terça-feira, 11 de novembro de 2008

Angola: do 25 de Abril de 1974 a 11 de Novembro de 1975

UM GOLPE CAÍDO DO CÉU

O 25 de Abril surpreendeu tudo e todos em Angola. Luanda vivia a vida cosmopolita de uma capital colonial, e só uma meia-dúzia de dias depois, em princípios de Maio, no Zaire e na Zâmbia, os movimentos de libertação reagem ao golpe militar em Portugal, com proclamações de continuação da luta até à independência total. Ironicamente, o golpe em Portugal haveria de conceder-lhes um protagonismo que estavam longe de ter conquistado.

JOSÉ GOMES

As promessas de continuação da guerra com que o MPLA, a FNLA a a UNITA reagiram ao golpe em Portugal, diga-se em boa verdade, não tiravam o sono a ninguém.
Em 1974, a luta de libertação atravessava um período crítico: o Exército português controlava militarmente todo o território - as operações tinham cessado em 1972 e a livre circulação era um facto.
Após o surgimento, em meados dos anos 60, de actividade militar no interior - O MPLA abre em 66 a Frente Leste, a UNITA ataca Vila Teixeira de Sousa, na fronteira catanguesa, em fins de 65 -, os movimentos encontravam-se minados por profundas crises internas.
Neto mandara fuzilar, dois anos antes, vários comandantes no Leste, após a revolta dos Bundas, e o movimento está recuado na Zâmbia, envolvido num debate interno para a revitalização daquela frente. Chipenda proclamara no ano anterior a cisão, em protesto contra a assinatura, por Neto e Holden Roberto, do inesperado acordo para a criação do Conselho Supremo para a Libertação de Angola.
Mais tarde, já em 74, mas ainda antes do 25 de Abril, virá a surgir uma outra facção, a Revolta Activa, propondo amplo debate para a redefinição da estratégia da luta de libertação.
Pelo lado da FNLA, as coisas não estavam melhores. Apesar de se saber que o movimento, com apoio de Mobutu, estava a formar no Zaire um exército de 9.000 homens, treinado por instrutores chineses e bem armado, Holden Roberto estava precisado de quadros dirigentes. Mandara fuzilar, após a revolta de Kinkuzo, no Zaire, em princípios de 72, dezenas de oficiais do seu Estado-Maior, e vários outros haviam fugido para Brazzaville.
A UNITA encontra-se no interior, abaixo da linha do caminho-de-ferro de Benguela, sem actividade militar conhecida.
GUERRA ESQUECIDA

Em Luanda, em 74, os combates eram uma coisa longínqua, que a cosmopolita vida na capital fazia ainda mais remota.
"À medida que as pessoas se integravam, a ideia da guerra era uma ideia longínqua", recorda o pró-reitor da Universidade do Porto, professor Nuno Grande, na altura vice-reitor da Universidade de Luanda.
"Como as pessoas estavam longe dos focos de guerra, adormeciam um pouco em relação à situação em que se vivia", conta.
O professor recorda no entanto que a capital angolana por pouco não foi abalada por uma operação da guerrilha. "No Natal de 73, foi desactivada uma operação de guerrilha urbana que estava a ser preparada por gente da FNLA, dentro da cidade de Luanda. As pessoas não tiveram muita consciência disso, mas eu, porque estava ligado à Universidade, tive conhecimento pelos canais oficiais que uma das acções seria contra o próprio hospital universitário".
A preparação dessa acção foi contudo descoberta.
No geral, o dispositivo militar da administração colonial era na verdade muito eficaz, reconhecem hoje alguns dos que naquela altura estavam do outro lado.
O Exército, as tropas especiais africanas treinadas pela PIDE/DGS, os Flechas, a polícia política, forças militarizadas e as milícias da Organização Popular de Vigilância e Defesa Civil de Angola estabeleciam no terreno um controlo a que dificilmente escapavam os movimentos da guerrilha.
Estes faziam contudo incursões através das fronteiras de Brazzaville e da Zâmbia, e havia zonas perfeitamente demarcadas onde já se sabia que tudo podia acontecer.
Aí por volta de 1965, conta Nuno Grande, nos Dembos e no Moxico a guerrilha fez muita mossa. "Cabinda e o Leste eram sítios de onde nós, os médicos do Hospital Militar, sabíamos que os feridos vinham sempre muito maltratados".
Em Cabinda, onde foi enviado para investigar um surto de febre amarela, "havia muitos focos, com grande número de mortos. Lembro-me que, numa distância de 200 quilómetros, os comandantes das companhias que estavam ali aquarteladas diziam-me: "Temos um morto por quilómetro". Havia 200 mortos entre as duas companhias, o que era um número considerável.
"Bem sei que estavam ali dois anos, mas a guerrilha era muito mais efectiva em Cabinda, porque as fronteiras com o Congo-Brazzaville eram muito permeáveis. Eles faziam as operações, deixavam as coisas armadilhadas, e iam embora, nem sequer assistiam aos efeitos. E dava-se conta, no Hospital Militar de Luanda, quando alguém vinha de Cabinda, pelos maus tratos...", conta.
Por cá, era ler os comunicados militares que diariamente o Ministério da Guerra mandava publicar nos jornais. "O Serviço de Informações Públicas das Forças Armadas comunica que morreram em combate, na Província de Angola, os seguintes militares:" e seguiam-se os nomes de mais uns tantos que, naquele ano, entre a noite de Natal e a de fim de ano, não iriam aparecer na TV, a desejar festas felizes.
Na capital, muita gente conhecia pessoas ligadas ao MPLA. "A FNLA tinha também alguma implantação, a UNITA não me recordo de ter grande impacto em Luanda - teria provavelmente mais para leste, mas em Luanda não", recorda o professor.
"Eles trabalhavam em Luanda, tinham frequentado as escolas. As pessoas lembravam-se de alguns que tinham saído de lá nos anos 50 e 60. Desde o dr. Agostinho Neto, que tinha saído de Luanda, onde era enfermeiro, para estudar Medicina, e depois não voltou, até àquele que havia de dar o nome ao hospital universitário, o irmão do Miguel Boavida, o Américo Boavida, que foi estudante, aqui no Porto, no meu tempo. Era ginecologista em Luanda, e, portanto, muitas pessoas o conheciam".
"Referiam-se a eles com simpatia, curiosamente. Mas, ao mesmo tempo, eles representavam as forças que lutavam contra Portugal, e havia uma certa ambiguidade - as pessoas lembravam-se de quem eram conhecidas e amigas, mas ao mesmo tempo tinham a reserva inerente a alguém que sabe que em algum momento eles poderiam desestabilizar tudo", recorda Nuno Grande.

APANHADOS DE SURPRESA

A 25 de Abril de 1974, Agostinho Neto encontrava-se no Canadá, mantendo contactos com a companhia petrolífera norte-americana Gulf Oil, em busca de apoio ocidental para o MPLA. Não hesitou em classificar o golpe em Portugal como um ajuste de contas entre facções do regime.
Os três movimentos, aliás, em comunicados tornados públicos nos dias imediatos, não escondiam as suas reservas.
A FNLA, em comunicado publicado a 30 de Abril, apelava à continuação da luta do povo angolano até que "a justiça universalmente reconhecida, o bom-senso e o direito à livre determinação" saíssem vitoriosos.
No mês seguinte, o líder do movimento, Holden Roberto, admitia já negociações com Portugal, com uma condição: o reconhecimento do direito à autodeterminação e à independência.
Pela mesma altura, já Agostinho Neto ajustara a opinião sobre o golpe militar em Portugal, mas mantinha a determinação de lutar até que Portugal se comprometesse a conceder a independência, a partir do que poderia ser iniciada a negociação sobre a transferência do poder. Pelo caminho, rejeitava categoricamente qualquer federação com a antiga metrópole.
A 21 de Maio, a UNITA alinha pelo mesmo tom. Mas, segundo o jornal "Província de Angola", Jonas Savimbi teria já acordado com as autoridades portuguesas um cessar-fogo. A 13 de Junho, Savimbi tornava públicas, no mesmo jornal, as suas posições sobre a questão, propondo um período de preparação política do povo para a independência, com a participação dos três movimentos, e a realização de eleições.
AMBIGUIDADE EM LISBOA

De Portugal, a Junta de Salvação Nacional ordenara o regresso do então governador de Angola, Santos e Castro, e nomeara em seu lugar o então tenente-coronel Soares Carneiro.
Da prisão de Luanda são libertados 85 presos políticos, e da de São Nicolau, em Moçâmedes, 1.200. A PIDE é formalmente extinta, mas os agentes integrados num novo serviço de informações, o Comando da Polícia de Informação Militar.
O general Costa Gomes chega na primeira semana de Maio a Luanda, e afirma em conferência de imprensa que o combate contra os movimentos de libertação continua, até que estes deponham as armas e aceitem uma solução política.
"Nenhuma província, nenhum grupo, nenhuma raça, terão permissão para impor uma solução que não tenha passado pelo crivo de um teste democrático", disse o general, acrescentando, em resposta a dúvidas manifestadas pelos jornalistas, que "é nossa intenção continuar a luta contra as guerrilhas, e essa posição manter-se-á até que os guerrilheiros aceitem a nossa oferta para depor as armas e se apresentem como um partido político legal".
De regresso a Lisboa, Costa Gomes, que em Luanda manifesta muitas e públicas dúvidas quanto ao que "muita gente pensa e tem propagado" sobre o apoio da população angolana aos movimentos de libertação, afirma que "todos os grupos humanos dessa sociedade luso-tropical" lhe haviam dado uma grande alegria, a da "esperança da realidade efectiva da autodeterminação autêntica num quadro variável dum portuguesismo pluricontinental".
Três dias após o 25 de Abril, o general Spínola já fazia questão de separar as águas entre autodeterminação e independência: a autodeterminação é o direito de um povo livremente escolher o seu destino, a independência imediata a aceitação duma vontade que não seria a desse povo.
Mário Soares, recém-regressado do exílio e já de viagem a Bona, considera "importantes" as palavras do general, mas quando lhe perguntam se é favor de uma federação ou da independência, responde: "Sou abertamente pela independência, e, na minha opinião e na do meu partido, é necessário negociar urgentemente com os movimentos de libertação".
Ao tomar o lugar de que o almirante Tomás fora apeado, duas semanas depois, a 15 de Maio, Spínola diz para a rua, que berra pelo fim da guerra colonial e a independência imediata para as colónias: "Os nossos esforços centrar-se-ão no restabelecimento da paz no Ultramar, mas o destino do Ultramar Português terá de ser decidido por todos os que àquela terra chamaram sua".
A QUEDA DO GENERAL

Mais tarde, num encontro com o presidente do Zaire, Mobutu, na ilha cabo-verdiana do Sal, discute esse destino. A conversa foi rodeada do maior segredo, e o jornal "República" haveria muito mais tarde, em Outubro de 75, já depois da queda em desgraça do general, de noticiar que fora discutido um complexo acordo de mútuos benefícios para os interesses portugueses e zairenses, nos quais se incluiria uma inédita Federação Zaire-Angola-Cabinda, com Mobutu a presidente e o líder da FNLA a vice-presidente.
Na notícia, é difícil distinguir entre a verdade e a propaganda da época, mas não se andará longe da verdade se se disser que dos planos do general constava a aposta em Holden Roberto, o homem dos americanos, de Mobutu e, noutro tabuleiro, dos chineses, para contrariar o MPLA.
Na falta de uma política clara para o problema colonial, a incerteza dominava mesmo os sectores mais informados da sociedade luandense. Os telexes das agências noticiosas dão conta desse estado de espírito, como um despacho da Reuter publicado pelos jornais portugueses a 4 de Maio, segundo o qual brancos e africanos moderados se manifestavam favoráveis à criação de um Estado multirracial e à ideia de uma qualquer federação com a metrópole.
Em Junho, o general Silvino Silvério Marques, que fora já governador de Angola entre 1962 e 1966, os anos imediatamente seguintes ao início da luta armada, é nomeado de novo para o cargo. Quando o avião aterra em Luanda, há manifestações no aeroporto contra o general, que permanecerá no entanto na capital angolana até fins de Julho, altura em que, após o assassínio de um taxista branco num musseque, ocorrem os primeiros distúrbios.

O ÚLTIMO DIA

Na tarde do dia 10 de Novembro de 1975, a bandeira portuguesa foi pela última vez arreada no Palácio do Governo e na fortaleza, dobrada e redobrada. O alto-comissário, almirante Leonel Cardoso, ao qual coube a ingrata tarefa, proclamara horas antes a independência de Angola.
Quatrocentos e noventa e dois anos depois das naus portuguesas ali terem largado ferros, o último representante da soberania portuguesa abandonava a jóia do ex-Império, e partia, "sem cerimonial, mas de cara levantada", rumo à base naval da ilha de Luanda.
Ao largo, na baía já abandonada por barcos carregados até à borda de multidões e contentores, a fragata "Roberto Ivens" escoltava o "Uíge" e o "Niassa", com as máquinas prontas para, pela última vez, zarparem para Lisboa.
Uma semana antes, a cidade branca acabara de esvaziar-se. A ponte aérea, organizada com o apoio de países estrangeiros, retirara de Angola, no meio de indescritíveis cenas de pânico e confusão, quase meio milhão de portugueses.
As estátuas dos imortais portugueses jaziam apeadas, no sítio havia só os pedestais, já pintados com o vermelho-negro do MPLA.
Para trás ficara a companhia de pára-quedistas, o almirante e uma meia-dúzia de funcionários que agora, no meio de grande e inútil aparato militar, se dirigiam para o porto.
Polícias angolanos, de farda azul, ganharam de imediato as posições desocupadas. Às janelas do palácio, alguns criados negros assistiram à saída de blindados e "Berliets".
Na baixa luandense, nem isso. Cortadas por fuzileiros, as ruas estavam desertas.

O ADEUS PORTUGUÊS

No imponente Salão Nobre do Palácio, o alto-comissário fizera de manhã, perante um batalhão de jornalistas, um breve deve e haver daqueles meses de brasa.
"E assim Portugal entrega Angola aos angolanos, depois de quase 500 anos de presença, durante os quais se foram cimentando amizades e caldeando culturas, com ingredientes que nada poderá destruir. Os homens desaparecem, mas a obra fica. Portugal parte sem sentimentos de culpa e sem ter de que se envergonhar. Deixa um país que está na vanguarda dos estados africanos, deixa um país de que se orgulha e de que todos os angolanos podem orgulhar-se".
E arrematou responsabilidades: "A única recriminação que poderá aceitar é a de ter dado provas de extrema ingenuidade política quando concordou com certas cláusulas do acordo do Alvor".
Para o almirante ingenuidade, para Neto, que à custa de sangue e suor conseguiria proclamar-se no dia seguinte presidente em Luanda, outra coisa. "Quanto a Portugal, o desrespeito dos acordos do Alvor é manifesto, entre outros, no facto de sempre ter silenciado a invasão de que o nosso país é vítima por parte de exércitos regulares e de forças reaccionárias (...) que teimou em considerar como movimentos de libertação, tentando empurrar o MPLA para soluções que significariam uma alta traição ao povo angolano".
Leonel Cardoso não pode responder, não estava presente no palanque de Neto, cumprira a promessa feita em confidência um mês antes a Cáceres Monteiro, enviado de "O Jornal": "Se um movimento não quiser vir, ainda aceito que se faça a cerimónia com os outros dois. Só com um, eu não tomo parte nas cerimónias. A um, eu não entrego o poder. Não vou às cerimónias de posse desse movimento".
No Campo da Revolução, no Sambizanga, o povo, na véspera, condenara ao enforcamento os espantalhos dos presidentes da FNLA, Holden Roberto, e da UNITA, Jonas Savimbi. Mas nessa noite, as palavras do líder do MPLA, agora presidente de Angola, perdiam-se no barulho dos disparos de faplas festejando, e, mais ao longe, de um fragor de explosões.
Ao largo de Cabo Ledo, um submarino soviético estava para o que desse e viesse, pronto para dar fuga a Neto.
A FNLA estava a 25 quilómetros, no Caxito e Quifangondo, e Holden Roberto, que celebrava a independência em Carmona, hoje Uíge, encerrara o discurso às tropas com um "até logo, em Luanda". Vinte e quatro horas depois, à meia-noite do dia 11, não em Luanda, mas em Ambriz, proclamava a República Popular e Democrática de Angola.
No Sul, o MPLA acabara de perder Sá da Bandeira, Moçâmedes, Porto Alexandre, Benguela e o Lobito, e a UNITA celebrava naquela que viria a ser a sua capital, Nova Lisboa, depois crismada Huambo
RECONHECIMENTO ADIADO

Em Lisboa, ao Verão Quente sucedia um Outono escaldante, o 25 de Novembro estava à vista. O ministro da Cooperação, Vítor Crespo, cancelara na madrugada de dia 10 a partida para Luanda. Um longo e polémico Conselho de Ministros, terminado a altas horas dessa noite, para que tinham sido convocados, a título excepcional, os secretários-gerais dos três partidos com assento no Governo - PS, PPD e PCP -, acabaria por reafirmar apenas o espírito do acordo do Alvor, e a não ingerência de Portugal nos assuntos internos do povo angolano, defendida pelo PS e o PPD, contra a posição do PCP, segundo o qual o MPLA era o único representante legítimo do povo angolano.
Convocado o Conselho da Revolução pelo presidente da República, general Costa Gomes, as divergências mantiveram-se.
Otelo faltou, zangado com os moderados, e Rosa Coutinho, ex-alto-comissário em Angola, num telegrama de felicitações a Neto, pedia desculpa por só mandar o coração a Luanda, que o resto era preciso aqui.
O avião da TAP, que levantara para a capital angolana com Palma Inácio, da LUAR, Carlos Antunes, do PRP, José Manuel Tengarrinha, do MDP/CDE, Pereira de Moura, do Conselho Mundial para a Paz, e delegações de vários partidos comunistas estrangeiros, foi mandado regressar a 30 minutos de Luanda.
Ao aterrar na Portela, às 5,30 horas, soube-se que a ordem de regresso fora do ministro dos Transportes, Valter Rosa, e o argumento que Luanda estava a ser bombardeada. Horas mais tarde, o aparelho, fretado pelos Transportes Aéreos de Angola, levantava de novo com o mesmo destino.
Às seis da manhã de 22 de Fevereiro do ano seguinte, Melo Antunes anunciava o reconhecimento por Portugal do Governo angolano. O Brasil fora o primeiro país a reconhecê-lo, no próprio 11 de Novembro, Portugal era o 88.o.
(...)
OS PRIMEIROS TUMULTOS EM LUANDA

Nos primeiros dias de Julho de 74, dão-se os primeiros incidentes violentos em Luanda, provocando ainda mais apreensão numa população branca que via já muitas nuvens no horizonte. Meia centena de negros é morta em confrontos provocados por "ultras" brancos. No mês seguinte, os primeiros 30 mil portugueses viajam para a metrópole.
José Gomes

O Verão de 74 é vivido com enorme expectativa pela população branca. "Angola é nossa", insistira o antigo regime contra ventos que sopravam de outras antigas metrópoles europeias, e muitos tinham acreditado.
Era, mas certamente ia deixar de ser, e é uma cidade cheia de dúvidas quanto ao futuro que é abalada, nos primeiros dias do mês de Julho, por violentos confrontos - que constituiriam também a mais importante tentativa dos extremistas brancos para terem um papel naquele jogo.
O episódio - a descoberta, num musseque, às primeiras horas da madrugada de 11 de Julho, do corpo de um taxista branco estrangulado - "desencadeou um grande levantamento, tiros para um lado, tiros para o outro, e, durante um mês ou dois, a situação foi de grande tensão", recorda o professor Nuno Grande.
As circunstâncias do crime não são esclarecidas, mas poucas horas depois, ao princípio da manhã, na Avenida do Brasil, o ponto de passagem obrigatório para os negros que vinham dos musseques trabalhar na cidade, extremistas brancos concentram-se e agridem, insultam e ameaçam quem por ali passe.
Os tumultos não se ficam por ali. Cerca de meio milhar de manifestantes dirige-se ao palácio do governador, agredindo pelo caminho os negros que apanhavam à mão. Um guarda negro da Polícia de Segurança Pública foi espancado, a crer num comunicado da Casa de Angola a propósito dos acontecimentos.
Face à passividade das autoridades, que se limitam a apelar à calma, a agitação continua. Em grupos de cinco, exibindo as armas, fazendo-se transportar em táxis, os extremistas interceptam ao fim da tarde um autocarro, atacando-o a tiro. Várias pessoas são mortas, e uma manifestação silenciosa de negros é dispersada pela polícia de choque frente ao Palácio do Governador, à vista do general Silvino Silvério Marques.
A violência prossegue até ao fim da manhã do dia seguinte, quando é decretada a proibição de circulação de veículos motorizados, e o recolher obrigatório. O balanço é de pelo menos 50 mortos e 200 feridos.
A intenção dos "ultras" de passarem à acção era já conhecida. Corriam rumores que partidos brancos criados em Angola após o 25 de Abril, como a Frente de Resistência Angolana, o Exército Secreto de Intervenção Nacional e a Resistência Unida Angolana, que preconizavam a declaração unilateral de independência, baseada na supremacia branca, contavam com o apoio dos Flechas, as tropas negras treinadas pela PIDE, e de cerca de meis centena de mercenários catangueses, que tinham servido na guerra colonial e se encontravam ainda num quartel no Luso, hoje Luena.
Agostinho Neto, por seu lado, acusara o Partido Cristão-Democrata de Angola, liderado por Fernando Falcão, a Frente de Unidade Angolana e a FRA de financiarem o treino militar, por instrutores sul-africanos, em campos no Sul do país, de colonos portugueses para combaterem os movimentos de libertação.

PLANO PREMEDITADO

Tudo indica que o assassínio do taxista obecedeu a um plano preparado com antecedência.
"Em Junho, exactamente no dia 10 de Junho, houve uma reunião de pessoas, escolhidas segundo algum critério, que desconheço, no que era o Colégio Lisboa, perto do Hospital Militar", lembra Nuno Grande.
Aí, "um representante do dr. Agostinho Neto - recordo-me que era africano, mas tinha um nome holandês - alertou-nos para a possibilidade de um grande conflito armado na cidade de Luanda. Estava a preparar-se a realização do Campeonato do Mundo de hóquei em patins, já havia muitos estrangeiros na cidade. Ele anunciou que haveria um movimento, a partir de homens radicais de direita, brancos e negros, no sentido de desencadear a violência, denunciando um conjunto de operações que tinham sido detectadas".
"Então nós, os que estávamos nessa reunião, decidimos juntar um grupo e falar com o arcebispo de Luanda, para que nas missas fosse feito um apelo à tranquilidade e à paz", recorda o professor.
"Algumas das tais operações anunciadas aconteceram. Só que não tiveram o impacto que as pessoas esperavam. Houve uma, que desencadeou depois toda a confusão em Luanda, o assassínio do taxista, que fora também prenunciada pelo enviado de Agostinho Neto. Quando nos procurou, avisou que poderia ser assassinado um branco, pessoa indiscutivelmente aceite pela sociedade luandense. E foi assassinado o taxista, duma maneira estranha, num musseque", conclui.
A partir daí, conta o professor, "a cidade entrou num grande desequilíbrio, e quando eu vim (a Portugal), em Julho, já havia um êxodo muito grande, as pessoas já estavam todas amedrontadas com a confusão. Estabeleceu-se um clima de pânico, já havia a sensação que aquilo podia dar origem a um grande êxodo".
No mês seguinte, Agosto, 30 mil brancos viajam para Portugal.
Após os incidentes, a 22 de Julho, o general Silvino Silvério Marques é mandado regressar a Lisboa, e nomeada uma junta militar, encabeçada por Rosa Coutinho. As tropas portuguesas tomam o controlo da situação.

PORTUGAL RECONHECE DIREITO À INDEPENDÊNCIA

Dois dias mais tarde, a 24 de Julho, é aprovada a Lei 7/74, proclamada pelo general Spínola, a qual finalmente reconhecia "o direito à autodeterminação, com todas as suas consequências", incluindo a "independência dos territórios ultramarinos".
A lei é publicada a 27 de Julho, e, considerando "conveniente esclarecer o alcance" do ponto do Programa do Movimento das Forças Armadas segundo o qual "a solução das guerras no Ultramar é política e não militar", refere que esse princípio "implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação".
No artigo 2ho, a lei diz que "o reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do artigo 1.ho" da Constituição de 1933, que considerava aqueles territórios parte integrante de Portugal.
A 9 de Agosto, a Junta de Salvação Nacional anuncia o primeiro programa formal para a descolonização de Angola.
Era prevista a formação de um Governo provisório de coligação, após a assinatura de um cessar-fogo com os movimentos de libertação, que integrariam um Gabinete em condições de igualdade com representantes dos grupos étnicos mais significativos, entre os quais o dos "brancos" é referido explicitamente.
No prazo de dois anos, após um recenseamento, seriam realizadas eleições para uma Assembleia Constituinte, segundo o princípio de um homem, um voto, e, após a elaboração da Constituição, seriam realizadas eleições para o Parlamento e o Governo, cujos resultados Portugal se comprometia a respeitar. Era igualmente admitida a possibilidade de verificação, pelas Nações Unidas, das eleições.
O anúncio, que tinha por objectivo tranquilizar a população branca, acaba por ter algum efeito contrário.
O MPLA e a FNLA rejeitam o programa, devido à proposta de representação dos maiores grupos étnicos.
Dá-se o 28 de Setembro em Portugal, Spínola é afastado, e o novo presidente da República, general Costa Gomes, toma em mãos o processo de descolonização.
Pouco mais de uma semana depois, a 10 de Outubro, uma delegação portuguesa, chefiada pelo general Fontes Pereira de Melo, viaja para a capital zairense, Kinshasa, para conversações com Mobutu, encontrando-se com representantes da FNLA e do MPLA.
Em Novembro, Portugal assina acordos formais de cessar-fogo com os três movimentos.
Savimbi fora o primeiro a comprometer-se, em Junho, a cessar as hostilidades no mês de Outubro, e a UNITA abre a sua sede em Luanda a 10 desse mês. Segue-se-lhe a FNLA, no dia 16, e o MPLA, no dia 8 de Novembro.
A entrada dos movimentos de libertação em Luanda é uma supresa para muitos. "A chegada dos movimentos de libertação é uma supresa para muita gente, porque são grupos mal armados, mal preparados", recorda Vasco Vieira de Almeida, que viria a integrar, mais tarde, em Fevereiro, o Governo de transição.
Em fins de Outubro, Rosa Coutinho, que viera a Lisboa para assistir a uma reunião da Comissão de Descolonização, anuncia que Portugal está a realizar negociações com os líderes de cada um dos três movimentos de libertação para a formação de um Governo de transição.

PROJECTO PARA O HUAMBO VEIO ACABAR NO PORTO

O que era para ser o Instituto de Biomédicas do Huambo acabou por vir pegar de estaca no Porto, quando o professor Nuno Grande, que chegara a ir escolher o terreno na capital do Planalto Central, voltou para Portugal.

Foi com pena, mas sem azedume, que Nuno Grande deixou Angola. Veio de lá em Outubro de 1974, quando era vice-reitor da Universidade de Luanda, responsável pelo Instituto de Investigação Científica.
Viera a Portugal em Junho, de férias, e, quando estava para voltar, em Setembro, recebera um convite. "Tive a informação que se estava aqui a organizar o Instituto de Biomédicas, e um convite do ministro Magalhães Godinho". Mas as obrigações em Angola levaram-no de volta.
O projecto de um Instituto de Biomédicas para o Huambo tinha tido início no Carnaval de 1974, com os dr. Fernando Real e Rui Vaz Osório, com os quais Nuno Grande chegou a deslocar-se à então Nova Lisboa para escolher o local.
Porquê o Huambo? "Primeiro, porque havia muitos alunos. Angola tinha naquele altura no primeiro ano de Medicina 500 alunos, e já não comportava em Luanda esse número. Depois, porque este modelo interessava a Angola, era um modelo moderno de ensino da Medicina, e de aproveitamento dos recursos locais, e, ainda porque havia o Instituto de Ciências Veterinárias, o Instituto de Agronomia, e o Instituto de Investigação Médica. Estavam portanto criadas as condições para se lançar o Instituto de Ciências Biomédicas. Fomos lá escolher o terreno, mas depois aconteceu o 25 de Abril...", recorda o professor.
A partir da altura em que foi anunciado que Angola iria ser um país independente, Nuno Grande começa a organizar o regresso. "Era cidadão português, teria de vir participar na reorganização da sociedade portuguesa".
Regressa a Angola em Setembro, para os exames de segunda época, e fica até fins de Outubro, quando volta, definitivamente.
O professor conhecera Angola em 1965, como médico militar. "Fiz serviço militar até 67, e regressei a Portugal. Depois fui em comissão de serviço pela Faculdade de Medicina, e decidi radicar-me lá, porque as oportunidades para uma pessoa da minha idade eram muito grandes, mais do que as que tinha aqui. E aquela terra é atractiva, quer do ponto de vista da beleza natural, quer da afabilidade das pessoas. Era profundamente atractiva. Vivi nove anos e meio em Luanda, com grande intensidade e muita felicidade".
Como médico militar, recorda uma operação em Cabinda, numa altura em que se admitia a possibilidade de um surto de febre amarela. "Fui a Cabinda, tive de visitar o enclave todo, de uma ponta à outra, ver os militares aquartelados em todos os pontos, e concluí que não havia qualquer surto de febre. Mas quando houve um foco de febre amarela na cidade de Luanda, tive grandes dificuldades para mobilizar as autoridades, em nome da Ordem dos Médicos - eu era o presidente do Conselho Regional -, sofri muitas pressões das autoridades da época. Tentaram escamotear o surto, que ainda teve 600 mortos".
Quanto à descolonização, o pró-reitor da Universidade do Porto acha que dificilmente poderia ter sido diferente. "Tenho lido muita coisa sobre as descolonizações, portuguesa e outras. Estou convencido que não poderia ter sido de outra maneira. Se olharmos, por exemplo, para a descolonização da Índia, feita pelos ingleses - a primeira sugestão de descolonização da Índia é feita o século passado, pela rainha Vitória, passaram aquele tempo todo a preparar a independência, e veja como estão as coisas. Os processos de descolonização são sempre muito traumatizantes. Estou convencido que no caso de Portugal não podia ser diferente. Primeiro, porque é um processo agudo: está-se em guerra, e na semana seguinte já se está a tentar negociar. Segundo, Portugal é um país muito frágil, e ali cruzam-se conflitos de muita espécie, interesses internacionais. Veja que eles não conseguiram ainda encontrar um caminho para a paz, matam-se com armas extremamente poderosas, e que eu saiba não há fábricas de armas em Angola. Alguém as vende. Angola tem uma característica que a torna aptecível: é muito rica, e portanto os países poderosos e os ambiciosos não vão deixá-la em paz muito tempo, a não ser que disso tirem proveito".
Mas Nuno Grande compreende a mágoa que ainda sentem muitos dos que vieram. "Eu lembro-me das circunstâncias que se viviam em Portugal nos primeiros anos após o 25 de Abril, não só em relação aos que então eram chamados retornados, como em relação ao mundo produtivo, ao capital. Eram circunstâncias complexas. Em todo o caso, compreendo a mágoa das pessoas, porque eu próprio encontrei, à chegada a Lisboa, o que entendi como alguma frieza relativamente aos nossos problemas. Fiz um esforço no sentido de compreender. Admito que cada um tenha as suas próprias razões de queixa, mas se nos lembrarmos da confusão social que se vivia em Portugal nesse período, talvez se possa entender que não era simples organizar a evacuação de 500 mil pessoas sem que houvesse atropelos, que de facto houve".
O próprio professor foi vítima desse processo. "Vim com tranquilidade - acabei por chegar definitivamente a Portugal em Novembro de 74 - mas as minhas coisas, o meu património, ficaram lá. Aconteceu até uma coisa: tive de mandar dinheiro daqui para que as minhas mobílias viessem. Normalmente, as pessoas tinham muito dinheiro cá, mas eu não tinha - estava para comprar uma casa em Luanda, já depois do 25 de Abril. Cheguei a ir vê-la, pois acreditava, a longo prazo, que houvesse possibilidade de uma transição, admitia eu, ingenuamente. Só à última hora é que o negócio se gorou. Como disse, ainda tive de mandar dinheiro daqui, e as mobílias só vieram no ano seguinte. E fiquei em casa dos meus sogros até meados de 75".
Desse período, e da maneira como os portugueses se relacionaram com as colónias, guarda uma curiosa recordação: "Recordo-me que esteve nessa altura lá, em visita, um redactor do "Monde", que fez uma reportagem sobre Angola, e ele estava espantado com a relação entre o colonizador e o colonizado no terreno. Tinha ido ao Uíge, e vinha espantado: "Vocês são um povo estranho. Então agora é que estão a investir?". Havia pessoas que tinham vindo a Portugal buscar dinheiro para investir lá. "Vocês são completamente loucos!", concluiu ele".


CONTINUA...
in http://www.arlindo-correia.com/200601.html

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