sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

HOLOCAUSTO EM ANGOLA 2

HOLOCAUSTO EM ANGOLA

Neste excelente livro com 611 páginas o autor, relata minuciosamente o sofrimento nas prisões da DISA de todos aqueles que não concordavam com o regime marxista-leninista imposto por Agostinho Neto. Sugerimos vivamente a sua leitura a todos aqueles que estão interessados em saber a verdade sobre o golpe de Nito Alves no 27 de Maio de 1977, as atrocidades e violações dos mais elementares direitos do homem cometidas nas prisões de Angola. Como o livro tem copyright e não será fácil de adquirir à maioria dos que vivem em Angola e sobre tudo na diáspora, extraímos apenas alguns extractos do texto que achámos mais importantes pelo solicitamos a complacência da Editora e do Autor. Por motivos de edição tivemos de eliminar no texto os números de chamada de atenção para as fontes pelo pedimos desculpa. Muito obrigado em nome de todos.

Circunstâncias que explico no capítulo seguinte conduziram-me às prisões angolanas, numa altura em que estava profissionalmente ligado aos destinos da Diamang. Aí conheci e recolhi as narrativas dos que experimentavam na carne e no espírito a violência de uma hegemonia partidocrática sustentada pela violação constante dos mais elementares direitos, num Estado sem direito. Aí me inteirei das dimensões tentaculares do poder do MPLA, poder que era uma ameaça até para os angolanos que viviam fora do território angolano.

O período em que estive na prisão coincidiu com um dos mais violentos na história da independência da nação angolana. Recentemente, o historiador Carlos Pacheco referia-se com justeza a esse tempo de brutalidades:

Nenhum militante do MPLA, supostamente tido como opositor a Agostinho Neto, escapou a esta e a outras crueldades das forças militares e de segurança. Caso da DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola, cujo director era o comandante Ludy Kissassunda) que transformou as prisões e os campos de concentração em verdadeiros infernos e onde, não raro, se espancavam os reclusos nas celas e nos pátios à vista de toda a gente. Chegando mesmo a matar-se à queima-roupa. Havia agentes da segurança que, com o maior despudor, se vangloriavam perante os presos, no decorrer dos interrogatórios, feitos debaixo das maiores brutalidades, que se em Cuba se tinham fuzilado 15. 000 vermes (sic), em Angola podiam-se fuzilar muitos mais.

As afirmações sublinhadas, ouviu-as o próprio historiador da boca dos agentes Geitoeira e João Baião, durante um interrogatório de cerca de duas horas, no presídio de São Paulo, em Luanda, na tarde do dia 31 de Maio de 1977. Segundo o testemunho de Carlos Pacheco, os verdugos colocaram várias vezes um fuzil de fabrico russo em cima da mesa, alegando que estavam ali para fazer "justiça sumária", segundo vontade expressa de Agostinho Neto. E o historiador continua:

Durante três anos mantiveram-se milhares de jovens nas piores condições possíveis, em estado de privação total de liberdade, sem culpa formada, sujeitos a todo o tipo de maus-tratos. A penitenciária de São Paulo (em Luanda), por exemplo, abarrotava de presos políticos incursos em vários processos: 27 de Maio, Revolta Activa (à Revolta activa pertencia a fma-flor dissidente do MPLA), OCA (Organização Comunista de Angola), CAC's (Comités Amílcar Cabral), e assim por diante.

Os odps participavam nas barreiras de controlo e, como tinham um grande conhecimento do terreno, eram muito eficazes. Às vezes "demasiado" eficazes, como daquela vez em que o carro de um diplomata da Roménia, por não ter parado num desses controlos, numa rua de Luanda, foi atingido, de tal forma que não sobreviveu ao ataque. Eram também eles que se encarregavam de hastear, de manhã, e recolher, à noite, a bandeira do MPLA em todo o território controlado por esta força política. Este sistema de vigilância, implementado entre 1975 e 1991, tornou todos os angolanos reféns do MPLA, no território angolano. Esta limitação drástica da liberdade de circulação estava ao serviço do autoritarismo partidário e, não raro, serviu arbitrariedades de todo o tamanho. Enquanto estive no Dundo, ao serviço da Diamang, precisei de um salvo-conduto para circular na área da companhia.

Durante os anos em que permaneci dentro dos muros das prisões angolanas, de 1977 a 1980, aproveitei toda a margem de manobra para fazer dessa estada um reservatório de memórias. Tirando alguns períodos de repressão mais musculada, consegui alguma liberdade de circulação dentro da prisão — eu era para grande parte dos presos e carcereiros um cota inofensivo de quem poderiam obter algum tipo de ajuda. Um problema inicial se colocava: como registar a informação. O leitor saberá que o universo prisional é um antro de tabaco. Os invólucros dos maços de tabaco que todos deitavam fora tornaram-se o pergaminho da minha memória, permitindo a anotação de tudo o que ouvia e conversava com os companheiros de destino, num código por mim forjado, a partir da minha já remota experiência militar (Departamento de Cifra do Quartel General do Comando Militar dos Açores). Apontava grande parte do que ouvia e via quando estava só — os períodos de recreio em que os presos viam televisão faziam parte do conjunto de situações privilegiadas.

O problema maior era a saída da prisão. Como sempre, estes regimes de violência arbitrária são também alfobres de corrupção. Assim, segundo expedientes que só conheci depois de sair de Angola, aqueles que me davam apoio faziam-me chegar à prisão malas da TAP com comida, roupa, sapatos e medicamentos — com as malas vinham muitos outros produtos pedidos, que eu nem chegava a ver, para satisfazer as autoridades que favoreciam a sua entrada. Como entravam, também saíam. Dentro desses sacos vinha ainda uma folha de cartão que lhes dava forma. Esse cartão foi o meu veículo de transporte e comunicação. Ele era constituído por inúmeras folhas prensadas que eu separava cuidadosamente. Depois voltava a juntá-las, mas agora com os meus manuscritos codificados, no interior delas.

A operação seguinte consistia em voltar a dar à folha de cartão o seu aspecto original. Tudo era recomposto com o auxílio de um pouco de cola e do peso do meu próprio corpo (até as capas de uma Bíblia foram, a certa altura, um veículo insuspeito). Quanto aos sapatos, o procedimento era similar. Descoladas as forras, enchimentos e solas, aí eram escondidos muitos apontamentos cifrados. Seguiam um destino em tudo semelhante às malas. Os sapatos conheceram, no entanto, uma ajuda suplementar, a dos zairenses. Estes eram a mão-de-obra usada na prisão para a distribuição da comida e outros afazeres. Ofereci-lhes muitas vezes roupa e sapatos. Muitos deles levaram-nos calçados para o Zaire, com material escondido, na altura da sua libertação (quando fui posto em liberdade, viajei de Lisboa a Kinshasa para recuperar toda essa informação). Assim, durante cerca de três anos e meio, emigraram da prisão uns quatro mil apontamentos, narrativas do quotidiano, desabafos, pequenas histórias de vidas, denúncias, um mar de observações e conversas que preencheu os dias do meu degredo.

Quando conheci de novo a liberdade, a minha primeira missão foi descodificar todos aqueles apontamentos, pois havia o risco de eu perder a memória de muitos dos pormenores que eram essenciais para a interpretação daqueles fragmentos. Foram oito meses de trabalho diário, realizado em Lisboa e Paris. O resultado foi uma vasta documentação de recolha oral que fechei no cofre de um banco. Demorei vários anos para ganhar a coragem e a disponibilidade necessárias para transformar em livro a memória dessa experiência. O trabalho era gigantesco. Acabei por escolher dentro dessas notas um determinado percurso. O que aqui se apresenta corresponde, assim, a menos de metade dessas anotações.

São, portanto, páginas de memórias. As minhas, feitas dos rostos e das palavras dos que me confiaram os seus medos e a sua coragem, as suas histórias vividas e contadas. Por isso, também as deles, que aqui são honradas como se de mim fizessem parte, contando entre o que de mais sagrado estimo.

A memória dessas noites em que a violência abria as portas de ferro das celas sobrelotadas de gente e daquele cheiro dos dejectos humanos acumulados. O chamamento dos nomes, os berros e os pontapés, os passos de todos esses a caminho da pior tortura — com vista à extorsão de informações ou à assinatura de autos forjados — ou votados ao suplício mortal. As vozes de todos esses — uns mais contidos, outros mais impertinentes —, de vinte e sete nacionalidades, de tez e línguas diversas, alguns deles empurrados para a loucura. O choro dos que iam para a morte e o alívio dos que descobriam que o nome chamado não era o seu.

Entre essas vozes, jovens estudantes na militante procura da pátria almejada, militância não alinhada, carregando o pecado da discordância e, por isso, enclausurada entre os muros do inferno prisional angolano. Outros, presos por tão pouco: a cobiça de urna casa, um carro, um frigorífico. Os portugueses, porque alguém se queria apropriar dos seus bens (alguns trouxeram, em troca, balas no corpo), sem um mínimo de respeito pelos procedimentos diplomáticos (o mesmo desrespeito pela comunidade internacional se descobriu em alguns fóruns internacionais como a OUA e a ONU, onde foram algumas vezes solicitadas explicações aos poderes do MPLA).

A memória dos Comissários Provinciais de Malange e Benguela, que carregaram para a ambulância, que os levou para o destino do fuzilamento, a pá e a picareta com que haviam de cavar a sua sepultura. Dos 150.000 quiocos que ficaram sem médico durante mais de um ano depois de as forças do MPLA terem encarcerado arbitrariamente um dos médicos da Diamang. Dos presos seleccionados para o julgamento popular de Luanda, em 1975, condenados antecipadamente ao fuzilamento, mortos aos bocados perante uma multidão de dez mil pessoas transportadas para um estádio de futebol.

A memória de narrativas inimagináveis, como a de um rapto realizado em Kinshasa, patrocinado pelas forças do MPLA, aproveitando uma viagem oficial do Presidente Agostinho Neto; como a dos militares presos que foram transportados nos Boeing 737 da TAAG, amarrados ao chão do avião, cujos bancos tinham sido retirados; como a daquele musseque de Luanda, Sambizamba, que conheceu depois do 27 de Maio (golpe político-militar a que darei atenção em capítulo próprio) acções bárbaras de demolição — visando particularmente os tidos por participar no golpe —, onde ficaram soterradas mulheres e crianças; ou ainda como aquelas narrativas que se referiam à deslocação de tantos adolescentes para Cuba para instituições de educação que tinham a missão de os tornar pontas-de-lança dos planos de sovietização à escala internacional. Tenha-se em conta que o imperialismo soviético se baseava no credo leninista-trotskista da «revolução permanente». (...)

Da Diamang aos calabouços angolanos

Não se pode amar a África e namorar os regimes corruptos e os ditadores de opereta de África. Não se pode respeitar a soberania de um pais cujo presidente chama tropas estrangeiras para se defender do seu próprio povo e do seu exército. Não se pode apregoar a amizade com os africanos e conviver no melhor dos mundos com governos que os roubam, que os condenam à fome e à miséria e que chegam ao extremo de impedir e roubar o auxílio externo.

Miguel Sousa Tavares, Grande Reportagem, Agosto de 1998.

Navegações inversas

Desenvolvi o gosto pela escrita naqueles vinte anos em que dirigi o jornal Notícias da Azambuja. Mas a vontade de escrever um livro sobre Angola vem desde os primeiros dias em que pisei aquele solo africano e conheci um povo que aprendi a admirar. Estava-se precisamente na altura em que a jovem nação independente ensaiava os seus primeiros passos.

Em 1974, eu exercia as funções de administrador concessionário do Hospital de S. Francisco em Lisboa. A agitação social que se seguiu à «revolução dos cravos» teve um impacto grande no funcionamento desta clínica, ao tempo, a maior do país (cheguei a contar com a colaboração de 160 médicos); todos os dias, recebia notícias sobre a diminuição do pessoal médico. Por outro lado, sabia da prisão de alguns dos meus conhecidos. Recordo aquele dia em que, passando junto da sede da CUF (Companhia União Fabril), vi um aparatoso dispositivo militar — tinham acabado de prender o Dr. Jorge Mello. Destino mais dramático teve o Dr. Manuel Braamcamp Sobral, deputado e meu amigo, que acabou por falecer no meio desta agitação. O êxodo dos gestores para o Brasil e para a Europa já tinha começado, e eu próprio começava a equacionar a possibilidade de novas escolhas na minha vida, uma vez que a clínica não podia corresponder já aos meus objectivos empresariais.

A Diamang surgiu no meu horizonte através de um outro interesse. O Dr. Lopes Cardoso, director dos serviços culturais da Diamang, tinha estimulado o meu interesse pelo Museu do Dundo, instituição que tinha a marca da dedicação do comandante Ernesto de Vilhena, durante muitos anos presidente da Diamang, que procurou adquirir aquilo que de valor encontrava pela Europa para o fazer regressar ao seu meio de origem. Este museu era bem conhecido nos meios museológicos, sobretudo através dos seus cuidados catálogos, publicados entre 1946 e 1975. Na qualidade de director do Museu da Azambuja, conhecendo bem as publicações do Museu da Diamang, depressa percebi que tinha de visitar aquela catedral da arte quioca. A data da independência de Angola aproximava-se — estava marcada para 11 de Novembro de 1975 —, e eu receava que depois dessa data tudo fosse mais difícil. Em Outubro de 1975, com o apoio diligente do Dr. Lopes Cardoso, empreendi essa viagem com destino ao Dundo.

Fui recebido no aeroporto pelo general Diogo Neto, que fora membro da Junta de Salvação Nacional, presidida pelo general Spínola, mas se encontrava agora em Luanda com a missão, entre outras, de dirigir a actividade de uma frota de helicópteros cuja principal incumbência era a fiscalização das minas. Foi uma recepção acolhedora que me deu a conhecer um homem apaixonado por Angola. No entanto, como a intolerância do MPLA para com os militares portugueses se avolumava, Diogo Neto abandonou Angola ainda antes da independência.

Aqueles quinze dias foram de descoberta. Sob a extraordinária hospitalidade do Eng. Mário Paiva Neto, administrador da Diamang, e da sua esposa, Dona Flora, visitei o museu, mas também muitos outros equipamentos instalados nos 50.000 km2 da concessão — a central hidroeléctrica, as oficinas, as áreas residenciais de grande qualidade, as instalações ligadas à pecuária, etc. —, e conheci as dificuldades que eram impostas pelas circunstâncias ao funcionamento da empresa. Dos dois mil funcionários, restava menos de uma centena. Como as estradas entre a Lunda e Luanda estavam bloqueadas, a empresa contratou aviões Hércules do Canadá , meio sem o qual não seria possível a distribuição de alimentação, vestuário e combustíveis, ou seja, não seria viável a sobrevivência.

Regressei a Portugal. Aí os acontecimentos continuavam a precipitar-se. Assim que voltei à clínica, recebi a visita de um agente policial que me notificou para estar presente numa reunião no Ministério do Trabalho. A mesma nota foi entregue na minha residência.

Fiz-me acompanhar do meu adjunto, Alfredo Freire. Eu tinha algumas suspeitas acerca da finalidade de tal convocação. Numa reunião de algumas dezenas de pessoas, quase todas desconhecidas, foi-nos comunicado que a partir daquele momento a clínica ficava sob "controlo operário."

Nesse dia regressei a casa profundamente desanimado, a pé, porque não circulavam táxis, e tomei a decisão: dirigi-me a casa do Eng. Carlos Abecasis, presidente da Diamang, e ofereci-me para trabalhar nesta empresa, em Angola. Começava uma nova fase na minha vida, numa empresa que me fascinava, e onde vim a realizar grande parte do meu esforço empreendedor, em sectores como a saúde, a agricultura, a pecuária, os transportes aéreos, a gestão dos abastecimentos, etc. Poucos dias depois já eu voava rumo a Angola. Nesse voo — o último antes da independência angolana —, para além de mim, do presidente e de um outro administrador da Diamang, apenas viajava uma pequena comitiva de militantes do Partido Comunista Português, que se deslocava com o intuito de chegar a Angola antes da declaração de independência — ao todo, cinco passageiros num Boeing 747.

Recordo bem esse 9 de Novembro de 1975. Aproximava-se o dia da independência. Eu chegava, mas muitos empreendiam a navegação inversa. Nas imediações do aeroporto de Luanda amontoavam-se caixas e caixotes, malas e sacos, e outros volumes, e gente, numa azáfama inquieta de rostos marcados pela desilusão. Eu chegava, eles partiam, êxodos inversos que se cruzavam naquele palco de uma das maiores pontes aéreas jamais vistas. A mim, coube-me o privilégio de ser convidado do presidente da Diamang, o Engenheiro Carlos Krus Abecasis, que me instalou com ele no complexo da Diamang, em Luanda, as mesmas instalações que acolheram Savimbi em 1992. Já nesse edifício da Diamang, em Luanda, conheci o então major, hoje brigadeiro, Mariz Fernandes, de quem herdei algumas responsabilidades. Segundo o Alto-comissário Comodoro Leonel Cardoso, permaneceriam no território uns trinta e quatro mil portugueses, tendo já abandonado o território angolano uns quatrocentos mil. Neste número não deveriam estar contabilizados os milhares de portugueses e estrangeiros, talvez uns cento e quinze mil, que abandonaram Angola com destinos como África do Sul, Brasil, Zaire, França, para além de Portugal (muitos açorianos optaram por recomeçar a sua vida nos EUA).

Foi no dia 18 de Setembro de 1975. O almirante Leonel Cardoso usou a palavra pública num discurso difundido naquela que era, na altura, a emissora oficial angolana. Eram palavras de estímulo em relação ao futuro, que procuravam prevenir para a infelicidade que se podia adivinhar, mas que dão conta, também, da precipitação que arrastaria para o desastre o jovem país:

A independência terá de ser digna do povo angolano e desta orgulhosa nação. E é tal a confiança que Portugal deposita nas boas gentes desta esperançosa terra, que decidiu retirar de Angola todas as suas Forças Armadas antes do dia 11 de Novembro. A despeito de ter ficado acordado com os Movimentos de Libertação que poderíamos prolongar o período de retirada até 29 de Fevereiro do próximo ano, não o faremos. Assim não haverá tropas portuguesas em território angolano depois da independência [...]. Aos portugueses que estão resolvidos a partir, não lhes pedirei que fiquem. Apenas lhes peço que pensem bem antes de abandonarem uma realidade perturbada e inquietante mas promissora, por um futuro cheio de incertezas e dificuldades, antes de deixarem o que, com o vosso esforço, construíram ao longo dos anos, para irem começar vida nova em condições adversas [...]. Aos angolanos que a falta de segurança fez regressar às terras de origem, não lhes pedirei que regressem aos seus lugares de trabalho tradicionais e aos seus lares abandonados. Apenas lhes peço que considerem essa possibilidade e que não percam a esperança de em breve reconstruírem as vossas vidas. Angola precisa de todos os que a amam. Todos não serão demais neste enorme e promissor país que, em vez dos seus escassos seis milhões de habitantes, tem necessidades de, pelo menos, sessenta milhões.

No dia 1 de Novembro de 1975, já todos tinham percebido que não havia qualquer hipótese de conciliação dos diversos movimentos independentistas, apesar das pressões da OUA e de vários estadistas africanos. Em declarações a um semanário angolano, transcritas no Jornal de Angola, o Alto-comissário Comodoro Leonel Cardoso punha condições à sua participação nas cerimónias da independência:

Só com um Movimento eu não entrego o poder. Não vou às cerimónias de posse desse Movimento. Mas se um outro Movimento quiser vir, ainda aceito que se faça a cerimónia com dois Movimentos.

No dia 10 de Novembro de 1975, no Palácio do Governo, horas antes de, sob escolta terrestre e aérea, abandonar o solo angolano, o Alto-comissário leu uma mensagem: http://pissarro.home.sapo.pt/memorias21.htm

Dirijo-me a vós, neste momento único da história dos nossos povos, em que Angola vai nascer para a comunidade das nações e Portugal se retira definitivamente do continente africano [...]. Lamento sinceramente não me ser possível tomar parte em qualquer cerimónia comemorativa na hora maior da vida do povo angolano, dado que, fazê-lo nas actuais circunstâncias, equivaleria da parte de Portugal a uma ingerência nos sagrados direitos que assistem àquele povo de decidir o seu próprio futuro [...]. Portugal tentou, mas o impasse manteve-se até ao fim [...]. Nestes termos, em nome do Presidente da República Portuguesa, proclamo solenemente [...] a independência de Angola e a sua plena soberania, radicada no povo angolano, a quem pertence decidir das forças do seu exercício.

Quando no dia 11 de Novembro foi declarada a independência de Angola, eu estava no Consulado de França correspondendo a um convite do Cônsul, e foi aí que vi e ouvi o festival de tiros, balas e fogo que incendiava o entusiasmo e, por outro lado, despertava a apreensão. Segundo informações reunidas por Juan Benemelis:

A 11 de Novembro, dia da declaração unilateral da independência por parte do MPLA, existem mais de 7000 soldados cubanos nesse país. Durante os meses de Dezembro e Janeiro a escalada cubana, OPERAÇÃO CARLOTA, acelera-se, elevando primeiro a 12.000, depois a 22.000 e, finalmente, em Março, a 37.000 soldados as forças estacionadas em Angola. No entanto, existe no teatro bélico o equivalente a duas divisões cubanas, reforçadas com artilharia, tanques, aviação, helicópteros, etc. Em Fevereiro, a escalada logística soviética ultrapassa os 400 milhões de dólares.

A celebração da independência não escondia a vertigem da violência que já se desenhava. A pouco mais de dez quilómetros do local das cerimónias, mais precisamente numa povoação chamada Quifandongo, travava-se uma luta sangrenta: o Movimento de Holden Roberto pretendia conquistar Luanda a fim de impedir a proclamação unipartidária da independência da República Popular de Angola. Enquanto o MPLA exaltava as virtudes gloriosas da independência e da unidade nacional, os membros da FNLA que se deslocavam do norte para Luanda eram chacinados pelas armas do MPLA coadjuvadas pelo fogo cubano — os acordos de Alvor estavam cada vez mais condenados ao fracasso. (...) Ler: http://petrinus.com.sapo.pt/batalha.htm

A Diamang

As minhas primeiras responsabilidades incluíam todo o sector dos transportes aéreos e a colaboração com o Dr. Bernardo Reis no departamento, de abastecimentos. O mundo era vasto — casas de trânsito, cantinas, hospitais, trabalhadores, etc. — e exigia a contínua utilização de meios aéreos. Durante mais de um ano dirigi, assim, missões de transportes, com Hércules canadianos, de e para vários países; entre outros, Portugal, Camarões, Malawi, Botswana, Congo, etc. Os transportes aéreos faziam parte do meu pelouro, mas fotografias como a que era apresentada viriam a ser matéria suficiente para prosseguirem com a acusação de que eu era membro da CIA.

Mas a minha memória não se confina às recordações do que eu próprio fazia, ela evoca também o trabalho de tantos outros e os acontecimentos, uns pitorescos, outros surpreendentes e alguns assustadores em que me vi envolvido. Por vezes, despertava-se-me o espanto perante factos do mundo zoológico que eu desconhecia por completo. Lembro que, no Dundo, eu gostava de passear à noite por aqueles arruamentos ladeados por mangueiras. Foi numa dessas noites. A dada altura, começo a ver muita gente nas ruas, vozes de contentamento, tudo à cata de uma espécie de térmites que tinha invadido aquele espaço urbano. O contentamento era para mim um enigma, só decifrável quando verifiquei que a população fazia da bicharada um petisco — os quiocos chamavam-lhe tulango.(...)

O inferno prisional

Começo da viagem

A minha história pessoal acabou, assim, por se cruzar com os destinos da Diamang, na medida em que a minha viagem pelos calabouços angolanos coincidiu com o próprio processo de nacionalização da empresa.

No âmbito das minhas atribuições, na Diamang, vi-me na necessidade de ter de procurar no estrangeiro os alimentos e outros bens necessários ao funcionamento da companhia. Para isso contava com os aviões Hércules alugados à companhia canadiana. Esta era a solução mais viável diante dos 1400 km que separavam o Dundo de Luanda. Não se perca de vista que a insegurança que se vivia tornava perigosas muitas das vias terrestres

Chefiando várias missões do Hércules que fazia tais deslocações, podia, frequentemente, comprar algo daquilo que, em território angolano, seria impossível encontrar: o Herald Tríbune, a revista Times e o Financial Times, bem como vários jornais franceses, que eram algumas das minhas compras favoritas. Na minha casa, foram-se, assim, acumulando vários destes exemplares.

Alguém me chamou a atenção para algo fora do comum. Acontecia no porto. A tripulação canadiana acompanhou-me numa viagem de carro até ao porto. Aí, vi um barco de aspecto tosco, cheio de crianças e adolescentes, ultrapassando largamente a lotação, apresentando condições sanitárias de uma precariedade indescritível. Os canadianos ficaram à distância. Eu consegui aproximar-me um pouco mais. Tratava-se de um conjunto de crianças e adolescentes deslocados, dando testemunho das tentativas de despovoamento de Cabinda. Quando regressei ao Dundo, percebi que alguém, de entre a tripulação canadiana, tinha feito um registo fílmico daquela visão deprimente. Não tardou que eu fosse procurado pelos disas e que estes me exigissem a entrega do filme. Entrei em contacto com um dos membros da tripulação canadiana e recebi a indicação de que o autor do filme estava de férias em Londres. Fiquei de pés e mãos atadas, uma vez que nem tinha o filme nem maneira de chegar até ao seu autor. A partir desta altura senti que uma certa vigilância começava a dar lugar à perseguição, anunciando um desfecho pouco favorável ao desenvolvimento das minhas actividades em Angola.

Nos finais de Fevereiro de 1977, tinha eu acabado de regressar de Douala, nos Camarões, quando ouvi, surpreso, voz de prisão, sob as ordens do chefe da DISA no Dundo (embora eu não lhe conhecesse, até então, tais funções), um daqueles a quem não escapava nenhuma das minhas viagens na mira de obter para si a satisfação de qualquer necessidade ou extravagância. A noite tinha caído e eu estava já deitado. A campainha tocou, denunciando a violência que se avizinhava. Já a porta estava praticamente violentada quando lá cheguei para a abrir. A chave foi-me imediatamente confiscada e eu fui deslocado para uma moradia onde estavam já outros detidos (alguns da Diamang). O interrogatório foi cerrado, mas não conseguiram de mim mais do que um silêncio perplexo.

Tinha começado a minha viagem de degredo. Primeira estação, a Casa de Reclusão: homens e mulheres circulam vergados sob as marcas da humilhação e da violência desmedida; as primeiras ordens são para que nos dispamos, eu e os outros seis funcionários da Diamang que conheceram a mesma viagem; um estrado foi o único lugar possível de espera; dos parcos haveres que comigo levava deixaram-me apenas a roupa que tinha no corpo (situação que me acompanhou desde este três de Março de 1977 até finais do mesmo ano, altura em que, já na Cadeia de São Paulo, a minha esposa me pôde prestar assistência, levantado que foi o regime de incomunicabilidade). Exibiram a nossa nudez diante daqueles que por ali passavam, homens e mulheres, enquanto revistavam os nossos corpos e as nossas roupas. Depois desta recepção fomos instalados nas celas.

A primeira semana de cativeiro na Casa de Reclusão foi um verdadeiro baptismo de horror. Os gritos que, causados por torturas, habitavam a noite tornavam-na insuportável; semeavam em nós um medo dilacerante que crescia na incerteza do que sucederia no dia seguinte (o Major Tonton, de quem ainda falarei, confessou que temia mais estas torturas do que a própria morte); nem os muros continham a violência dos bramidos.

Nas conversas possíveis fui descobrindo que parte dos reclusos não conhecia a acusação que sobre eles pendia; alguns estavam convencidos de que a sua prisão era apenas o contexto favorável para o assalto aos seus bens; outros viviam sob a acusação de pertencerem à FNLA e à UNITA — esses mesmos eram prioritariamente escolhidos para as sessões de tortura. Zeca Pinho — um dos altos responsáveis da Casa de Reclusão de que damos notícia — tinha carta branca de Onambwe para presidir a tais liturgias de sangue e nervos.

Quando a noite caía, Zeca Pinho descia do Comando, no 1.° andar, até ao rés-do-chão onde estavam as celas. Acompanhava-o um séquito de peritos: Tira Ranho, Cemitério, Talahady, entre outros. Não vinham sós — não faltava já a companhia do álcool e da liamba. As luzes da Casa de Reclusão acendiam-se num cânone de pânico crescente. Quando abriam as celas chamavam os eleitos, já previamente designados e inscritos numa lista que acompanhava aquela procissão de carrascos. O chamamento das vítimas era auxiliado por perguntas provocatórias e "reeducadoras": "És do MPLA?", "Quem manda em Angola?"... Ao cortejo dos carrascos juntava-se, então, uma procissão de vítimas que tomava a direcção do 1.° andar até ao teatro da pancadaria, já previamente preparado para tais fins.

Quando me foi dada a permissão de ir tomar um pouco de sol, pude verificar, de modo mais amplo, os resultados daquelas noites de selvajaria. Abundavam os rostos desfigurados, os membros derreados, as feridas abertas, as cabeças chagadas, os corpos que recusavam a roupa porque se encontravam revestidos de escoriações — era o meu baptismo no inferno dos piores horrores.

Era já noite quando me transferiram para a Cadeia de São Paulo, não sem antes me tirarem os óculos, objecto que acharam dispensável na minha nova morada. Essa privação, à medida que os meses passavam, trouxe-me sérios prejuízos. Já em São Paulo ousei perguntar pelo economista Rui Castro Lobo e pelo médico Manuel Videira, meus colegas na Diamang, mas a resposta foi já no jargão da cadeia: um abrutalhado bofetão.

A cela do meu destino, nos seus cerca de 150 cm por 120 cm de nojo, tinha apenas um buraco que servia as funções de retrete; a água, não a pude ali conhecer. Para me deitar, faltava o espaço necessário — as pernas eram obrigadas a ficar na vertical, encostadas a uma das paredes.

Ao segundo dia, os interrogatórios continuaram. Hélder Neto, director da DISA, fez as honras da casa. A pergunta rebentou nas minhas mãos, como se de uma bomba de espanto se tratasse: "Quem te fez agente da CIA, quem te mandou vir para Angola?". Não consegui melhor do que uma resposta curta e estupefacta: "Nada tenho a ver com a CIA". Hélder Neto, com aquele ar de vitória ignorante, abriu uma das minhas pastas, roubadas no Dundo, para exibir os vários jornais estrangeiros que eu comprara na minha última viagem. Tentei introduzir alguma razoabilidade naquele diálogo, procurando que o inquisidor percebesse que aqueles eram jornais e revistas que eu já lia quando vivia em Lisboa e que nada tinham a ver com a CIA. Mas as "provas" não estavam esgotadas. As fotografias eram as provas que faltavam.(...)

A explicação de que se tratava de uma cerimónia civil na Azambuja, onde tinha sido presidente da Câmara, não me livrou de umas coronhadas furibundas na busca impaciente de uma qualquer confissão. A minha falta de cooperação prolongava o suplício e multiplicava as acusações como aquela que acompanhou a descoberta de um número já antigo da Paris-Match — prova de que eu seria, com certeza, da polícia política francesa. A sessão prolongou-se até à exaustão, e quando regressei à cela carregava já a ameaça de que seria fuzilado. Mas, duas semanas passadas, a sorte não sorria a Hélder Neto: enredado no assalto à cadeia empreendido pelas forças de Nito Alves viria a suicidar-se (segundo alguns testemunhos). Das informações que obtive dos zairenses, concluí que na confusão do assalto as minhas pastas acabaram por ser destruídas, e, de facto, nunca mais fui importunado com perguntas acerca do seu conteúdo.

Fonte: http://pissarro.home.sapo.pt/

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