domingo, 14 de dezembro de 2008

Missionários no Sul de Angola




























































1. Missão Huila e Iemão de S. José
2. Missão do Tschivinguiro

3. e 4. Missão da Huíla
5. Banda de música da Missão da Huila
(Papéis do Império Português) -

Os Padres Espiritanos no Sul de Angola (Séc. XIX)

"(...) Além do importante reforço dos Bóeres e dos Madeirenses, o avanço português nos espaços meridionais pôde ainda contar com o auxílio de outros aliados, que vimos chegar recentemente ao planalto: os padres católicos da Congregação do Espírito Santo. Em alguns aspectos, a conduta destes homens de fé e coragem faz lembrar a dos antigos religiosos do Congo e do Ndongo. Mas a sua acção revela-se em geral mais desprendida, virtuosa e duradoura do que a desses remotos evangeli­zadores do Norte...

No Sul de Angola, a história dos espiritanos, quase todos oriundos de França, constitui um impressionante rosário de alegrias missionárias, aventuras ro­cambolescas e martírios excruciantes. A homens como Duparquet, Antunes, Schaller, Lecomte, Delpuech, Génié, Keiling e tantos outros, ficaram os Portugueses a dever notáveis serviços e, vez por outra, a suprema dádiva da pró­pria vida..

Os missionários formavam a vanguarda piedosa e conciliadora de que eles careciam para melhor se infiltrarem. Quando, nos primeiros anos da década de oitenta, as autoridades lusas ainda se satisfaziam com manter no Humbe a guarda avançada da progressão para leste, já os padres haviam ousado cruzar o Cunene, pisando os trilhos dos sertanejos. Em 1883 andavam pelos domínios dos Ganguelas, entre o Cunene e o Cubango, mantendo uma missão em Caquele, um pouco abaixo de Cassinga. Mais para sul, tinham-se instalado em Cauva, entre os Cuanhamas, nas ime­diações da residência do soba Namadi (...)..(...)

Os padres puderam assim lançar-se pelos ser­tões com convicção e destemor, levando com eles as palavras da sua fé e o segredo mágico do apaziguamento. Às vezes passavam por aflições, como no dia em que o padre Antunes, da Huíla, requereu do soba que enviasse os seus súbditos à missa. O chefe africano anuiu com presteza. Desta forma, meia centena de muílas presencia­ram a ce­lebração num silêncio de tal forma reverente, que o missionário se imagi­nou di­ante do venturoso prenúncio de uma conversão maciça..Quando Antunes se reco­lheu, agradecido e reconfortado, à sua modesta habitação, foi surpre­endido pela furiosa vozearia da nova assembleia de crentes. Reunidos à volta da casa, os Muílas exigi­am aos berros o pagamento dos seus trabalhos. O padre caiu das nu­vens: Pagamento? Pagamento de quê? Os manifestantes vibraram de indig­nação com tamanha desfaçatez: Pagamento de estar na igreja! Antunes procurou tornear a questão, mas a gritaria subiu de tom. E não houve maneira de convencer os inter­lo­cutores de que ouvir missa fosse, sob o ponto de vista da retribuição, uma activi­dade diferente de carregar tipóia ou uma gamela de cera. Contristado, o espiri­tano lá acabou por liquidar a dívida, remoendo, decerto, em como eram às ve­zes inesperados e pedregosos os atalhos escolhidos pelo Senhor..Não obstante certos mal-entendidos, a recepção dispensada aos padres nos povoados caracterizava-se, de ordinário, pela hospitalidade. A maioria dos africa­nos acostumou-se a vê-los como seres inofensivos, animados de inten­ções benévo­las.


Nos finais de 1884, assim que o padre Joaquim Folga lhe falou de baptismo, Dumba, soba ovimbundo do Galangue, asseverou-lhe que não pensava noutra coisa. O soba, esmeradamente ataviado à europeia - calçado, engravatado e de chapéu -, estava num dos seus dias de bom humor, disposto a contentar o padre. Começou por elo­giar-lhe a cor e o tamanho das barbas emaranhadas. Folga, penho­rado, retri­buiu, passando ao de leve a palma da mão pela face do poderoso anfi­trião. Os ovimbun­dos presentes bradaram que esse gesto constituía uma inconveni­ência. Dumba apressou-se a deitar água na fervura, pedindo-lhes que deixassem em paz o missio­nário - um bom sujeito, na sua opinião, embora ignorante dos costumes do povo. Tornando ao tema do baptismo, o soba esclareceu que existiam bons ante­ce­dentes a esse respeito: o seu pai e um tio haviam recebido o santo sacramento. O tio dava mesmo pela emproada identificação portuguesa de Joaquim Carvalho das Chagas. Podia, pois, avançar-se por idêntico caminho, mas só depois de satisfeitas algumas condições.

Ele exigia em primeiro lugar uma patente militar com a farda cor­respondente. A farda deveria ser agaloada a ouro e dela fariam parte um chapéu armado e sapatos. Por outro lado, o baptismo teria lugar na presença de quatro sol­dados e um corneta - isto é, um clarim - do Exército Português, tal como acontecera com seu pai. O soba concedia com amabilidade que se lhe fossem baptizando os filhos, enquanto o missionário não estivesse em situação de pre­encher os re­quisi­tos. Tudo parecia decorrer a contento. Durante os preparativos, porém, o padre notou uma estranha restolhada: associando-se à alegria geral, o soba aprestava-se para sacrificar as vidas de alguns homens em honra dos novos cris­tãos. Folga ad­moestou-o com veemência e recorreu ao mais persuasivo dos ar­gu­mentos: se Dumba teimasse naquela barbaridade, jamais lhe seria ministrado o baptismo. Impressionado, o soba deixou cair uma promessa solene: Eu não farei mais mor­tes..

Os padres maravilhavam-se vezes sem conta com o apuro espiritual dos po­tenciais discípulos africanos. Na Huíla, devotaram-se durante largo tempo a reco­lher os dizeres amealhados na memória do povo. Para sua grande admiração, reuni­ram mais de quinhentas máximas que pressupunham a crença em Deus e no valor dos bons princípios, tal como os entendiam os cristãos:Eles crêem numa eternidade, feliz ou infeliz; os seus provérbios recomen­dam as virtudes morais e condenam os vícios, o egoísmo, a presunção, a cobi­ça, o ócio, a maledicência, a mentira, a cólera, a hipocrisia, a ingratidão, a inconstância (...). Este conjunto de crenças é um magnífico ponto de partida para levantar o espírito desta gente às verdades superiores da revelação cris­tã..


No Sul de Angola, alguns espiritanos tomados pelo anseio da comunhão huma­na abandonavam voluntariamente a pacatez bucólica das missões para se mistura­rem com os habitantes dos aldeamentos perdidos no mato. Isso sucedeu, por exem­plo, com o padre Inácio dos Santos, que resolveu passar uma temporada entre os muílas de Mucuma, a meia dúzia de quilómetros do Jau. O missionário deixou des­ses dias uma narração saudosa, impregnada de melancólica jovialidade..

Acolhido com des­confiada curiosidade por dezenas de homens armados de espingardas, fez saber ao chefe que apenas pretendia travar conhecimento com o povo. Acrescentou que não era um homem mau, que nunca fizera guerra aos pretos e que jamais lhes rouba­ra gado. Logo se viu adoptado pelos habitantes do eumbo: Eu era já tratado como uma pessoa de família, entrava e saía sem o menor reparo, os cães já me conhe­ciam e calavam o bico quando eu passava..

Generosos, os Muílas forneceram-lhe alojamento gratuito, deram-lhe a comer do seu pirão e da carne das suas capoeiras e serviram-lhe berlunga para regar as refeições: Nunca ali se comia nem bebia coisa nenhuma sem que todos comessem e bebessem ao mesmo tempo, e era aos velhos a quem primeiro se oferecia. Sobressaem nas memórias do padre as sosse­gadas palestras que ele entretinha com o povo, já noite caída, depois da ceia:.

Era para mim o bocadinho de maior interesse; todos os pretos se achavam juntos no pequeno pátio da minha casa, a vela de estearina, enterrada no chão, bruxuleava uma luz pálida, que ainda assim arrancava reflexos aos narizes mais lustrosos dos assistentes; por cima o céu e as estrelas, e a natureza contem­plando silenci­osa aquela reunião de família em que eu era feliz. Inácio discorria perante a as­sembleia sobre as maravilhas da sua terra natal e da sua cultura: Quis-lhes de­monstrar que era a Terra que andava e não o Sol, o que pouco os interes­sou; contei-lhes a maior parte das invenções dos brancos, máquinas a vapor e eléc­tricas, telégrafos e aeróstatos, canhões e navios, e as minhas narrações eram in­terrompidas por muitos apartes e sempre terminavam pela admiração final - "o branco é um grande bicho!".

Os muílas de Mucuma, por seu turno, partilharam com o missionário os pequenos e os grandes segredos do seu manso quotidiano. Explicaram-lhe por que têm os negros o nariz achatado e elucidaram-no sobre os motivos que impedem as galinhas de pôr ovos em certa época do ano. Maliciosos, asseveraram-lhe que há muito tinham desvendado o mistério das longas e sedosas barbas dos brancos - eles comiam bem e bebiam melhor..A maior das confidências referiu-se contudo ao modo como obtinham chuva para os campos. A água tom­bava a mando do soba do Jau, que era todavia intratável quanto ao preço dos seus servi­ços: Já este ano lhe tinham mandado dois bois, mas ainda não chegava, porque ele queria mais uma vaca e uma criança, e por isso é que a chuva não viera até agora; dar-lhe-iam o que queria, isto é, a vaca e a criança, mas se desta vez não a mandasse, saltar-lhe-iam no pêlo e em seu lugar haviam de pôr outro que lhes desse a chuva mais barata e a horas..

No momento da despedida, Inácio dos Santos pôde avaliar como se tornara benquisto em Mucuma: Nessa noite disse-lhes que partiria no dia seguinte pela manhã, e mostraram ares de tristeza; agradeci-lhes o modo cordial e amigo com que me haviam tratado, e eles exigi­ram que lhes dissesse formalmente que não me ia embora por estar mal contente; disse-lhes, e todos ficaram satisfeitos.


Os Muílas despediram-se do padre entoan­do os seus cânticos. Quando Inácio se voltou para trás e lhes disse adeus, eles res­ponde­ram em coro: Vai em paz!.O padre Manuel Braz, da missão do Tchivinguiro, próxima do Lubango, no Sul de Angola, granjeou o seu prestígio junto dos Muílas mercê de uma extraordinária aventura. Sabedor de que a légua e meia da missão existia uma caverna enfeitiçada muito temida pelo povo - na qual ninguém havia penetrado até então -, meteu-se certa manhã com três companheiros a caminho do local, resolvido a decifrar o mistério. Sentindo-se em paz consigo e com o mundo, levava o coração repleto de fé e poesia: A esta hora do dia a terra africana ostentava o aspecto encantador do sempre suspirado paraíso terrestre.

No monte da caverna, rodeado de uma cintura de penhascos cortados a pique, um pastor muíla procurou atalhar-lhe o passo: Se lá quiseres entrar, sabe que não tornarás a sair; o mundo morrerá para ti; e tu morrerás para o mundo. Mas neste missionário de transbordante sensibilidade habitava também o espírito de um explorador arrojado. Correndo embo­ra o risco de se transformar em morto-vivo de um instante para o outro, Braz acer­cou-se da boca da caverna: Era escura como um templo gótico, medonha como um sepulcro. Alguns raios de luz que lá penetravam com dificuldade eram tão pálidos, tão tristes, que não davam mais claridade do que a que pode dar uma lâmpada de igreja numa noite sem lua. O padre deslizou pelas penedias es­carpa­das, eriçadas de estalactites e estalagmites. Quando assentou os pés no fundo, envolvido numa luminosidade mortiça, entreviu uma gigantesca nave circular, orla­da de ni­chos e galerias. Os nervos deste audacioso sofreram uma provação terrível, assim que meteu pelo negrume de um túnel:.Em breve me achei rodeado de densas trevas e ouvia um estalar sinistro a cada passo que dava; neste momento arrepiaram-se-me os cabelos e já não ousava ir mais adiante; lembrei-me de acender um archotezinho que comigo levava. Mas, oh!, qual não foi o meu espanto quando à luz do archote vi cla­ramente debaixo de meus pés um montão de ossos humanos, todo o chão da­quele tenebroso subterrâneo juncado de cadáveres mirrados, descarnados!... Era medonho! Respirava-se um ar fétido e nauseabundo - o ar das podridões sepulcrais! Rodeado de um silêncio cheio de medos, sepultado vivo, por assim dizer, naquele jazigo imenso, os olhos fitos sobre tantos cadáveres e tantos ossos, parecia-me estar vendo através dos clarões pálidos do archote as tris­tes páginas da história deste grande povo africano, escravo de todos os po­vos..

O missionário deixou com celeridade aquele antro sinistro, provavelmente um antigo lugar de execuções. Reuniu contudo o sangue-frio bastante para transportar consigo, como provas da façanha, um crânio e um pedaço de estalactite. O resul­tado excedeu as suas melhores expectativas. Fora da caverna, viu-se jubilosamente acolhido pelos companheiros da missão e pelo povo dos eumbos vizinhos: Uns nos aclamavam como heróis, outros como filhos do Sol, estes nos chamavam feiticei­ros brancos, aqueles descendentes dos deuses.Aos imprudentes que ousaram du­vidar, reservou o padre um tratamento de choque, exibindo-lhes, com brusquidão e alguma impiedade, a caveira e a estalactite: Ficaram tão horrorizados (...) que se puseram logo na perna e desapareceram num instante, como por encanto. Com a reputação assegurada e o campo livre de cepticismos inoportunos, pôde o missio­nário tratar, com sossego e autoridade, das coisas da fé: Escutaram tudo quanto lhes disse com silencioso respeito..O luto e os espinhos do martírio abatiam-se por vezes sobre esses padres volun­tariosos. Nas terras dos Ganguelas, perto de Cassinga, apagou-se em 1884, abrasa­do de febres, o padre Hogan. Um seu compa­nheiro, o pa­dre Lynch, igualmente de­vorado pela doença, apenas lhe sobreviveu um mês. Mas a ocorrência mais trágica deu-se em Cauva, no Cuanhama, onde o jovem soba Namadi anuíra à instalação dos espiritanos.


Esta terra, a oriente do curso médio do Cunene, mantinha-se interdita à construção de bases militares dos brancos, mas era percor­rida por sertanejos e ca­çadores. Namadi, detentor do poder desde 1882, ficou re­cordado como um sobera­no desejoso de modernizar o Cuanhama. Acumulava num armazém os tesouros que obtinha dos comerciantes estrangeiros: embalagens de munições, ancoretas de aguardente, cai­xas de vinho e conhaque, enlatados diversos, vestuário, livros e, até, uma grafonola comprada a um português por vinte bois. Vestia com frequência à europeia, era bom cavaleiro e atirador exímio. Passeava-se pela terra empunhando a sua arma de repetição, uma Winchester. Dele se esboça em várias fontes o retrato de um tirano, o que parece confirmado pelas lembranças do povo. Amabilíssimo para com os brancos, exercia um mando desapiedado sobre os súbditos. É prová­vel que a inti­midade com os estrangeiros fosse julgada exces­siva pela nobreza do país, devendo residir aí a chave do seu triste destino.

.O padre Duparquet, perspicaz como sempre, estava longe de sentir-se tranquilo com as duas faces de Namadi. Um dia teve uma espécie de premonição e planeou transferir a missão para locais mais seguros. Não agiu, todavia, a tempo, e, durante uma das suas ausências, os espiritanos da missão viram-se enredados nas malhas do que parece ter constituído uma hábil conspiração para assassinar o soba cua­nhama.

Nos primeiros dias de Junho de 1885, este deslocou-se em visita de corte­sia ao carro de Jordan, o comerciante inglês. De excelente humor, Namadi comeu, bebeu e tagarelou algum tempo com os brancos. Quando se retirou, deteve-se por instantes numa cubata vizinha, onde lhe serviram omalodo, espécie de cerve­ja confeccionada com sorgo grelado. A caminho de casa, já muito indisposto, con­fi­denciou a um irmão: Vamos, depressa, porque sinto cólicas horríveis. Pouco de­pois, os missionários recebiam um pedido de auxílio do soba. Em torno da resi­dência deste, porém, acabara de fechar-se um círculo enigmático e intransponível. Às insistências dos padres retorquiam os guardas com evasivas e contradições: O soba dorme neste momento, ou: ele não está em casa..Por detrás do entrançado de espinheiros e das sólidas paliçadas que protegiam a habitação, algures, no típico labirinto das residências cuanhamas, Namadi, decerto isolado pelos conspiradores, agonizava. Dois dias mais tarde, expirou. É possível que os assassinos tenham nessa altura jogado com a crença cuanhama de que para cada morte humana existe sempre um culpado terreno, ainda que regido por qualquer espírito extraviado. Dedos acusadores viraram-se então, na sombra, contra os que menos razões teriam para suprimir Namadi: os brancos..

A 6 de Junho, instigados à vingança, grupos de cuanhamas tomaram de assalto os raros estabelecimentos comerci­ais, mas os pro­prietários conseguiram escapar-se para o Humbe, do outro lado do Cunene. Um ir­mão espiritano, Lúcio Rothan, morreu varado por uma bala. O padre Delpuech tombou logo de seguida, atingido por uma zagaia. As instalações da mis­são foram invadidas e saqueadas. O irmão Gerardo, despido e maltratado, evadiu-se por mi­lagre, sumindo-se num bosque das cercanias. Quando mais tarde se apre­sentou ao novo soba - Weyulu, um amável adolescente de quinze anos -, ouviu deste uma sentida expressão de pesar. O jovem mandou fornecer-lhe roupas e um cavalo e deixou que ele partisse para o Humbe com as crianças nativas protegidas da mis­são. Após a tragédia, um dos mais notáveis espiritanos, o padre Lecomte, desaba­faria com amargo sentido das realidades: Morrer em África, levado por uma fe­bre, mordido por uma serpente, esgotado por longos anos de trabalhos ou mas­sacrado numa revolução, o que é isto senão ser mártir? (...)"

..(José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento - Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos- Editorial Estampa - Lisboa - 1999).
http://booksnow1.scholarsportal.info/ebooks/oca9/13/civilizandoangol00brag/civilizandoangol00brag_djvu.txt

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