sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

SOBRE A GÉNESE DA LITERATURA ANGOLANA


[pepetela.jpg]Por: Pepetela



O primeiro livro editado em Angola e escrito por um angolano data de 1849 e foi publicado em Luanda pouco depois de se ter instalado a Imprensa Oficial. Trata-se de um livro de poemas, intitulado “Espontaneidades da minha alma”, cujo autor, José da Silva Maia Ferreira, pertencia a uma família de comerciantes portugueses instalada há muito na colónia.

Certos indícios fazem crer que outros angolanos se teriam dedicado às letras antes desta data, mas não encontrámos até hoje as obras, apenas referências esparsas. Preferimos pois referir que na segunda metade do século passado, e mais particularmente a partir de 1880, se desenvolve o que se pode chamar um embrião de literatura em Luanda e Benguela, cidades antigas na costa atlântica e pontos de partida para a colonização do interior. Tratava-se principalmente de obras de carácter jornalístico, muito activo nessa época marcada por grande agitação na vida da colónia, mas também poemas, romances e ensaios. Temos uma grande variedade de títulos de jornais, utilizando a língua portuguesa, kimbundo e kikongo, por vezes bilingues. A vida da maior parte destes jornais era efémera e embora tivesse sido decretada a liberdade de imprensa, vários deles eram proibidos logo desde o primeiro número, por razões políticas.

É o contexto social em que se desenvolveu esta literatura que vamos tentar rapidamente examinar, para pôr em evidência a maneira como se foi criando uma cultura própria que teria um enorme protagonismo no século actual, servindo de base para as manifestações nacionalistas.

O território que iria ser conhecido mais tarde pelo nome de Angola tornou-se, a partir da fundação da cidade de Luanda, em 1576, um enorme fornecedor de escravos para as Américas. A norte do território situava-se o reino do Congo, o qual já participava do tráfico há quase um século, mas tratava-se de uma entidade política independente na época, só se integrando na colónia de Angola no século XVII. Toda a economia de Angola vivia de e para o tráfico. E isto durou aproximadamente três séculos. Os escravos partiam principalmente para o Brasil. Do Brasil, Angola importava todos os produtos necessários à vida da colónia : da aguardente e pólvora até à carne seca e à madeira para construção. Portugal contentava-se em enviar pessoas e entre elas um importante contingente de deportados, condenados por crimes de direito comum e por “delitos religiosos”. Esta categoria era constituída por judeus e adeptos da reforma protestante. Os colonos eram compostos essencialmente de traficantes, comerciantes, soldados e deportados. Dadas as circunstâncias específicas em que se realizava a partida desta população para Angola e dados os objectivos visados, é fácil deduzir que se tratava de uma população principalmente masculina, o que esteve evidentemente na origem da forte mestiçagem gerada na colónia.

Até ao século XIX, a situação económica e social sofreu poucas modificações, em Luanda, Benguela e nos territórios circunvizinhos que constituíam praticamente a colónia de Angola. Era de facto uma feitoria servindo de base à captura e ao embarque dos escravos. Sendo a sua principal vocação militar e administrativa, a esta se agregou alguma actividade económica ligada à pesca e a uma agricultura rudimentar nas quintas à volta das cidades e presídios e, finalmente, o comércio de alimentação e bebidas. Esta feitoria era de facto desde o século XVII governada pela colónia portuguesa do Brasil e não directamente pelo Reino de Portugal.

Até ao século XIX, que constitui um período-charneira, como veremos, as características da população da colónia não variaram. Assim, a categoria dos brancos, que eram em número de dois mil e se compunham de comerciantes e soldados, permaneceu estável durante séculos. O número de mestiços aumentou progressivamente e sempre foi superior ao dos brancos. O elemento negro evoluía de maneira significativa, mesmo se uma parte importante era constituída por escravos que só ficavam nas cidades o tempo mínimo para se restabelecerem fisicamente do desgaste provocado pela viagem em caravana do interior para a costa, com o fim de poderem suportar as condições infra-humanas da viagem para a América. Luanda e Benguela eram com efeito entrepostos de engorda dos escravos capturados em guerras do interior ou vendidos pelos chefes tribais.

O número reduzido de brancos, a quase inexistência de mulheres brancas, e o facto de os negros serem escravos em trânsito ou servindo nas casas dos donos, e por isso com poucas possibilidades de fundar uma família, explicam que a família mestiça tenha predominado nessa altura. Pode mesmo dizer-se que a família dominante era não somente mestiça mas também patriarcal polígama. Um homem, que podia ser europeu, mestiço ou raramente um negro com grandes propriedades, tinha normalmente uma mulher principal e várias secundárias, geralmente escravas (mucambas) que ajudavam a mulher principal nas lides da casa. Muitas vezes a mulher principal era mestiça e as secundárias eram negras, independentemente da cor do chefe de família. Se este era rico, as mulheres eram tratadas com grande luxo e ostentadas publicamente, sem nenhuma reserva, o que levava a igreja católica a elevar-se constantemente contra “a dissolução dos costumes e a degradação da moral familiar”. Mas, ao que sabemos, a sociedade fazia pouco caso das invectivas da igreja, não só porque as condições da colonização a forçavam a isso, mas também porque este factor encontrava justificação fácil nos costumes da sociedade africana tradicional, polígama por excelência. Assim, a sociedade mestiçava-se racialmente e se baseava sobre uma síntese cultural entre a estrutura familiar europeia e a estrutura familiar africana tradicional. Em Luanda, cidade situada em território de língua kimbundu, era esta língua africana que se usava correntemente na família patriarcal, mesmo se o chefe fosse branco. Do mesmo modo, inúmeras crenças e costumes africanos perduravam, sob o manto da europeização e da cristianização, em imprevistos sincretismos religiosos e culturais.

Um outro fenómeno se juntava a esta evolução : o da ascensão de mestiços livres na administração, os quais representavam uma quinta parte dos funcionários. Esta ascensão social dos mestiços dava um aspecto particular às sociedades da costa, muito particularmente a Luanda e Benguela. De um modo geral, os brancos consagravam-se sobretudo ao comércio, fonte real do poder, que lhes assegurava mais vantagens materiais que os magros salários de funcionários. Por isso uma parte significativa dos cargos públicos, civis e militares, foi progressivamente ocupada pelos mestiços. No entanto sempre existiram medidas legais restritivas. Os cargos mais elevados ou de maior prestígio, compreendidos os de vereadores da Câmara, reclamavam “pureza de sangue”, o que queria dizer que o candidato não podia ter sido “contaminado” por sangue judeu, mouro ou negro.

A sociedade urbana de fim do século XVIII é melhor conhecida graças ao historiador brasileiro Elias Correia , que viveu vários anos em Angola e descreveu o quotidiano dos seus habitantes. Ele considerava a sociedade dominante em Luanda licenciosa e atentatória à moral católica. Refere também que a cidade era a mais suja do mundo, com as ruas cheias de lama e de estrume, os animais vivendo nas ruas no meio do lixo atirado de todos os lados. Os habitantes sofriam de paludismo e desinteria, e todas as pestes provocadas pela atmosfera pútrida em que viviam. As casas estavam reduzidas a estado de pardieiros e os edifícios com imponentes fachadas mas ameaçando desabar estavam rodeados de cabanas sombrias e sem ventilação e casas em ruína que serviam de despejo a toda a espécie de imundícies. No entanto, talvez para reforçar os contrastes, nesta cidade descuidada, infecta, mal cheirosa, que os grandes senhores se contentavam de disfarçar mandando queimar alfazema e açúcar no interior das habitações, havia a maior ostentação de luxo. Os senhores e suas consortes vestiam caras sedas, veludos e brocados, como nas cortes europeias, sem temerem a sauna a que se condenavam, passeavam pedrarias, espadins e fivelas de ouro nos sapatos, para os mergulhar logo em seguida no esterco das ruas. Por Elias Correia sabemos ainda que não havia vida cultural, excepto raras representações teatrais nas igrejas. Os habitantes mais desafogados passavam o tempo a engolir copiosos repastos que duravam horas, bem regados de aguardente brasileira, e que terminavam invariavelmente por partidas de cartas com grossas apostas. As fortunas se faziam e desfaziam numa noite.


Esta sociedade pachorrenta para a qual o desenvolvimento significava quase um insulto sofreu no século XIX dois grandes abalos que por pouco a faziam desaparecer. O primeiro abalo foi a independência do Brasil em 1822. Grupos importantes das classes dominantes de Luanda e de Benguela tentaram fomentar um movimento para se juntarem ao Brasil e prolongarem constitucionalmente o que existia na prática. A burguesia colonial de Angola vislumbrava grandes benefícios nesta ligação directa com a região que lhe comprava os escravos e sem ter de enviar o dinheiro dos impostos do tráfico para Portugal. Mas o poder português reagiu e o número de brancos aumentou consideravelmente num ano, com o envio de tropas para defenderem os direitos da coroa europeia. O resultado mais sensível da independência do Brasil foi uma diminuição progressiva da exportação de escravos, o que provocou uma crise da economia que durou um século.

Em 1836, um segundo abalo iria modificar a face da colónia : a abolição do tráfico de escravos pela pressão da Inglaterra. E a crise tronou-se pânico e engendrou uma verdadeira debandada. Houve uma exportação clandestina e massiva de escravos e fuga de capitais e de pessoas para a Metrópole. O tráfico diminuiu lentamente para desaparecer completamente só no fim do século. Todavia, deixou de ser a principal e quase única fonte de receitas da colónia. A economia de feitoria terminou, deixando o lugar a outro tipo de colonização, já timidamente experimentado no passado, com o envio de maior número de colonos para o interior com o fito de se dedicarem à agricultura. Esse movimento migratório de brancos modificou pouco a pouco as relações sociais e marcou definitivamente a vida cultural. As perdas provocadas pelo fim do tráfico foram somente em parte compensadas pelos benefícios do comércio da borracha e do marfim, e pelo princípio da exploração do café. Mas a transformação do sistema de produção provocou mudanças importantes numa camada social que alguns autores qualificam como “classe média africana”, “sociedade crioula” ou “elite africana”, termos utilizados para designar essencialmente o mesmo fenómeno.



CONTINUA...

1 comentário:

Anónimo disse...

é preciso k os mais velhos escrevam sobre o k sabem e viveram desta Angola