenheiro civil e mais três funcionários. Nunca fomentou
nada. Não fomentou nem sequer esperança, nem azedume conseguiu
fomentar, porque ninguém dava pela sua presença. No Lobito, onde o
edifício do Banco de Angola já era exíguo para o expediente corrente,
levou o jornal “O Lobito” a fazer a seguinte pergunta: «Como se vão
mexer os clientes?».
Mas a história destes “bancos de fomento” era
antiga. Em 1930 foi criado o Banco de Fomento Colonial, ainda sob a
aceleração nortoniana. Nunca funcionou, o país já estava a entrar no
marasmo financeiro. Em 1946 o Ministro das Colónias Marcelo Caetano,
ainda embevecido com a recepção dos colonos, após ter regressado de uma
viagem a Angola e Moçambique, criou o Crédito de Fomento Agrícola que
depois originou o Banco de Fomento sempre agregado ao Banco de Angola.
Não funcionou.
O Banco de Fomento, um simulacro de banco, emprestava
dinheiro para a indústria, a agricultura e a pecuária com prazos
“alucinantes”: 4 e 12 meses. É elementar que a agro-pecuária só pode
trabalhar com empréstimos a longo prazo. O milho, para citar o exemplo
mais simples, necessita de, pelo menos,2 anos até se obter o retorno do
capital. O gado necessita de mais de 7 anos. Uma pequena obra hidráulica
precisa de 25 anos de amortizações.
E, vergonha das vergonhas, o
Banco de Fomento Nacional, instituído em 1930, mas que nunca funcionou
por falta de fundos, recebeu um empréstimo do Estado de 30 000 contos
(164) em 1960,«...emquanto o mesmo não receber os recursos financeiros
de que necessita para dar continuidade à sua política de crédito».
Apenas uma pergunta: que política de crédito se o Banco de Fomento
Nacional, parturejado em 1930, nunca funcionou ou sequer deu sinal da
sua presença? Ele vivia aboletado no Banco de Angola. Na realidade o
empréstimo destinou-se, apenas, para pagar aos funcionários.
O novo
Instituto de Crédito, que começou a funcionar em 1972 apoiado nos
Depósitos Obrigatórios recebeu, também, todo o património da Caixa
Económica Postal, unico estabelecimento de crédito para habitação que
remunerava as pequenas poupanças, mas só até 24 contos. Uma autêntica
cornucópia de dinheiros públicos que , no caso dos depósitos
obrigatórios, até já estavam com “reumático”!
Em 1936 o Standard Bank
da África do Sul chegou a ter uma casa alugada no Lobito, e um gerente,
com o fito de abrir uma filial. Depois de muitas evasivas do governo de
Lisboa, não foi autorizada a abertura. Em 1956 finalmente apareceu um
banco comercial que ficou muito espartilhado, porque não podia trabalhar
com câmbios ( ou seja não tinha centrifugadora), e a concessão de
créditos era limitada pelo governo. A autorização para este banco (Banco
Comercial de Angola) actuar foi-lhe concedida em 1950. Só começou a
funcionar 6 anos depois! Como sempre, a velha lentidão colonialista!
Crédito
nunca existiu durante os anos de letargia, quem financiava os parcos
negócios eram os agiotas que emprestavam dinheiro com juros
escorchantes. O meu pai que o diga, esteve sempre amarrado aos zânganos.
A partir de 1930 o duo Salazar/Armindo Monteiro (Ministro das Colónias)
tudo fez para aniquilar todo o macro-capital de raiz angolana. O pouco
que existia, proveniente da década de 20, volatilizou-se em falências
provocadas pelo governo e só o grande capital exterior metropolitano
passou a prevalecer. A falta de grandes capitais, ou elevados
patrimónios, em Angola, foi uma das causas da debandada geral em 1975.
Toda a gente pensou: “o que eu tenho, facilmente recomponho em qualquer
lado, sem necessidade de passar vexames”! O que se confirmou, decorridos
mais de trinta anos. Os “retornados” deixaram para trás os seus
haveres, meros pertences de qualquer pessoa de classe média, em qualquer
país que faça parte do lote dos economicamente desenvolvidos. São
pertences que se obtêm, facilmente, com qualquer crediário, em países
ocidentalizados.
Não hesito em afirmá-lo, até que apareça uma
estatística corajosa que prove o contrário: quase todos os que
abandonaram Angola, onde possuiam apenas uma casa e respectivas mobílias
e um carro geralmente afogado em letras, estão hoje melhor do que no
tempo antes do êxodo. Pelo menos têm acesso a qualquer leitura, podem
discutir qualquer assunto, os filhos e netos podem estudar até ao
doutoramento, podem viajar com facilidade!
Em Angola existiam firmas
de raiz angolanas que nós, os desinformados e com conhecimentos nulos
sobre o resto do mundo, achávamos que eram grandes empresas. Pura
ilusão. Eram apenas fracções de macro-capitalismo, esmolas que a
Metrópole achou que eram necessárias. E eram. Elas davam milhares de
empregos estáveis (uma raridade actualmente), contribuindo, assim, para a
tão propalada paz colonial, o tal oásis de paz. Oásis em cujas areias
jaziam toneladas de explosivos!
Com um micro-capitalismo, cujos
excedentes mal davam para as despesas correntes e que não recebiam juros
de poupança, e com o grande capital ausente, como esperar por crédito,
vital para o desenvolvimento que se vislumbrava por toda a parte ? Como
podia haver dinheiro se o pouco que aparecia, proveniente do trabalho e
da produção, era imediatamente centrifugado para a Metrópole? O Huambo
pediu, anos a fio, uma Caixa de Crédito, um espécie de banco de
financiamento de pequenos empreendimentos. Só viria a ser autorizada em
1961 como consequência dos sangrentos acontecimentos que então
eclodiram. E que dizer da abertura do Instituto de Crédito de Angola,
acima referido, com orgânica semelhante à Caixa Geral de Depósitos de
Portugal, destinada a empréstimos a curto e longo prazo, para
agro-pecuária e indústria, em...1970 ?
A Caixa Económica Postal,
honra lhe seja feita, tinha uma linha de crédito para a construção de
habitações. Era pequena, insuficiente para o desenvolvimento da colónia.
Por isso formaram-se cooperativas de habitação, com suporte financeiro
das pequenas poupanças, que ajudaram bastante a atenuar a deficiência
habitacional. Eram os únicos nichos onde se obtinham créditos para
habitações.
9º) Consumo.- Se não há crédito também
não há consumo, é um axioma da economia. A maioria da população era
constituída pelos chamados indígenas cujos baixíssimoa salários não
vitalizavam uma economia. No Bié o consumo atingiu níveis de rarefacção
inconcebíveis e é fácil explicar porquê. Foi dos distritos mais
sacrificados nos anos de estagnação ou tempo de A Grande Soneca (1930 a
1961). Nesses anos era para o Bié que convergiam os olhos gulosos do
governo geral, quando lhe pediam trabalhadores. De 1940 a 1961 quase
todos os governadores do Bié limitaram-se a apadrinhar as caravanas de
contratados que saíram às catadupas. O Bié enxameava de angariadores. Em
duas décadas (1940 a 1960) o Bié apresentou diminuição demográfica. O
meu pai fartou-de de enviar exposições (era assim que se denominavam as
petições) para o governo geral (e até para Lisboa) apontando a vergonha
que se passava no Bié. Chegou a falar com Marcelo Caetano quando este
era Ministro das Colónias em 1945. Tempo perdido. Só terminou o
contrato, não por filantropia do governo mas porque eclodiram revoltas
que poderiam ter sido evitadas. E, também, quando a vergonha passou além
dos limites e o escândalo do contrato era comentado em todo o mundo.
10º) Castigos corporais.-
Conhecidos no folclore angolano como palmatoadas, deixaram um rasto de
humilhações e injustiças que, talvez, mais tenham contribuído para a
inviabilidade da presença dos europeus em Angola. Mas não faltaram
portugueses que, desde sempre, verberaram aquele procedimento. O costume
das palmatoadas, maneira antiga, mas bizarra, de se tentar fazer
justiça, era justificado com as desculpas esfarrapadas de que “eles são
crianças...” ou escorregando para a anedota “eles até gostam de levar
porrada...” ou “porrada também se dá nas escolas”, ou “eu levei muitas
palmatoadas, por não saber a tabuada”.
11º) Censura.-
Foi outro monstrozinho que atenazou a vida dos angolanos.
Sub-repticiamente o poder central estava em todas. Tudo era espiolhado,
as verdades eram sistematicamente ocultadas, muitos e muitos factos
nunca chegaram ao conhecimento das populações de Angola. As revistas ou
jornais de fora,manifestamente imparciais, nunca nos chegavam às mãos. A
Time e a Newsweek só entraram em Angola a partir de 1969. Os órgãos da
imprensa brasileira, muito apreciados em Angola, apareciam com meses de
atraso, passavam pelo crivo de Lisboa. A censura tinha dois filhotes: os
cortes a as confidenciais. Quando apareciam vazios nos jornais ou
estrofes dos Lusíadas todos ficávamos a saber “que houve censura.
apareciam
as concessões oriundas de Lisboa. Sucedeu assim com o algodão. Logo que
se mostrou ser viável a sua produção, de imediato sairam em Lisboa as
inevitáveis concessões. Para a Cotonang, para Lagos & Irmão, etc.
Sobre
as concessões para os compadres, Vicente Ferreira, Alto-Comissário em
Angola de 1926 a1928 escreveu( 91):«A relativa facilidade, com que nas
colónias se obtêm concessões e até a propriedade perfeita de boas
terras, dá aos seus detentores a ilusão de posssuirem um avultado
capital próprio, esquecendo-se de que a mesma facilidade da aquisição é
um sinal do fraco valor vendável da terra».
Brito Camacho, um Alto
Comissário em Moçambique em 1922, deixou escrito:«Concessões de muitos
milhares de hectares,de milhões de metros quadrados, eram obtidas com o
dispêndio de meia folha de papel selado, algumas vendidas depois, sem
que nelas se fizesse o menor trabalho, a nacionais e estrangeiros, sem
que desse comércio resultasse o menor proveito para o Estado ou para a
Província! Pois se até o Marquês de Alvito obtivera uma concessão em
Marracuene!»
É antológico o que sucedeu com o célebre ricinodendron,
mais conhecido por vielo, voudzela mungongo ou mangongo uma oleaginosa
muito abundante no Cuando-Cubango e em estado natural.Quando se
descobriu que era uma oleaginosa, logo apareceu uma concessionária em
Lisboa, mesmo antes de se ter estudado a viabilidade económica desta
acção inovadora. Em Lisboa nem se sabia o que era o mangongo. Tudo não
saíu da “meia folha de papel selado” para usar a frase de Brito Camacho.
Quando
o rícino começou a ser usado como óleo lubrificante para os aviões a
jacto e como carburante para os carros de corridas, e portanto
valorizado no mercado mundial, apareceu, de imediato, uma companhia
concessionária do rícino no Bié, Malanje e Cuando Cubango. Propunha-se
comprar todo o rícino produzido, que era muito, porque estava a ser bem
pago pelos comerciantes. A produção, toda para exportação, acabou porque
os preços, à velha maneira colonialista, começaram a ficar aviltados,
devido às leis de Lisboa, e os comerciantes foram proibidos de
transacionarem o rícino. Tal como com o algodão, só a empresa
concessionária é que a podia comprar, por preços fixados por ela. E os
camponeses desinteressaram-se desta cultura que tinha sido um dos
pilares da economia da colónia nos recuados anos vinte. Os próprios
administrativos abominaram esta concessão, uma nova “Baixa de Cassanje”,
só que em vez de algodão era o rícino!
A instalação da TV em Angola
também sofreu com as concessões. Ainda não havia TV em Portugal e já a
oligarquia estava abrigada sob a capa de uma lei monopolista. Em Outubro
de 1955, antes de haver TV em Portugal, foi publicado o Decreto 40341
que protegia uma companhia, que iria ser criada, dando-lhe o monopólio
da televisão. O Decreto abrangia as colónias. Prazo da concessão: vinte
anos prorrogáveis de dez em dez anos. A futura companhia estava isenta
de todos os impostos e de direitos para as mercadorias importadas. O
estado deteria 51 % das acções. Os restantes 49% seriam postos à venda
para particulares, leia-se amigalhaços e compadres. A mesmice nacional,
sempre os mesmos. O presidente da Junta Governativa em 1974, num gesto
corajoso, como já aqui foi afirmado, acabou com esta concessão. Vinte
anos depois, e quando tudo desmoronava! Um gesto corajoso, quando a nau
estava a afundar.
Em 1969 o norte americano Armstrong desembarcou na
lua, pronunciando a célebre frase «É um pequeno passo para o Homem e um
grande passo para a Humanidade» e o seguinte comentário: «devemos ser as
únicas pessoas que não estão acompanhando, através da televisão, a
nossa chegada à Lua». Armstrong, se soubesse, podia ter acrescentado:
devemos ser as únicas pessoas, além dos angolanos, que não estão
acompanhando a nossa chegada à Lua.
Mas onde as concessões mais
abundavam era com terrenos. Bastava registar-se um pouco de progresso e
logo apareciam aramados. Em 1974 um jornal de Luanda apresentava como
título: “ Em todo o planalto central há arame a mais e aproveitamento a
menos”.
Sempre que alguém, em Lisboa, tinha dificuldades financeiras
ou projectos de aumentar o património, comprando casa na Metrópole, por
exemplo, nada melhor do que uma comissão em Angola. Deslocavam-se por
meses com ajudas de custo ou por anos com direito a casa do estado e a
um subsídio. Henrique Galvão, um terrível e activo oponente de Salazar,
chamou-lhes Inspectores do Cacimbo.As colónias proporcionavam milhares
de nichos para os apadrinhados. . Os tachos para os “afilhados”, as
taxas para os colonos.
Nos concursos públicos os primeiros lugares
eram para os afilhados. Chegou a haver alguns concursos em que, nas
condições para admissão, só faltou pôr o nome do apadrinhado. Os
condicionamentos consistiam num proteccionismo descarado às indústrias
metropolitanas. Em Angola não se podiam instalar indústrias ou
actividades que colidissem com os interesses da metrópole: era o
condicionamento industrial. Era antigo, mas foi aperfeiçoado em 1936
através do decreto 26 509. Para piorar, a Metrópole tinha indústrias
primárias, precisamente iguais às que se podiam montar em Angola, com
menores custos de instalação e funcionamento:cimentos, tecidos,
fósforos, vidro,sapatos, conservas de peixe, tubagens, pequena
metalurgia etc.