segunda-feira, 17 de novembro de 2008

ANGOLA (AIDA VIEGAS)

Um olhar à distância

Outono

Lobito

A hora da chegada

25 de Abril

Desaparecidos

Retornados

Luanda

Angola

ISBN 972-96850-4-5

Vinte e cinco de Abril

Relembro aquela manhã de vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro em que nas escolas, nas ruas, nos mercados, nas esplanadas correu de boca em boca a noticia de uma revolução em Lisboa. A revolução dos cravos lhe chamavam. Nos dias seguintes apareceu nos jornais a célebre imagem dum soldado empunhando uma espingarda com um cravo vermelho enfiado no cano, tendo nos braços uma criança.

A alegria contagiou tudo e todos e logo se começou a falar em independência. Como tudo iria ser melhor! Ar­quitectavam-se sonhos de liberdade e progresso. Uma nova era se vislumbrava no amanhecer dum novo dia. Gente de todas as cores parece que bebia o ar da vitória. A Grande Angola iria ser ainda maior. Quanto não iria valer a moeda angolana!... Até já se faziam câmbios. Repórteres de jornais e revistas vieram para a rua fazer inquéritos.

Quem pretendia a independência? perguntavam. Todos, era a resposta de brancos, negros ou mestiços. Quem queria continuar, em Angola? Todos é claro. Todos estavam empenhados no futuro desta terra; os que cá nasceram e os que a tinham adoptado como sua. Apenas uma minoria de militares, alguns quadros e poucos mais tinham intenção de regressar à Metrópole. Na população em geral uma maior onda de fraternidade mais nos irmanava. A independência tornou-se o tema geral das conversas, falava-se dela apaixo­nadamente

A grande Angola iria ser ainda maior depois que a guerra acabasse e a energia de todos fosse canalizada para o progresso daquela grande Terra.

Aqui e além porém encontrava-se alguém que fugia ao tema deixando intrigados os restantes.

O primeiro de Maio ainda foi festejado em plena harmonia. Ouviam-se na rádio canções revolucionárias e uma delas falava em emalar a trouxa e zarpar. Esta foi comentada num grupo de amigos e os comentários cheiraram-nos a esturro deixando-nos apreensivos. Passados dias começaram a correr rumores de desordens, de levantamentos. Mais tarde Luanda foi visitada por um oficial general das forças armadas, que foi recebido em festa, mas que deixou todos ainda mais apreensivos do que estavam.

As medidas que a partir daí começaram a ser tomadas pelo governo central suscitaram a instabilidade, a anarquia no seio das forças armadas e o medo e o mau estar na popu­lação em geral.

Negras nuvens começaram a adensar-se. As notícias da Metrópole eram controversas. Passámos a estar suspensos da rádio e dos jornais. Foi nomeado um novo governador de Angola. Não tardou muito para que os brancos fossem intimados a entregar todas as armas que possuíam. Bandos de negros de aspecto pouco cordial, surgidos não se sabe de onde, começaram a invadir a cidade gritando slogans revolucionários com ar ameaçador.

Soubemos do desembarque de colunas e colunas de soldados e do mais diverso e sofisticado material de guerra, tudo proveniente da Rússia e de Cuba que atravessavam a cidade e desapareciam num abrir e fechar de olhos não se sabe para onde. Os governantes, tendo conhecimento de tudo o que se passava, procediam como se nada de anormal estivesse a acontecer.

A alegria dos primeiros tempos após o vinte e cinco de Abril, cedo começou a desvanecer-se. Afinal muito poucos estavam informados do que se estava a passar. Apenas aqueles que de início fugiam ao tema da independência e os grupos que iam invadindo a cidade tinham uma vaga ideia do que se congeminava nas costas de todos os angolanos. Os militares falavam em segredo. Alguém ouvira aqui ou ali coisas um tanto ou quanto escabrosas sobre o futuro de Angola mas de nada havia certezas. Talvez não fosse verdade pois era demasiado arrepiante para o ser. O boato passou a ser o pão nosso de cada dia. A instabilidade instalou-se definitivamente. Slogans marxistas, tentando expandir ideias comunistas começaram a surgir criando focos de revolução e guerrilha por toda a cidade os quais começaram a alastrar­-se progressivamente a todo o território angolano. Luanda que desde sessenta e dois até então havia sido poupada à guerrilha, via a violência aumentar agora a cada momento. Angola

Desaparecidos

Cedo me apercebi que o que me contara o Albano fora apenas uma gota de água.

O desaparecimento das pessoas era uma constante; e muitas vezes não eram mais encontradas. Os familiares e amigos moviam todas as influências, deitavam mão de todos os meios ao seu alcance para conseguirem descobrir o paradeiro dos desaparecidos e quando pensavam estar no seu encalço, começava uma saga de desespero e esperanças temperada dum enorme sofrimento causado pela incerteza das reacções imprevisíveis dos raptores e do que eles poderiam fazer com quem raptavam: manter as pessoas den­tro da cidade sem a mínima hipótese de comunicação, torná-las alvo de violações sexuais ou outras, de maus tratos físicos e morais, obrigando-as a ingerir dejectos humanos tal como a alguns prisioneiros que foram retidos durante semanas na praça de touros, aparecerem mortas em qualquer lugar como sucedeu no quintal duma vivenda na Vila Alice onde foram encontrados quatro corpos esquartejados e enfiados numa fossa séptica ou darem-lhes sumiço nas densas matas onde os obrigariam a percorrer distâncias inimagináveis expostos a perigos de toda a ordem e por fim sumirem-nos sem deixar rasto, tal como acontecera meses antes ao casal Figueiredo, o Fausto e a Lucinda quando regressavam da sua fazenda de gado em Nova Lisboa.

A última vez que Matilde e João haviam estado juntos com estes amigos numa festa em casa dos Rodrigues, amigos comuns, o Fausto dissera ao marido de Matilde:

— Não estou minimamente preocupado com a situação, todos os pretos que têm trabalhado comigo continuam meus amigos; pago-lhes bem, sempre os respeitei, como tu sabes, e trato-os como se fossem de família.

Na realidade Fausto era uma excelente pessoa, homem bem formado, andara no seminário até tarde e quando saiu, além de continuar um bom católico era pessoa de fino trato e de um humanismo exemplar. Casara tardiamente com uma mulher já madura, a Lucinda, senhora elegante dona de dois bons colégios em Luanda onde gozava de bastante prestígio pelos cargos de directora dos seus estabelecimentos de ensino. Fausto tinha sido durante vários anos prestimoso funcionário bancário e resolvera há tempos atrás, dar um novo rumo à sua vida afastando-se do banco e dedicando-se à criação de gado numa fazenda que comprara perto de Nova Lisboa. Possuía na altura umas largas centenas de cabeças de gado e andava cheio de entusiasmo com a nova aventura.

Faziam, ele e a esposa, a viagem de regresso a Luanda após terem passado uns dias na fazenda quando foram vistos pela última vez no alto de Cambambe, ao volante do seu mercedes, que haviam comprado meses antes. Nesse local, segundo relato de testemunhas oculares foram interpelados por uma patrulha do MPLA. Constou ainda que se faziam acompanhar por um enfermeiro conhecido de Nova Lisboa, conotado como da Unita. Desconhece-se porém se o facto de terem dado esta boleia teve alguma interferência com o seu desaparecimento, tendo no entanto sido ventilada esta hipótese. O certo é que nunca mais foram vistos. Houve po­rém quem visse o seu carro no Norte, conduzido por um militar do MPLA.

A notícia do seu desaparecimento correu veloz entre os amigos e conhecidos e em breve se espalhou por toda a cidade. Foram tomadas todas as providências, usados todos os meios possíveis e imaginários mas em vão, notícias deles nunca mais. Isto acontecera pouco tempo depois do vinte e cinco de Abril.

Um irmão da Lucinda que vivia no continente ao tomar conhecimento do desaparecimento da irmã e do cunhado deslocou-se propositadamente a Angola onde morara vários anos e onde tinha grandes amizades e influências. Aí chegado, deitou mão de todos os recursos, moveu todas as influências para tentar ao menos descobrir o paradeiro dos familiares, mas nada conseguiu. A irmã sofria de grave doença e supostamente faltar-lhe-iam os remédios que necessitava tomar todos os dias, o que mais aumentava a preocupação da família. Quando passados largos meses de buscas, promessas de ajuda e seguimento de pistas, o irmão da Lucinda estava prestes a desistir alguém lhe lembrou que um Padre vedor, antigo professor e amigo do Fausto talvez o pudesse ajudar.

Numa última tentativa pediu ao sacerdote, já idoso, que se deslocasse a Luanda o que o bom homem fez pron­tamente cheio de vontade de lhes ser prestável.

Foi-lhe entregue uma foto dos desaparecidos e um mapa de Angola e o Padre conseguiu localizá-los através do mapa numa zona de densa mata junto de um rio. Disse ainda parecer-lhe que o Fausto se encontrava de boa saúde enquanto a esposa se lhe afigurava extremamente debilitada. De imediato foi mobilizado um helicóptero e outros meios aéreos que ao fim de algumas horas de busca confirmaram ser verídico o que havia sido diagnosticado pelo padre vedor. Eles lá estavam acampados junto ao rio vigiados por soldados, porém, logo que estes se aperceberam de movimentos aéreos estranhos iniciaram com os reféns a marcha por uma picada e embora seguidos por algum tempo, em breve se embrenharam na mata conseguindo despistar quem os seguia e desaparecendo definitivamente sem nunca mais deixarem rasto algum.

Chorados por familiares e amigos, durante muito tempo pairou em todos uma dúvida de esperança; talvez algum dia voltassem, certamente os turras não os iriam matar. Porque haveriam de fazê-lo? Nunca se meteram em política, o Fausto nem às forças armadas pertencera.

Amigo muito chegado de meu marido tendo sido colegas de estudo, o Fausto, desde que nos encontrámos em Luanda, ainda ele estava solteiro, era visita assídua de nossa casa, companheiro de brincadeiras e compincha de nossos filhos a tal ponto da Clarita o chamar de seu namorado.

Sentimos muito a sua perda e ainda hoje nos custa acreditar em tão fatídico destino.

Este facto, mais vinha provar que não era um comportamento racista ou de injustiça praticada contra os negros que os levava a cometer actos de vingança contra os portugueses.

Estes desaparecimentos de pessoas, antes esporádicos, eram agora o pão nosso de cada dia.

Com receio dos raptos e de muitas outras represálias e crimes os brancos iam sendo corridos das áreas altas e mais dispersas da cidade, abandonando suas casas forçados ou por sua livre vontade, ditada pelos acontecimentos funestos e ataques que dia a dia se intensificavam, levando as pessoas visadas a procurar abrigo em casa de conhecidos, amigos, parentes ou mesmo como nós em hotéis na zona baixa da cidade. Como eu havia previsto, estávamos, pouco a pouco, a ser encurralados, cada vez numa área mais restrita junto ao mar exactamente como os caçadores no mato fazem à caça.

Vindos de todas as partes do território aonde se ia estendendo a guerra, não paravam de chegar a Luanda desalojados e deslocados. Porém, aqui chegados, sem alojamento possível, procuravam protecção junto do palácio do governador, instalando-se nos jardins fronteiriços ao mesmo, amontoavam-se no aeroporto ou na zona de protecção do porto marítimo sempre na esperança de conse­guirem de alguma forma sair deste inferno.

A verdade é que os confrontos eram cada vez mais violentos, o respeito pela vida e pelos direitos das pessoas era letra morta. O roubo, o rapto, as violações, a tortura física, a morte e a justiça popular aplicada arbitrariamente, aumentavam a cada dia que passava. Formaram-se tribunais populares que faziam julgamentos ad hoc.

Os movimentos de libertação travavam entre si acusações mútuas, os acordos não se cumpriam. O MPLA aniquilara quase todas as delegações da FNLA.

No seio das tropas portuguesas sentia-se que se instalara a confusão queixando-se muitas vezes os militares de não saberem a quem obedecer pois em muitas ocasiões recebiam ordens controversas. Ao mesmo tempo muitos se queixavam de lhes estarem a fazer uma autêntica lavagem ao cérebro tentando incutir-lhes ideias marxistas que eles rejeitavam. As pessoas ao sentirem-se atacadas ou em risco pediam auxílio às nossas tropas ou à polícia mas nem uns nem outros conseguiam valer a toda a gente; respondiam sistematicamente que iriam fazer os possíveis, mas nunca chegaremos a saber o que lhes era possível fazer numa situação destas. Certo é que na maioria dos casos o auxílio não chegava. A passividade que, diz-se, lhes era ordenada, de forma alguma podia ser entendida pelos civis em perigo.

A guerra fria que aliás só em sessenta e um se tinha feito sentir em Luanda transformara-se agora em guerra quente e sangrenta acompanhada de todos os horrores que uma guerra traz consigo.

A escolha de uma fuga era cada dia menor. Por terra, ninguém poderia sair de Luanda visto as saídas estarem bloqueadas. Por outro lado ninguém pretendia fazê-lo já que as outras cidades ainda ofereciam menor segurança. As saídas eram pois apenas duas. Uma o mar, com todos os perigos que ele encerra, sobretudo quando enfrentados sem um mínimo de recursos; muitos se fizeram ao mar em traineiras e noutras pequenas embarcações. A outra saída possível era o aeroporto mas este, só para os mais felizardos já que muita gente não possuía meios monetários suficientes para custear o transporte aéreo de toda a família.

De início a maioria das pessoas pretendia um voo da TAP para Lisboa, porém fazia tempo que qualquer destino - Brasil, África do Sul, ou qualquer cidade europeia - servia para sair deste inferno. Não havia avião que levantasse voo de Luanda que não levasse a lotação esgotada. A África do Sul desde inicio ofereceu os lugares vagos nos seus aviões, que escalassem Luanda, para o transporte de refugiados, mas por incrível que pareça o Governo Português começou por não aceitar tal oferta.

Se não fosse mais tarde a ajuda de praticamente todas as grandes companhias internacionais de aviação, que ao aproximar-se a data marcada para a independência colocaram à disposição dos refugidos portugueses, os seus aviões para o seu transporte gratuito para Portugal, e, estou crente forte chacina se teria abatido sobre os portugueses indefesos que ajudaram a levantar, desenvolver e engrandecer esta terra. Muitos aqui teriam perecido, tudo se conjugava para que assim acontecesse.

Havia pouco tempo, ouvíramos em Portugal um dos vultos mais proeminentes da revolução, um dos grandes mentores da entrega apressada das nossas ex-colónias, um dos maiores responsáveis da desgraça de tanto ser humano, desgraça essa que se prolonga já por vinte e muitos anos e Deus sabe por quanto tempo mais... esse mentor da descolonização dizia num acalorado discurso político: «os retornados do ultramar estão a ser para a nação um grave problema, nós nunca esperámos este regresso em massa, pensámos que alguns viriam mas nunca toda esta avalanche e não estávamos minimamente preparados para os receber».

Com esta invasão que vem por aí é que vai ser o bom e o bonito!

Se os políticos arquitectaram tudo para que os por­tugueses não tivessem hipótese de permanecer por mais tempo em Angola com um mínimo de condições e de segurança, digam-me então qual era o destino a que toda a população europeia residente em Angola estava votada pelos governantes?

Se não fosse a ponte aérea posta à disposição dos portugueses residentes em Angola por diversos países nunca teria sido possível saírem daquela terra tantos milhares de pessoas antes da independência, e, permanecendo lá, só poderiam ter vindo a ser carne para canhão.

Durante muitos anos brancos e negros tinham vivido sem conflitos, em harmonia. As relações degradaram-se a partir do momento em que começaram a lavrar, entre as sociedades negras, as ideias de que os portugueses estavam ali a mais, que tudo o que possuíam deveria passar de imediato a pertencer aos negros, que os brancos naquela terra não eram um factor de desenvolvimento mas de atrofia e usurpação, que a independência se deveria fazer apenas com negros, os quais deveriam tomar exclusivamente e de imediato em suas mãos os destinos de Angola. Apoiada a independência por povos “amigos” como a Rússia e Cuba e incentivada pelo governo português, estas ideias rápido proliferaram dando origem a que os brancos começassem a ser escorraçados. A finalidade era banir-nos daquelas paragens não nos restando outra alternativa senão abandonar Angola.

Em todas as circunstâncias a população negra era incentivada contra o branco em geral e o português em particular facto que forçou definitivamente a nossa partida.

Retornados

Há momentos na vida em que tudo se depara negro e a esperança parece irremediavelmente perdida. Se em Angola não poderia continuar, por sua vez em Portugal, quem regressava de África era recebido do pior modo possível; com hostilidade, desdém e mesmo agressividade.

Analisando um pouco a situação logo se chegava à conclusão do motivo pelo qual a maioria dos que agora re­gressavam das ex-colónias, tinham ido lá parar. “Rapidamente e em força para Angola” foi a voz de comando do primeiro ministro português em mil novecentos e sessenta e um, quando ocorreram os fatídicos acontecimentos perpetrados no norte de Angola e extensivos à capital da província. Foi porém demasiado tardia esta ordem.

Se em lugar de ser dificultada a ida dos portugueses do continente para o ultramar como foi durante muitos anos com processos demorados, chegando ao cúmulo de ser necessária uma carta de chamada enviada por um familiar que lá residisse há um certo tempo para que outro membro da família se lhe pudesse juntar, tivessem sido criadas condições de incentivo à ida e fixação de muitos mais portu­gueses para aquelas paragens, talvez as coisas tivessem sucedido dum outro modo. A política ultramarina portuguesa pecou muito por omissão e falta de actualização.

Apesar de tudo a maior parte dos jovens militares que partiram convocados pelo governo da nação seguiu, uns mais receosos que outros, alguns mesmo com uma certa revolta mas a maioria porém, com a noção de que iriam defender uma parte integrante do território nacional, em auxílio dos compatriotas ali nascidos ou radicados cuja integridade física estava a ser ameaçada, enfim, cumprir um dever patriótico ao qual ninguém se deveria eximir. A noção de patriotismo e do cumprimento do dever acompanhou-os e fê-los lutar com valentia no momento da refrega, porém, o conhecimento daquele povo e daquelas terras aos quais, sem dar por isso, se vieram a afeiçoar e a estimar enfeitiçaram muitos deles a tal ponto de trocarem o seu torrão natal por aquelas paragens africanas, elegendo-as, para ali se radicarem e alguns até constituírem família.

Enquanto, até mil novecentos e sessenta e um, grande parte dos colonos que partiram para o ultramar eram gente ligada à terra, que dela viviam e nela trabalhavam, a partir desta data já não era bem assim; muitas pessoas formadas com cursos médios e superiores, quadros qualificados das mais diversas áreas, radicaram-se nos territórios portugueses ultramarinos, facto que deu origem a uma nova maneira de estar, novas formas de vida e um novo desenvolvimento sem precedentes na história daqueles povos.

Matilde chegou a Angola, chamada por seu marido, um dos muitos militares que se deixou enfeitiçar irremediavelmente por África logo após a sua convocatória para a guerra colonial, no ano de mil novecentos e sessenta e um. Ela partiu da metrópole, curiosamente no último voo feito pela TAP num dos antigos aviões de quatro motores a hélice com escala em Bissau, capital da Guiné portuguesa.

Nessa época era costume cantar-se, em todas as escolas de Angola antes do início das aulas pela manhã, o hino “Angola é Nossa”, muito divulgado através de todas as estações de rádio. Angola é nossa gritarei / é carne é sangue da nossa grei / para libertar, para defender, / para lutar até morrer...

Na história de Portugal ensinava-se que Angola bem como todas as outras províncias ultramarinas constituíam parte integrante do grande império português que nos fora legado pelos nossos corajosos e gloriosos antepassados que deram novos mundos ao mundo através dos descobrimentos e eram senhores de aquém e além mar.

A noção de patriotismo do cidadão português, pesava muito na formação dos jovens sendo, como é natural, mais arreigada nos militares, porém, o facto destes terem partido em defesa de um bem comum, começou a esbater-se ao longo dos anos bem como a ligação directa que estas circunstâncias tiveram com a deslocação maciça de muitas de suas famílias para o ultramar.

Os valores da nossa sociedade, com a revolução de vinte e cinco de Abril, estavam a mudar vertiginosamente e nem todos para melhor.

A dificuldade em transferir dinheiro de Angola para o Continente constituiu sempre um obstáculo difícil de contornar à maioria das pessoas que optaram fazer de Angola a sua terra.

A falta de liberdade na circulação de bens entre o ultra­mar e o continente embora fosse justificada, até determinada altura, com a intenção de reter o capital em solo africano para que aí fosse investido, a partir do momento em que se pensou na independência das províncias ultramarinas deveria ter sido de imediato modificada a fim de garantir os direitos dos cidadãos portugueses que lá residiam. Tal medida não tendo sido tomada, originou uma verdadeira catástrofe para quem foi forçado a abandonar África.

Nesta altura dos acontecimentos, dadas as circuns­tâncias das mudanças políticas ocorridas em Portugal, é de todo incompreensível que a transferência de capitais não tenha sido permitida. É intolerável que as pessoas que voluntária ou involuntariamente quisessem abandonar Angola, Moçambique, Guiné ou outra qualquer província não pudessem trazer livremente os seus haveres; dinheiro, carros ou quaisquer outros bens materiais. Prédios, terrenos urbanos ou rústicos, fazendas, fábricas, estabelecimentos, imóveis de qualquer índole, estavam sentenciados a ficar; é mais que evidente que os seus possuidores todos os pretendiam vender mas, em face da situação, não havia quem se interessasse pela sua aquisição.

A maior parte dos bens pertencentes aos cidadãos portugueses foi pura e simplesmente abandonada pelo facto de seus donos não terem outra opção. Chegou-se ao cúmulo de se trocarem carros quase novos por simples volumes de maços de tabaco ou por pequenas porções de determinados alimentos, entre eles o pão, que raramente se encontrava à venda.

Houve quem trocasse fazendas e casas por títulos de hipotéticas transferências bancárias para o continente as quais nunca chegaram às mãos dos seus destinatários. O depósito no banco nunca se concretizou e o paradeiro do burlão na maioria dos casos era desconhecido. Os lesados nunca pode­riam reclamar sob pena de incorrerem em crime punido por lei, sendo acusados de transferência ilegal e fraude, se persistissem na queixa.

No mercado negro os escudos angolanos que em tempos, em momentos de alta, chegaram a trocar-se por escudos portugueses na base dos trinta por cento, o que era escandaloso, estavam agora no mesmo mercado nos setenta, oitenta por cento e nem mesmo assim era fácil conseguir a troca. Para além de todas estas vicissitudes, terem de entregar mil e oitocentos escudos angolanos para receberem mil portugueses, não era fácil de aceitar a pessoas que viviam do seu trabalho.

O facto do Governo Português não acautelar ou, pior ainda, não autorizar a transferência dos bens dos portugueses na altura da descolonização foi uma das maiores injustiças, praticadas por quem mandava e a desgraça de tanta gente, que após longos anos de trabalho, caiu sem culpa nem pecado na mais odiosa das misérias, na pobreza extrema, no desespero, muitos na loucura e até na morte. Foi a situação mais injusta e catastrófica que imaginar se possa!

Dum momento para o outro perderem todos os seus haveres sem nada terem contribuído para essa perda. Serem forçados a abandonar o fruto do trabalho árduo no decorrei de longos anos, de canseiras, vigílias, economias feitas à custa de grandes sacrifícios. Deixarem empresas, fazendas, prédios, terrenos, carros, dinheiro, a própria casa com seu recheio, objectos pessoais, roupas, enfim... tudo, (houve pessoas que, se quiseram salvar a vida, regressaram apenas a roupa que traziam vestida).

Verem-se despojados de quanto haviam adquirido, custa muito a aceitar e, é impossível explicar por palavras a quem o não viveu.

Porém a desventura não se ficou pelo roubo de que foram vítimas.

Para quem espoliado de África, ao chegar a Portugal se encontrava sem nada, sem trabalho e sem dinheiro para fazer face às despesas mínimas, com filhos, dois, três, quatro, que necessitavam de alimentação, casa, roupa, cuidados de saúde, de educação e os demais inerentes à vida. Bater de porta em porta à procura de trabalho, de alojamento e ver as portas fecharem-se-lhe sistematicamente. Tentar junto das instâncias oficiais encontrar soluções para minimizar as causas da tragédia que sobre si se abatera e não conseguir resposta. Ver passarem-se dias, semanas, meses sem vislum­brar a mais ténue luz ao fundo do túnel era duro e de uma imensa crueldade.

O calvário destas gentes no entanto, não se deteve por aqui, continuou no acolhimento de que foram alvo, nos títulos de honra com que foram rotulados: fascistas, colonizadores, desalojados, retornados. Retornados foi ponto assente. No fim de algum tempo ficariam os famigerados retornados.

Foi com muita tristeza e enorme desespero que constataram a hostilidade com que os viam chegar em ava­lanche cada vez mais densa à medida que se ia aproximando a anunciada independência, melhor diria, a desgraça. Desgraça dos retornados, despojados de todos os seus haveres e reduzidos à pobreza, desgraça e condenação definitiva das gentes de Angola.

Para maior desgosto dos já destroçados retornados, muitas pessoas da nossa sociedade achando-se na posse do discernimento, da sabedoria, da justiça nem sequer se davam ao trabalho de camuflar os seus sentimentos de desagrado, passando muitas vezes de hostis a agressoras quer em palavras quer amiúde em actos rancorosos praticados contra irmãos, parentes, amigos, conterrâneos conhecidos ou desconhecidos que despojados de tudo regressavam de África.

Estes ouviam com frequência dizerem-lhes que vinham sem nada porque queriam, ninguém os forçara a ficar por lá. Fora a ganância que os lá retivera. Porque não continuavam lá, se era uma terra tão boa? Claro, porque os pretos os corriam porque estava na cara que os maltratavam, os exploravam, os tinham subjugados na miséria. Toda a gente sabia que fulano, sicrano e beltrano chicoteava os pretos, os roubava, os obrigava a trabalhar como escravos...

Queixavam-se de quê? Só tinham o que mereciam. Aquilo era deles, que queriam os brancos trazer? A África é dos pretos, os portugueses é que estavam lá a mais.

Ainda por cima agora queriam vir tirar o lugar aos que cá estavam, que nunca de cá saíram, porque não eram ambiciosos como eles. Quiseram tudo, tudo haviam perdido. Agora nada tinham que se lastimar.

Chegavam ao cúmulo de lhes dizerem que o que haviam ganhado lá tinha sido à custa dos pretos, portanto era justo que lá ficasse.

Agora virem para cá e querem que o estado (eles, que no fim de contas eram eles) os sustentassem à boa vida! Isso era o que mais faltava! Lá tinham vivido à custa dos pretos, cá queriam viver à custa dos brancos.

Cambada de usurpadores e parasitas, era o que eles eram, acrescentavam quando a discussão subia de tom.

Este clima de acolhimento que nunca esperaram encon­trar, deixava os retornados tristes e exasperados. No entanto, apesar de todo o infortúnio por que estavam a passar, alguns dos que chegavam, mais desprendidos ou com um espírito de humor mais apurado, constituindo uma honrosa excepção, ainda tinham ânimo que, por vezes, lhes permitia brincar com a situação.

Foi o caso duma interessante conversa que Matilde ouviu uma tarde ao entrar num pequeno bar duma vila do centro do país onde, como é habitual, um grupo de homens, costumava juntar-se em amena cavaqueira. No momento a conversa estava animada. Os temas, como as cerejas, iam-se encadeando uns nos outros passando, inexoravelmente na altura, pelos retornados.

Uns queixavam-se disto, outros acusavam-nos daquilo, sendo, porém, todos unânimes na ideia de que os regressados de África estavam a constituir uma praga, tal era o número dos que afluíam dia após dia ao Velho Continente.

— Na realidade, disse um dos presentes à laia de con­clusão, daqui a pouco, não se vê mais nada nesta terra senão retornados e cães!

— É verdade, é verdade...

— Você é que tem razão - aplaudiram quase em uníssono todos os presentes.

De repente, alguém reflectiu e, uma voz se levantou do meio do grupo:

— O senhor por acaso não é retornado? Ou é?

— Claro que sou, homem!

— Eu também, exclamou quem falara e, ambos desa­taram a rir com vontade perante o espanto dos demais que de repente não se haviam apercebido onde estava a piada.

Mas estes momentos eram raros. O discurso normal era o que vínhamos descrevendo.

Os retornados eram cada vez mais, queriam era vir tirar os lugares, os postos de trabalho, passar à frente, dos que cá estavam mas isso não iria acontecer porque eles não deixariam. Que pouca vergonha, andaram lá a ganhar muito mais do que os que cá estavam, a trabalhar muito menos, e o tempo a contar a dobrar!

Era com ditos desta estirpe que os mimoseavam.

Parece impossível, mas estas ideias andavam na cabeça de colegas, amigos e até familiares e eram apresentadas sem a menor deferência.

Tentar chamar à razão essas pessoas, que se insurgiam contra quem forçado regressava à sua terra, argumentando de mil maneiras, era tarefa vã. Dizer-lhes que afinal com a ida de muitas pessoas para o ultramar todos haviam ganhado, que as terras africanas foram alvo de um desenvolvimento sem precedentes na história, que as relações entre brancos e negros eram boas, que isso de tratar os negros como escravos, chicoteá-los, acontecera em tempos muito remotos e não na nossa geração (tempos nos quais os próprios brancos eram assim tratados, por outros brancos). Lembrar-lhes quantas mulheres na actualidade recebiam aqui maus tratos, quantas eram exploradas no seu trabalho, já não falando na prática corrente da exploração do trabalho das crianças, dos des­protegidos, dos humildes... de nada valia.

Pareciam desconhecer ou pretenderem ignorar que todas estas questões e procedimentos, embora incorrectos, eram fruto da época e aceites como normais pela sociedade então vigente. Em Angola não acontecera mais que o reflexo do que se passara cá e por esse mundo além, apenas com uma pequena mas significativa diferença; entre os portu­gueses e os nativos aconteceu o que não aconteceu com nenhum outro povo colonizador, a mestiçagem seguida ou antecedida de muitos casamentos entre brancos e negros; não era por acaso que se dizia que, Deus criara os brancos e os negros e os portugueses os mestiços.

Tentar afirmar que os portugueses na generalidade eram tolerantes amigos e respeitavam os africanos tal como os naturais do continente, pagando-lhes bem se trabalhavam bem, era tempo perdido pois tais argumentos pura e simplesmente não lhes interessavam. Era ponto assente:

quem não tinha ido ou ficado em África era honesto, quem lá permanecera era explorador.

No seu entender existiriam algumas excepções... talvez! Davam-lhes por vezes o beneficio da dúvida.

Tentar fazer com que reflectissem, lembrando-lhes que quase toda aquela gente havida perdido tudo sem culpa, pedindo-lhes que se colocassem no lugar de quem voltava de mãos vazias, tal como se um fogo ou uma catástrofe na­tural, um terramoto por exemplo, lhes destruísse todo o seu património, deixando-os dum momento para o outro sem nada, era tempo perdido pois recusavam-se a estabelecer semelhante comparação, por inverosímil.

Caricato seria perguntar-lhes se os emigrantes portugueses, na França, enriqueceram à custa de explorarem os franceses, os da Venezuela, os venezuelanos.., e se os negros não deveriam permanecer na Europa porque não é a sua terra, mas os retornados nunca poderiam colocar tais questões porque jamais pensariam desse modo.

Só passados muitos anos, grande parte dos membros da nossa sociedade viria a admitir que os retornados, na sua maioria, eram gente honesta e empreendedora. Muitos deles conseguiram refazer a sua vida em tempo recorde e, de uma forma exemplar, o que deixou admirados todos os que tiveram conhecimento do modo, talvez único, como se ajudaram mutuamente. O que por certo talvez nunca conseguirão avaliar é o sofrimento pelo qual passaram durante todo esse período de recuperação e as feridas que apesar de todos os esforços, não conseguiram jamais sanar.

Deveria, no mínimo, ter ocorrido, a seu tempo um processo de indemnização aos lesados, por parte do Governo Português, porém, até ao momento actual, por estranho e incrível que pareça, tal facto ainda não aconteceu, a justiça ainda não foi reposta.

A realidade do mau acolhimento de que estavam a ser vítimas todos os que retornavam a Portugal já Matilde a conhecia penosamente martelando-lhe o cérebro sem parar, e quanto doía! Porém era preferível enfrentar a hostilidade na sua terra, a permanecer em Angola onde a vida se havia transformado num enorme pesadelo.

Afinal ela era uma optimista nata e não perdera a es­perança de que, após ter a família reunida, iria conseguir contornar os obstáculos e vencer as dificuldades que se lhe deparassem, por maiores que fossem.

A hora da chegada

África tem em si uma atracção fatal e um feitiço que prende irresistivelmente quem a conhece. O seu clima, as suas águas quentes, os seus espaços infindos; savanas, estepes, suas florestas virgens com densas matas, a suprema riqueza da sua fauna e flora, a sua vida selvagem, os desertos, enfim um sem número de aspectos fazem daquelas terras se não o paraíso, pelo menos uma prova de que ele existe. Quem algum dia viveu naquelas paragens passa forçosamente a ver a vida com outros olhos, os seus horizontes jamais serão comportáveis em espaços exíguos, a sua mente estará sempre aberta a grandes dimensões.

Não admira que durante todos aqueles anos, apelidados de guerra colonial, muitos dos soldados que para África foram mobilizados, não resolvessem apenas ficar, mas chamassem para sua companhia as esposas, os filhos, os pais, os amigos.

Todos os dias chegavam a Angola inúmeras pessoas vindas do continente para se juntarem aos familiares e amigos que as aguardavam ansiosamente.

Nos anos sessenta a chegada de um contingente de tropas era motivo de festa e grande alegria. A população de Luanda tirava o dia para aguardar a saída dos militares do porto; esperavam-nos ao longo de toda a Avenida Marginal e aí os recebiam calorosamente. Negros e brancos aca­rinhavam-nos à sua passagem com palmas, sorrisos, abraços, beijos e flores.

Com o passar dos anos estes acontecimentos tomaram-se rotineiros. Os batalhões e as companhias passaram a chegar com regularidade e a maior parte por via aérea, razão pela qual já não se fazia o desfile das tropas à chegada.

Mas não eram só os militares que diariamente chega­vam a Angola, passaram a chegar os familiares, os amigos, os vizinhos e era sempre com grande contentamento que se via atracar um dos majestosos paquetes da frota portuguesa: o Infante D. Henrique, o Príncipe Perfeito, o Pátria, o Vera Cruz... e embora já não acontecesse como relatam os mais antigos que no dia de S. Barco ninguém trabalhava, se entre os passageiros vinha um amigo, um parente, um conhecido deixava-se tudo para ir esperá-lo, desejar-lhe as boas vindas e, quiçá, saber notícias da própria família que estava na Metrópole.

Jaime, um conterrâneo e compadre do João, um pouco mais velho do que ele, casara e tinha oito filhos, sendo o sexto um rapaz chamado Gilberto que contava agora treze anos, e era afilhado do João.

O curto vencimento que o Jaime auferia numa fábrica onde trabalhava em Aveiro, há muito tempo que era escasso para sustentar a família. Ele, ao saber que o compadre casara e mandara ir a esposa para junto de si, lembrou-se de lhe pedir para lhe arranjar emprego em Luanda. Viera já lá iam quatro anos e achou que era tempo de mandar chamar a esposa e os filhos.

Chegaram a Luanda numa manhã de Março. Atracado o barco, o Pátria, algo de anormal acontecia no porto que estava a atrasar o desembarque dos passageiros e bagagens. Dentro do navio, os bagageiros, não havia maneira de aparecerem. Zulmira, a esposa do Jaime, que esperara todos aqueles anos, mais os infindáveis dez dias da viagem não conseguiu aguentar mais a demora e decidida como sempre o foram as mulheres portuguesas, tratou de pôr à cabeça um saco onde transportava alguns haveres, chamou os filhos pegando pela mão do mais novo e com os outros em fila atrás de si, toca de descer as escadas, sendo a primeira passageira a pôr pé em terra.

Na semana seguinte, ela com os filhos eram capa da revista Notícias, que relatava um problema havido entre o pessoal de estiva e ilustrava o acontecimento com a foto da Zulmira e seus filhos.

Na fotografia via-se a Zulmira toda risonha de saco à cabeça descendo as escadas do navio acompanhada dos filhos precisamente com esta legenda: «Esta mulher decidida não precisou de bagageiros, deitou o saco à cabeça e ala que se faz tarde que o marido estava à espera».

Foi Matilde que ao folhear a revista “Notícias de Angola,” se deparou com a foto e ainda hoje guarda a revista como recordação.

Iam bem longe esses alegres dias da chegada. Sem saber como, estávamos já na dolorosa hora da partida. Também a família do Jaime e da Zulmira aguardavam angustiados o momento de deixar Luanda.

— Tanta esperança e tanta canseira para quê? Para agora termos de partir sem nada e desesperados. Comentou Matilde entristecida.

De repente pareceu-lhe ouvir marchar e disse para o marido:

Escuta, não ouves marchar?

— Marchar? Estás enganada. Quem é que queres que ande por aí a marchar?

— Os pioneiros, devem ser os pioneiros. E dizendo isto, pousou o uísque que estava a tomar e foi espreitar a Avenida.

— Vem cá, aonde vais com essa pressa toda? Não sabes que os pioneiros que nos habituámos a ver já não existem?

Agora...

Na realidade, na Avenida nada de anormal se passava, apenas o tráfego igual aos dias anteriores.

— Foi imaginação minha, pareceu-me mesmo ouvir marchar... disse Matilde, voltando ao seu uísque e sorvendo um trago, tentando assim desfazer o nó que de repente lhe apertava a garganta, nem a deixando ouvir o que João começara a dizer-lhe.

Este, aproveitando a sua distracção, com habilidade mudou de assunto, não prosseguindo a explicação que parecia ter iniciado. Era seu propósito mantê-la afastada da realidade o máximo tempo possível.

Só alguns dias mais tarde Matilde viria a tomar conhecimento que os pioneiros, que imaginara ouvir e que outrora costumavam marchar nas ruas da cidade, se haviam transformado em bandos de guerrilheiros que atacavam e perpetravam ocupações, roubos, mortes e crimes de toda a índole e entre os quais as crianças já pouco ou nada significavam.

(...)

Um Olhar à Distância

A distância no espaço e no tempo apaga a dor e a revolta, clarifica o discernimento, estabiliza, e deixa que floresçam novas esperanças no nosso olhar que pode ser selectivo ou abrangente, transmitir raiva ou ternura, inconformismo ou resignação ... Feitiço, lenda, realidade, pesadelo e ... saudade!... Tudo é Angola.

A Angola do verbo abandonar conjugado a doer tem profundas cicatrizes cujo testemunho, “a geração dos retornados,” não poderia deixar de legar...

Dado o poder que nos assiste de nos indignarmos, e pretendendo não tanto ajuizar sobre a gestão da culpa nem tão pouco analisar questões políticas mas antes relatar um pouco do drama vivido pelos civis que, estando em Angola, foram espoliados de seus haveres, com risco de suas próprias vidas, procurámos retratar a tragédia e o desespero vividos por tantas famílias reduzidas à mais ínfima miséria, tantos seres humanos destroçados psicologicamente, corridos da terra que ajudaram a defender e a progredir e recebidos com tão grande hostilidade na terra que os viu nascer.

Patenteando a sensação de que Angola, tal como a lendária Atlântida, se sumiu, não da crosta terrestre mas sim do rol das preocupações do mundo, questionamos a razão pela qual os Angolanos continuam a ser trucidados por granadas que semearam na sua terra em lugar de pão, massacrados, desenraizados de suas casas, desmembradas as suas famílias, ou mortos do modo mais ignóbil, à fome, numa terra onde tudo cresce quase espontaneamente, através de uma guerra da qual não se vislumbra o fim.

A descolonização portuguesa ultrapassou tudo o que se poderia imaginar, os acontecimentos sucederam-se de modo tão imprevisível que mais pareciam ficção.

Na nossa narração a imaginação insistiu tanto que acabou por entrar neste ou naquele espaço mais ou menos ficcionado; mas eis que sentimos haver saldado uma dívida que tínhamos para com aqueles que, não tendo vivido estes tempos em Angola, os julgavam sem terem ouvido um testemunho. Poderemos de agora em diante reiniciar um velho hábito de viver a saborear a vida, pese-nos embora a certeza de que há guerras que não mais acabam dentro de nós...


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